19.5.10

Ortografia: «jeremiada»

Isso nem foi o pior


      «Tenho um peso na consciência. Na última crónica usei a certa altura a expressão “pessimistas jeremíadas” para me referir às crónicas de Pacheco Pereira, Pulido Valente e Miguel Sousa Tavares. Peço desculpa. Trata-se de uma redundância: uma jeremíada é, por natureza, pessimista. Ainda tentei corrigir enviando uma emenda de última hora para “amargas jeremíadas”. Felizmente, não fui a tempo: uma jeremíada é sempre amarga; outra redundância. Quais eram as opções corretas? Repetitivas jeremíadas. Preguiçosas jeremíadas. Em última análise, redundantes jeremíadas» («Redundâncias», Rui Tavares, Público, 19.5.2010, p. 44).
      Consultei, num assinalável excesso de zelo, doze dicionários apenas para concluir o que já sabia: só jeremiada existe. Lamente-se, pois, Rui Tavares na próxima crónica pelos erros da penúltima e da última, reflexo, decerto, de uma silabada. O vocábulo chegou-nos da língua francesa, jérémiade, que também tem, como nós, o respectivo verbo, jérémier/jeremiar. Foi forjada a partir do nome do profeta Jeremias.

[Post 3481]

Actualização em 20.5.2010


Esdruxularias

      Vale a pena trazer para aqui a questão que se levantou nos bastidores. Comentou José João Leiria: «O Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia (que é também o autor desse verbete), regista no entanto “jeremíada”...
      Não se podem mudar os dicionários, desde que passaram a acolher também, por exemplo, “púdico”?
      De resto, se for possível dizê-lo assim, “jeremíada” parece-me mais eufónico (?) do que “jeremiada” — e o facto de vir do francês não ajuda.
      Exemplos (péssimos, provavelmente): qual é mesmo a acentuação francesa para Olympiade, Lusiades, Iliade

      Quanto à eufonia, acho precisamente o contrário. Tanto Carlos Ceia como Rui Tavares erraram, parece-me claro. E a explicação para o erro ter sido divulgado ainda é mais simples: em nenhum dos casos os textos foram revistos. Em relação à crónica de Rui Tavares, não é especulação minha: na conversa de revisores que anunciei aqui, uma copidesque do Público, Manuela Barreto, afirmou que nem todos os textos são revistos, e muito menos as crónicas, até porque alguns cronistas impõem como condição não serem (!) revistos. Gente modesta, decerto. Mas o panorama da revisão no Público ficou aqui traçado. Creio que se chegou àquele erro por uma espécie de condicionamento psicológico: raríssimas vezes ouvimos ou lemos (quantas vezes o leu ou ouviu o João José? Eu só o ouvi uma vez, da boca de um padre, em 1984. Escrito, só em dicionários) o vocábulo e como a associamos, e bem, ao nome Jeremias, é natural que se dê essa silabada, depois transposta para a escrita com a errada esdruxulização. Sabe-se, ao contrário do que o senso comum nos dirá, que os vocábulos com menor índice de frequência são os mais sujeitos a alterações fonéticas e ortográficas. Por outro lado, duvido que tenha sido por opção consciente, reflectida, informada, em suma, baseada no conhecimento de que os dicionários registam «jeremiada» que se chegou a «jeremíada». Quanto, finalmente, aos exemplos que aduz, não me parecem mesmo os melhores, e percebe porquê.

2 comentários:

zoto disse...

O Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia (que é também o autor desse verbete), regista no entanto «jeremíada»...

Não se podem mudar os dicionários, desde que passaram a acolher também, por exemplo, «púdico»?

zoto disse...

De resto, se for possível dizê-lo assim, «jeremíada» parece-me mais eufónico (?) do que que «jeremiada» — e o facto de vir do francês não ajuda.

Exemplos (péssimos, provavelmente): qual é mesmo a acentuação francesa para Olympiade, Lusiades, Iliade?