Não o ser lendário
«Subitamente a sereia do barco apitou muito alto por duas vezes» (A Aventura no Barco, Enid Blyton. Tradução de Maria Helena Mendes. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 20).
Eis outro termo que, nesta acepção, está a cair em desuso, se não caiu já. Sereia. Ora vejam o que se passa com o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. Regista esta acepção, sim, mas de uma forma muito ínvia. Não será, decerto, a segunda acepção: «Física aparelho acústico usado para determinar a frequência de um som.» Passemos ao verbete de «sirene», a variante mais usada: «instrumento que produz um sinal sonoro de alarme ou de chamada», como primeira acepção, e «sereia», como segunda. Todavia, esta «sereia» só pode ser o tal aparelho acústico usado para determinar a frequência de um som. De «sirene» não há, como devia, nenhuma remissão para «sirena», mas fomos consultar o verbete desta variante. «Sirena» não tem definição, apenas uma remissão → sereia. Agora pergunto: quem tem a desfaçatez de afirmar que isto está bem feito?
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16 comentários:
O que eu posso dizer é que a mim me ensinaram que em português se dizia como reza a tradução da Aventura no Barco: «sereia». Para mim é assunto encerrado. A turba insensata dirá como lhe aprouver.
Ainda assim, abrindo a 8.ª do da Porto Ed., leio: «SEREIA s. f. ser lendário, metade mulher e metade peixe, que atraía os navegantes para os escolhos com a harmonia do seu canto; aparelho acústico usado em veículos e navios; [fig.] mulher sedutora ou de canto sedutor (Do gr. seirén, id. pelo lat. sirene-, “sereia, divindade marítima”).
E, muito casta, esta ed. nem remete para «sirene», sem embargo de já lhe fazer bom gasalhado registando-a, mas em «sirene» é que reenvia para «sereia». Tudo, porém, vai de mal a pior, e o da Porto Ed. não foge a regra tão pouco exceptuada.
Ao presente, contudo, quem atrai irresistivelmente o Lusíada, coitado, para escolhos fatais à sua loquela é o bifecamone, que nem precisa daquela harmonia mitológica, e que o austero Herculano identificava algum dia com o grasnar das rãs.
— Montexto
Na Póvoa de Varzim chamava-se "ronca" à sirene que soava, ritmadamente, em dias de forte nevoeiro, ajudando as traineiras a fazer-se ao porto de abrigo. Ficava situada junto do farol da Igreja da Lapa.
Montexto,
Herculano regressava, desiludido, de Inglaterra, e por isso até o seu idioma lhe soava mal. Mas você adora estas anotações eruditas e, sabiamente, põe-nas a render.
Ainda ontem, lendo um ensaio de José Maria da Costa e Silva, de 1852, anotei a altanaria com que se refere ao castelhano, pelas suas sonoridades arábicas...
Estas leituras essencialistas (quase biológicas) dos idiomas são, verdadeiramente, pitorescas. Mas não são de levar a sério.
Se bem me lembro, esse dito consta das notas de viagem «De Jersey a Granville». Mas, Venâncio, é que o barco se inclina de tal maneira para um dos bordos, que uma pessoa que sinta e siga o aviso de Burke posiciona-se e carrega logo no outro, só para equilibrar a nau e ir mantendo alguma proporção. Cuidei que tivesse adivinhado...
— Montexto
Perdoe-me o prezado Montexto: "posicionar" aderna por bombordo ou é coisa para não merecer conjugação?
Cumpts. :)
Explique-me lá a sua dúvida melhor, caro Bic, que eu fiquei in albis.
— Mont.
"Posicionar", o verbo; a par de "direccionar", "excepcionar", "visionar", "acessar" (esta é brasileira), &c., afunilando o idioma pela primeira conjugação. Rumamos para a conjugação única ou algo que o valha...?
Cumpts.
Ah, sim, «posicionar»! «Posicionar» já passou. Mas tem a sua razão: não afunilemos. Pensando melhor, se fosse agora, em vez de «posicionar» escreveria «postar». Também é da 1.ª conj., mas muito menos pernóstico e alambicado.
Escrever é rever: sem revisão não há propriamente escrita digna deste nome; só rascunhos.
— Mont.
Sim, Montexto, é nesse texto (desculpe o eco) de Herculano que está a anotação. E sim, percebe-se que alguém tente frear, pouco que seja, algum balanço mais destravado. Constate-se, por acréscimo, que você é menos fundamentalista do que pinta.
@ Montexto
Obrigado! De toda a maneira - e confrontando com o que o nosso anfitrião se tem batido contra os despropósitos de "colocar" - cuido que melhor fora pôr "colocar" pelo desenxabido "posicionar".
Cumpts.
Com efeito, assim é. Que quer? Vejo-me forçado a acentuar e até a exagerar este lado porque o vulgo profano pende naturalmente (eu acrescentaria: fatalmente) para o oposto. Nunca me esquece aquela de Schöenberg na tropa! Perguntava-lhe o sargento: — O Senhor é que é o Arnold Schöenberg? — Saiba o meu sargento que sim. Ninguém o queria ser, alguém o tinha de ser, de modo que sou eu.
— Montexto
Montexto,
É curioso como gente opinativa do seu tipo (e do de Araújo Correia e tantos mais) parece viver na convicção de um contacto directo (e portanto eficaz, salvífico) com os prevaricadores. Ora, você (e aqueles) só é lido pelos de iguais convicções. Pode, pois, exprimir-se menos apocalipticamente. Está entre gente já salva, meu.
Que havemos de fazer, Venâncio? O que depende de nós, quando muito. O resto não é connosco. Vamos atirando a nossa «Bouteille à la mer», pois
«Le vrai Dieu, le Dieu fort, est le Dieu des idées.
Sur nos fronts où le germe est jeté par le sort,
Répandons le Savoir en fécondes ondées ;
Puis, recueillant le fruit tel que de l'âme il sort,
Tout empreint du parfum des saintes solitudes,
Jetons œuvre à la mer, la mer des multitudes:
— Dieu la prendra du doigt pour la conduire au port» (Vigny).
— Montexto
Venâncio,
Gostava de ter sabido escrever o que escreveu.
Tem toda a razão!
Só o digo para que se não pense que está só.
Caro R.A.,
Devo esta 'sabedoria' a anos de debate com certo grupo linguístico catastrofista. Vi o tremendo gasto retórico que por ali se fazia, e fiquei saudavelmente vacinado.
Vae soli! Mas ainda bem! Assim o nosso bom Venâncio sempre se vai sentir mais aconchegado, em tão grata companhia.
*
Voltando porém a «posicionar»: por curiosidade fui à Infopédia, e deparou-se-me: «Posicionar. verbo pronominal: 1. tomar uma posição estratégica. 2. situar-se; definir-se.»
Tomar uma posição estratégica, situar-me e definir-me perante a adernagem da nau... é o que me convém lá riba! Não, não enjeito a coisa.
— Mont.
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