2.3.11

«Miséria franciscana»

Com digresso

      «Perante uma situação de grande precariedade, de aflição financeira, de pobreza extrema, fala-se em “miséria franciscana”. A expressão é também hoje em dia usada para designar um salário baixo, um pagamento de pouco valor, uma soma de pouca monta. “Miséria franciscana” deriva obviamente de uma analogia com os Franciscanos e a Ordem Franciscana, fundada por São Francisco de Assis no século XIII. Ora, uma das particularidades desta congregação é o facto de esta ser uma ordem mendicante, ou seja, uma ordem religiosa cujos filiados faziam voto de pobreza, vivendo da caridade das doações» (Mafalda Lopes da Costa, Lugares Comuns, Antena 1, 1.03.2011).
      Sim, mas... Filiado é o «que ou o que está agregado, unido a corporação, agremiação, grupo social etc.; afiliado» (na definição do Dicionário Houaiss), mas o termo mais específico (agora nunca usado) é professo, que ou aquele que professa ou professou uma ordem religiosa. Tal como egresso é o indivíduo que largou o convento e confesso o monge que vivia em mosteiro.

[Post 4509]


4 comentários:

Bic Laranja disse...

Perdeu-se a noção do que era a vida no Antigo Regime. Com ela vão-se todos esses termos. E foi-se o Latim. Sem ele ficámos com o uso tão impróprio das palavras que ouvimos na linguagem corrente.
Cumpts.

Anónimo disse...

Já se sabe: propriedade de linguagem — procura-se.
Ademais, os tempos correm laicos e, ai de mim, republicanos e socialistas (à imagem e semelhança do que os pariu), numa palavra: profanos. E profanam o idioma.
Empregar «filiar» a propósito de religiosos é... diabólico: Pêro Botelho há-de ter parte no achado.
*
Aproveitemos pois para remar contra a maré, que é como se exercitam melhor os músculos, e sacudamos o pó à expressão idiomática e clássica de dizer, já que tão cedo não se nos vai deparar na tecla da novíssima vaga, tão moderna quanto minúscula no conhecimento dos foros e virtualidades da língua.
«Os clássicos [...] serviam-se da forma pronominal de “meter”, com nomes que significam profissão, ofício ou estado, significando segui-lo [...]: “meter-se frade, meter-se soldado”. São de Camilo estes exemplos: “Pois a menina vai meter-se freira?" (Anátema, X, 72). — “Então sempre lhe digo que vou para os Lóios, se a menina se mete freira?” (A filha do arcediago, IV, 40); de Teixeira de Vasconcelos o seguinte: “Se quer meter-se frade, eu não o impeço.” (Lição ao mestre, Vol. I, 110) e de Andrade Corvo estoutro: “Se ainda houvesse frades, meter-me-ia frade naquele momento.” (O Sentimentalismo, p. 13). O falecido e notabilíssimo filólogo Epifânio Dias registou na sua Sint. hist. port. a locução “meter-se frade” com este exemplo de frei Heitor Pinto: “que... se foi meter frade em França” e o lexicógrafo Roquete traduz assim a frase francesa “Se faire religieuse”: — tomar hábito, meter-se freira.»
Mas atenção: «Seguido da preposição “a” e de um verbo no infinitivo ou de determinados nomes, “meter-se” significa arrogar-se uma pessoa capacidades ou faculdades que não tem: Não hesita em se meter a julgar; quer meter-se a mestre; mete-se a poeta; quer meter-se a ensinar o que não sabe, etc. A preposição dá ao verbo carácter depreciativo, fazendo-lhe significar o aparentar ou afectar seguir uma profissão.»
Sim, fala Mário Barreto, Através do Dic. e da Gram., 1986, cap. LX.
Qual é o dicionário ou gramática moderna que se lembra destas preciosidades? Pergunta retórica.
— Montexto

Bic Laranja disse...

Quem me dera assimilar esta graciosidade das locuções antigas.
Não me posso esquecer desta lição.
Cumpts.

Anónimo disse...

Quando enviei o meu comento, ainda o primeiro de Bic não estava visível. Vejo que pensámos praticamente no mesmo, mas ele disse-o melhor.
— Montexto