Estamos no mar
«Andros pôs o motor em andamento. O gasolina dirigiu-se para fora do pequeno porto, deixando para trás o Estrela dos Mares, belo, mas silencioso. Em breve se encontraram no mar alto, avançando aos pulos sobre os carneirinhos brancos que se levantavam de vez em quando» (A Aventura no Barco, Enid Blyton. Tradução de Maria Helena Mendes. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 139).
No mar, sim, mas por cima: carneirinhos (que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa ignora o que seja) são certo tipo de nuvens. Carneiro é cada uma das pequenas ondas de uma carneirada, que é um conjunto de pequenas ondas espumantes. E em inglês, sabem qual a palavra para «carneiros» naquela acepção? Talvez algum animal, também? Sim: white horses.
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11 comentários:
Em criança, a banhos na Póvoa de Varzim, ouvi muitas vezes os meus pais dizerem: "hoje não está bom para ir nadar - há muitos carneirinhos!"
Eram as pequenas ondas com espuma branca que indicavam nortada e frio.
«Carneirada», para o velho Morais (1789), são «as ondas em flor quando há vento»: definição, a bem dizer, poética e de sabor proustiano, antes da palavra (este bom Morais!); para o da Acad. das Ciênc. de Lx, 2001, tanto é «conjunto de carneiros, de pequenas ondas de rebentação…», como «conjunto de pequenas nuvens brancas e muito próximas umas das outras», e, por sua vez, «carneiro», tanto é «pequena onda de crista espumosa, por acção de brisa forte, precedida e seguida de muitas outras, assemelhando-se o conjunto a um rebanho», como «cada uma das pequenas nuvens brancas que cobrem por vezes o céu, fazendo lembrar um rebanho». Portanto, se as nuvens do céu (carneirinhos) podem ser carneiros para o Académico, não me admira que as ondas do mar (carneiros) possam ser carneirinhos para a tradutora; quando muito, pecadilho venial.
Em todo caso, mais uma vez reconheço a justeza das observações de Simon Leys sobre a tradução na obra citada atrás: «Le plus difficile, ce sont les expressions faciles. Je veux dire que les expressions abstruses et les termes rares se signalent d’eux-mêmes, on les voit de loin, ce sont des récifs dûment balisés, que l’on negocie avec prudence, dictionnaire en main. Le piége, ce sont les mots d’apparence simple et courante, que l’on croit connaître parfaitement — alors que dans le contexte qui nous occupe, ils peuvent relever en fait d’un vocabulaire technique ou spécialisé tout différent, ou d’un usage non codifié de la langue parlée» (p. 151-152).
A língua é um estudo interminável — «never ending», como diria João Paulo Martins, que já a sabe toda, e, de enfastiado, tem de espairecer de vez em quando com as frandunas.
— Montexto
franduno
adjetivo
1. que adotou hábitos e modos estrangeiros
2. que denota afetação; presumido, pretensioso
(do Dic. Houaiss)
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É caso para perguntar: porquê no feminino? quem é franduno?
Carneirinhos: a melhor definiçaõ é a do R.A. Apesar do Houaiss não ter esta acepção, é assim que na MB se denomina o que ele definiu. Sei porque cuidei e usei, sem precisar de dicionários.
Mas, carneirada, para o Moraes e para Silva Pinto,Diccionario da Lingua Brasileira,1832, copiando Rolland, Novo Diccionario da Lingua Portuguesa, 1808, ("ondas em flor quando faz vento forte") que imitou Moraes1789. Era assim que se fazia dicionários.
Vi agora que o Houaiss tem o verbo encarneirar:
"(1817-1819) 1 int. e pron. encrespar-se (o mar), formando pequenas ondas cujas cristas espumosas se assemelham a um rebanho de carneiros 2 int. e pron. encher-se (o céu) de nuvens pequenas e brancas ¤ etim 1en- + carneiro + -ar."
E o Sacconi também: "en.car.nei.rar (càr) v.i. ou v.p. 1. Formar (o mar) pequenas ondas semelhantes a carneiros brancos em movimento. 2. Cobrir-se (o céu) de muitas nuvens pequenas e brancas. As formas rizotônicas mantêm o ditongo fechado: encarneira; encarneire, etc. 2 É parassíntese: en- + carneiro + -ar".
Se o é, não parece, antes o incluiria no grémio dos novíssimos. Embora eu tivesse adoptado o moto de Disraeli — «never explain, never complain», — abro aqui uma excepção em atenção aos seus anos: «frandunas» — estrangeiras, estrangeiradas, como «franduleiras», «do port. ant. “Frandles”, hoje “Flandres”», reza o da Por. Ed. — refere-se às línguas ou expressões estrangeiras ou estrangeiradas do citado, e não propriamente a este.
Não tem de quê.
— Mont.
Velhíssimo,
Não se envergonhe nem nos envergonhe. Antes de aqui voltar, pense trinta vezes.
Caro Paulo, «era assim que se fazia dicionários»? Dar-se-á que alinhe com os que defendem essa construção negregada? Espero no deus da gramática que não, e que a coisa não passe de mera inadvertência...
— Mont.
CARNEIROS BRANCOS. As encapeladas ondas do mar alterado, que marram umas com outras à semelhança de carneiros.
In Elucidário... de Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, ed. crítica por Mário Fiúza, Porto, Civilização, 1993.
Má avaliação, Montexto;
não sou velhíssimo, mas também não sou novo.
Continuo gramatical prescritivo, mas não percebi que este 'fazia' tinha de ser do verbo pleno.
'Errando, corrigitur error'.
É bem capaz de o Velhíssimo pensar trinta e uma vezes e ainda assim cá voltar.
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