17.2.11

«Palavra de ordem», de novo

Mesmo entoada

      Muito bem: palavra de ordem vem do francês mot d’ordre e, já que não vivemos sem a expressão (lema ou divisa traduzirão bem a ideia contida na locução francesa?), pelo menos que se use adequadamente: «Estava marcada para se iniciar hoje a campanha “os dias da raiva”, movimento de contestação ao regime de Muammar Kadhafi, mas começou já ontem com milhares de líbios a saírem às ruas de Bengasi, entoando palavras de ordem que deixam pouco espaço para dúvidas sobre o sentimento popular neste país do Magrebe» («Começam ‘os dias da raiva’ contra o regime de Kadhafi», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 17.02.2011, p. 25). E lá está o gerúndio, como aqui...

[Post 4449]

20 comentários:

Anónimo disse...

Sim, mas…
O gerúndio exprime muitos matizes da acção, e, absolutamente condenável, em princípio só quando se substitui a orações adjectivas a significar características permanentes do qualificado; já, nas meramente passageiras, há quem o admita (cf., creio, M. Rodrigues Lapa, «Estilística da Língua Portuguesa»: tenho-a, mas não comigo).

«…milhares de sírios a saírem às ruas de Bengasi, entoando palavras de ordem…»: «saíram às ruas… entoando»: este «entoando» parece contemporâneo da acção de sair, ou então subsequente a ela, e até exprimir uma acção acessória àquela.
Ouçamos a lição de Epifânio Dias para estes casos nos §§ 316 e 317 da «Sintaxe Histórica Portuguesa», de que extraio só o seguinte:
«§ 316. a) 4) A forma verbal em “-ndo” […] equivale a uma oração temporal de “quando”, ou de “como” (quando se supõe a sucessão de acontecimentos).
b) ou exprime: 1) um modo ou facto acessório da acção principal: “Cai vomitando fumarada e sangue” (Cast., “Fast.”, G1); “Um homem agigantado e de fera catadura saiu da choupana murmurando sons mal articulados” (Herc., “Eur.”, 175).

§ 317. a) O presente do particípio em “-ndo” designa o que é contemporâneo da acção do verbo subordinante. Todavia, não resultando ambiguidade, também se emprega falando do que antecede a acção do verbo subordinante: “Musa, o amir de África, desembarcando nas encostas da Espanha novo exército, rendia Hispalis e, atravessando o Ana, submetia ao jugo do califa todo o ocidente da Península Ibérica” (Herc., “Eur.”, 167).
Outrossim pode designar uma acção subsequente à do verbo subordinante.»

Quem não possuir esta obra portentosa (eu topei dois exemplares em alfarrabistas, um de cada edição: um felizardo!) pode consultá-la em linha, na Biblioteca Nacional Digital.
- Montexto

Helder Guégués disse...

Rodrigues Lapa nem sequer condena, como Montexto e eu, o uso do gerúndio «francês» em vez da oração relativa, afirmando que, não apenas «não podemos nem devemos escrever hoje como no tempo de Fr. Luís de Sousa», como diz que autores como o P. Manuel Bernardes e Alexandre Herculano usaram esta construção. É bem possível, mas não vimos já que há maus exemplos em todos os autores, mesmo nos grandes?

Helder Guégués disse...

Talvez eu tenha medo da endorreia (a maioria das palavras terminadas em –rreia, aliás, não são coisa recomendável), que é o nome que os puristas dão ao abuso do gerúndio. Ademais, o valor temporal nem sempre é destrinçável.

Anónimo disse...

Sim, Rodrigues Lapa, neste aspecto, também é demasiado latitudinário para o meu gosto. Não posso esquecer, porém, aqueles livrinhos sápidos e sábios dos clássicos em doses homeopáticas que prefaciou e anotou a preceito... E, sim, também é de boa regra fugir ao gerúndio, ou em todo caso não abusar dele, como se tende a abusar por preguiça, cedência ao menor esforço e ao franciú (ainda que este já foi chão que deu mais uvas), ignorância e falta de brio, o que dá à prosa um jeito derreadinho e invertebrado. Ainda assim, o caso em apreço parece-me enquadrar-se nas lições de Epifânio, e é fácil encontrar exemplos do mesmo naipe em quase todos os autores, incluindo os melhores.
Mas quem tende a evitar gerúndios conte sempre com o meu beneplácito.
— Montexto

R.A. disse...

Encontrei com ajuda do sr. google esta curiosidade datada de 03/10/2007:

«O governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), encheu-se de coragem e demitiu por decreto o gerúndio de todos os órgãos da administração pública da capital, escreve o Estadão on-line.
O decreto, que tem quatro linhas em quatro artigos, foi assinado pelo governador Arruda no dia 28 de Setembroe foi publicado esta segunda-feira, dia 1 de Outubro, na página 19 do Diário Oficial do Governo do Distrito Federal.
«Fica demitido o gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal», lê-se no artigo primeiro do documento. No artigo segundo do decreto continua firme o ataque ao tempo do verbo, ligando-o à deficiência verificada no serviço público: «Fica proibido a partir desta data o uso do gerúndio para desculpa de ineficiência».
Curioso, é que o texto seguiu o padrão de todos os decretos e estabeleceu, no artigo quarto, o lugar comum «Revogam-se as disposições em contrário». Não se tem notícia de que algum decreto anterior tenha obrigado o uso do gerúndio nas repartições do Distrito Federal.
»

[http://www.g-sat.net/sabias-que-1347/gerundio-proibido-no-brasil-103332.html]

Venâncio disse...

