Olívia Santos, no noticiário das 7 da tarde de ontem na Antena 1, fez uma síntese da cerimónia de tomada de posse da nova presidente no Brasil, com excertos intercalados do discurso («Meus queridos brasileiros e brasileiras […]. A partir desse momento, sou a presidenta de todos os Brasileiros». O Jornal do Brasil transcreveu de forma infiel e normalizadora: «A partir deste momento, sou a presidente de todos os brasileiros»). E foi dizendo que a nova presidente «fez honras ao seu antecessor», «reconheceu até onde Lula levou o Brasil», «arrancou para a apresentação de um verdadeiro programa de governo», «num tom sempre determinado», e por aí fora. E depois: «Já quase no final, a força virou emoção, a voz embargou e Dilma chorou.» Salvo melhor opinião, o verbo embargar, na acepção em que foi usado (tornar-se a voz pouco clara), é pronominal e não transitivo directo. Logo, deveria ter dito «a voz embargou-se-lhe». Também podemos, isso sim, embargar a voz (ou o pranto), isto é, reprimi-la, contê-la. Na obra de Herculano Eurico, o Presbítero, lemos: «A ventura embargava-lhe a voz.» Neste exemplo, e noutros da mesma obra (a Lua embarga com o seu clarão pálido o cintilar das estrelas; o Agareno vê coriscar em alto o franquisque e logo o sente embargar-lhe o último grito na garganta; uma convulsão horrível de pavor embarga na garganta os sons articulados; alguém procura abrir os fortes cancelos que lhe embargam os passos, etc.), é transitivo directo.
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12 comentários:
Apesar de incompreendida, «presidenta» lá fará o seu caminho; a presidenta, não sei.
- Montexto
Eis um cliché que, como tantos outros, fomos buscar a Castela.
1659: «por medio de los ojos y oídos, embarga la voz, llama la admiración y el pasmo»
1682: «blanda fatiga, agradable, dulce, del sueño mi voz embarga»
E este magnífico exemplo, que mostra o funcionamento do cliché:
«Sentí un estremecimiento. «Con la voz embargada grité: - ¡Isabel!... ¡Isabel!...» (Valle-Inclán, Sonata de otoño, 1902, destaque meu).
Eu bem digo que no Brasil não se fala Português. É que as calinadas são tantas, quer nos meios de comunicação social, quer entre governantes e até professores, que não se pode dizer que no Brasil se fala Português minimamente correcto.
É o fruto de uma sistema de ensino de péssima qualidade em que todos passam e a exigência é nula. Mas o mais grave é que no que toca a ensino, estamos a seguir o passos do Brasil, com (maus) resultados já visíveis.
No caso, "a voz embargou", tal como está, não foi usado como intransito, ao invés de transitivo direto, Helder?
«a voz embargou-se-lhe» dificilmente seria pensado, ouvido ou escrito no Brasil; nossa variante não se acostumou à mesóclise. Melhor seria ter copiado o exemplo da acepção 2 do Houaiss: "a emoção embargou sua voz".
Decerto, é uma solução só para Portugal.
Nunca me baixaria a ideia de suspeitar da genuinidade lusitana de «embargar» e «embargo» nesse e noutros contextos, - em todo o caso muito mais e melhor português do que «cliché» em qualquer.
- Montexto
Já no velho Morais, 1789: «Embargar: [...] § Reprimir, atalhar v.g. "embargar a voz, o pranto".»
- Mont.
Quanto ao Anônimo que criticou nossas 'calinadas', digo-lhe que no Brasil falamos português, sim, em uma ligeira variante, como não podia deixar de ser (Exemplo: não usamos o vocábulo 'calinada', em que pese constar esse galicismo antroponímico de todos os dicionários). Mesmo porque, não tivemos o direito de escolha, desde 17 de agosto de 1757. Mas também não nos arrependemos disso.
Já agora folgo de ajuntar que um dos escritores mais correctos e de feição mais clássica da língua portuguesa no século XX é precisamente o brasileiro Graciliano Ramos.
Mas também me parece que as coisas mudaram algum tanto depois dele...
- Montexto
Conjugação reflexa e pronominal, tudo junto?!... São pronomes a mais para os trópicos. Pior só a mesoclise.
Cumpts.
Mesóclise.
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