26.1.11

Sobre «consoar»

Isso era dantes


      E por falar em soar: até 1945, salvo erro, só as consoantes consoavam, e todo o tempo. Os homens apenas podiam consuar, e não somente na quadra própria, mas todas as noites (vejam acepções do substantivo respectivo). Naquela altura, ensinava-se que vinha de consum, do latim cum+sub+unum. Actualmente, está tudo amalgamado na mesma grafia, e a etimologia de «consoada» já é outra. Evoluções...

[Post 4361]

4 comentários:

Anónimo disse...

«Mudança possui tudo» (Bernardim, «Menina e Moça»).
- Montexto

Anónimo disse...

«CONSOAR, v.; consoada, s. Também não me parece sustentável a tese de D. Carolina Michaëlis (na “Rev. Lus.”, I, pp.117-132). Mais admissível parece a do P. Arlindo R. da Cunha (na “Rev. Port.”, III, pp.232-237): do lat. “consolari-”, “reconfortar, consolar, adoçar, aliviar (a infelicidade, a dor, etc.); compensar, fazer esquecer”, donde “consolata”, f. de “consolatu-”. p. p. do mesmo v. Séc. XIII? “Avendo pela renda dos dictos beens duas tavolas ao dia, sem outra consoada, nem cama, nem al, que nem ffor veguilia, e quanto a ffor, huma tavola, e a noyte consoada”, cit. por Cort. s. v. O v. no séc. XVI: “Nas vesperas do Natal cõsoaua publicamente em sala cõ todo stado de porteiros de maça, reis d armas, trõbetas, atabales, charamelas, & em qnãnto cõsoaua dauão de cõsoar a todolos senhores… depois desta cãsoada [sic] acabada mãdaua Vasqueanes… de consoar [sic] ás damas da Rainha…», Góis IV, cap. 84, p. 199» (José Pedro Machado, «Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa», 8.ª ed., 2003, II).

A insustentável (no ver de J. P. Machado) D. Carolina sustentava por sua vez, no lugar susocitado, que «Fica pois estabelecido, desde já, que é da fórmula “de consum” que quero derivar o verbo “consoar” e o substantivo “consoada”, cuja forma arcaica “consuada” por “consunada, consuanada”, infelizmente ainda não descobri». E «É bem sabido que na grande maioria das famílias do povo português a refeição da noute [note, caro BIC: noute] é, em certo sentido, a principal porque é a única em que, depois do trabalho jornaleiro feito e pronto, todos (ou quasi todos), os membros da família “se reúnem” em volta do lar caseiro para comerem em companhia, conjuntamente, DE CONSUM, como se dizia antigamente e como ainda agora se diz em Trás-os-Montes (e talvez algures).»

Enfim, a douta Senhora relaciona ainda as outras hipótese propostas para explicar o enigma, a saber:
. a que identifica «consoar = comer ao fim de um dia de jejum» com «consoar = soar juntamente, rimar»;
. a que tira «consoada» do lat. «consolari», que parece ser a do padre Arlindo da Cunha, sufragada por José Pedro Machado, como se viu. Mas, no ver agora de D. Carolina, «sem reparar no impróprio da formação, e numa circunstância singular, mas importante, o facto de todos os derivados antigos e modernos deste verbo conservarem o i. intervogal»;
. a que a considera um «composto de “con» e “cear”, lat. “concoenare”, propondo a ortografia “conçoar” e julgando admissível a mudança do “e” de “cear” em “o”, por assimilação ao “o” de “com” (!!)»;
. e «Uma quarta etimologia, de que ninguém se lembrou, mas que se podia ter proposto [notai: o homem (ou mulher) da glote hodierno escreveria, sem falha, «que se poderia ter colocado»] com igual direito, é o lat. “contionari” (donde viria “conçõar”, “consoar”).

Agora faltava sopesar as razões do padre Arlindo da Cunha, mas não disponho do seu estudo.

Conclua-se.
Mas parece que nunca jamais em tempo algum ninguém descobriu ou avistou a «consuada» e o «consuar»…
- Montexto

Helder Guégués disse...

«Da linguagem do Natal fazem parte as palavras consuar, consuada, que antes se escreviam com o na segunda sílaba, onde a reforma ortográfica de 1911 mandou pôr u. Esta alteração tem levado tempo a intalar-se e a vencer o costume anterior.
Assim como o antigo consoar com o nada tinha com som, assim o moderno consuar com u nada tem que ver com suar “transpirar”. Durante anos e anos não puderam os pobres etimologistas consuar descansados, sempre a cismarem na origem desta palavra. Caldas Aulete queria derivá-la do latim consolari, sendo assim consuada a idéia de consôlo; Domingos Vieira entendia que consoar era corrupção de concear, isto é: cear em companhia. Os filólogos modernos, senhores de métodos mais científicos, acabaram com estas hesitações e fantasias. D. Carolina Michaëlis lembrou, e Gonçalves Viana concordou, que o verbo consuar viesse de cum + sub + unare, exprimindo assim reforçadamente a idéia de “reünião”, “companhia”, “comunidade”. Ainda hoje se usa em Trás-os-Montes a expressão de consum, que se tornou arcaica no resto do País, e significa “juntamente”, “de companhia”. Vamos de consum = Vamos juntos» (Agostinho de Campos, «Linguagem do Natal», in Língua e Má Língua. Lisboa: Livraria Bertrand, 1944, pp. 276-77).

Anónimo disse...

Nada de novo. Até aí sabíamos. O que continua a não constar é que alguém avistasse — nem a própria D. Carolina, como ela própria confessa com pena, porque seria um argumento em favor da sua conjectura — a forma «consuar» e «consuada» em documentos escritos, ao invés do que sucede com «consoar» e «consoada». Agostinho de Campos tacha de fantasias as teses do «consoar»; José Pedro Machado, posterior a ele, e com obra mais científica neste campo, considera insustentável a tese do «consuar». E eu receio que talvez ambos tenham razão...
Quanto ao «de consum», acrescentei-o ao meu dicionário quando o topei no texto de D. Carolina, mas nunca o ouvi em Trás-os-Montes, e conversei com muita gente de lá, e muito idosa.
— Montexto