Rui Araújo,

O gerúndio que o governador brasileiro 'demitiu' é outro.

Trata-se de usos do tipo "Estou mandando um mail para ele", "Estamos viajando para Miami", anunciando uma acção próxima, usos que - quanto se sabe - andam grassando pelo seu belo país e que enervam governadores e gente pedestre.

Paulo Araujo disse...

Não, Venâncio, estes se usam e é uma das características da nossa variante; o demitido é algo do tipo:
'Vou estar mandando um e-mail...', ou 'vou estar viajando para o México.' É o gerundismo exacerbado.
Nasceu com a maldita prática do famigerado telemarketing, que eu nem traduzo para não corromper ainda mais o idioma.

Anónimo disse...

A propósito do emprego do gerúndio, Helder, lembrei-me agora de umas boas observações de Agostinho de Campos nas introduções aos volumes que consagrou a Eça na sua «Antologia Portuguesa». Já se está ver por quê: exactamente pelo maior uso e às vezes abuso desta forma verbal em que então se caiu com o «francesismo», para empregar o título de um famoso texto de Eça.
- Montexto

Venâncio disse...

Tem toda a razão, Paulo Araujo. Era (vejo agora) esse gerúndio que eu tinha em mente.

Anónimo disse...

«Vou estar mandando...»!!! Bem compreendo o velho Flaubert: realmente a estupidez não tem limites.
- Montexto

Paulo Araujo disse...

Queiramos ou não, nem a língua.

Anónimo disse...

A língua pode não os ter, mas a boa língua de certa época tem-nos de certeza, como a arte, o estilo e em geral as boas maneiras: «Art, like morality, consists of drawing the line somewhere» (Chesterton).
- Mont.

Anónimo disse...

Por falar de estupidez ilimitada: parece que a moderníssima Leire Pajín, a das igualdades, prossegue afanosamente a sua campanha de imbecilização de Espanha (cf. F. J. Viegas, crónica de hoje, em linha). A coisa há-de ter inspirado das boas a Pérez-Reverte!...
- Montexto

Anónimo disse...

Ainda ontem, à noite, a ler mais umas págs. de Fazer pela Vida, um retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor, de A. Mega Ferreira, Assírio & Alvim, 2005, deparam-se-me estes exemplos:
• «Sai de casa e aluga um quarto na Rua da Glória, 4, apressando-se a pôr em prática a ideia que o obcecava», p. 41, mas frase citada de J. Gaspar Simões, Fernando Pessoa — Vida e Obra, 1.ª ed., p. 92;
• «As edições [...] dão-no [a um tal José Maria Martins] como industrial, condição que mantém em 1910 e nos anos seguintes, aparecendo no entanto, a partir de 1910, referido também como Proprietário», p. 53;
• «escrito provavelmente para edição, como tantos projectos seus, não passou das intenções, vindo a conhecer a publicação muito depois da sua morte», p. 127.
Destes são aos magotes, mas claro que os seus autores não os incluo precisamente no grémio dos que referi em anterior comento...
— Mont.

Venâncio disse...

Montexto,

Não sei se você sabe, mas ANTÓNIO MEGA FERREIRA é um habilíssimo prosador, decerto um dos dez melhores que temos de momento. Leia os contos de «As caixas chinesas» ou de «A expressão dos afectos» e certifique-se.

Anónimo disse...

Aqui lamento diversificar, Venâncio. Não desgosto de Mega, li-lhe Retratos de Sombras (cuido que é assim), e Roma serviu-me até de guia na urbe o Verão passado, e algo mais; aprecio-o sobretudo neste tipo de coisas — crónicas e coisas miúdas; mas daí a reputá-lo «habilíssimo prosador» vai uma distância que as minhas fracas forças não conseguem abarcar. Havia de lhe mostrar os meus exemplares: riscados de quinaus a cada linha!
— Mont.

Anónimo disse...

Mas, voltando à estupidez ilimitada, tema interminável — never ending, como adjectivou João Paulo Martins certa pinga recentemente na Revista de Vinhos. A propósito, hoje em dia quem quiser apreciar poesia genuína perlustre guias de vinhos: a pouca que resta refugiou-se lá toda, — acabam de me contar uma que não se pode perder em pouca gente. Pois bem: disse-me um amigo que a professora de música do seu filho encarregou a criança, de 10 anos, de dissertar sobre o significado de 4'33'', do inefável John Cage.
Digna de entrar direitinha para a sequela do dicionário de Flaubert que, sem falta, alguma boa alma se encarregou ou encarregará de continuar...
— Mont.

Venâncio disse...

«Havia de lhe mostrar os meus exemplares: riscados de quinaus a cada linha!»

Há no classicismo uma sumptuosidade desumana. Eu gosto. Mas sou um degenerado.

R.A. disse...

Caro Venâncio,
O meu nome não é Rui Araújo.

Venâncio disse...

Peço desculpa, R.A.