31.10.06

Problemas de lexicografia

Fraldas e borboletas

Numa fase da vida em que palavras e expressões como colostro, córion, corpo lúteo, saco vitelino, vérnix caseoso, antiemético, prolactina e dezenas de outras passaram a fazer parte do meu vocabulário, não me passaria despercebido o vocábulo «fraldário». O Centro Comercial Colombo, por exemplo, tem um fraldário. Na definição do Dicionário Houaiss: «fraldário s. m. local público com instalação especial para a mudança de fraldas de crianças (p. ex., em centros comerciais, em praias etc.).» É dos poucos dicionários que registam este novo termo. Contudo, vê-se que é necessário acrescentar uma nova acepção, pois que o conceito e a realidade existem: a de móvel em que se muda a fralda às crianças.
De facto, o recurso ao sufixo -ário, um dos mais produtivos em língua portuguesa na formação de adjectivos e substantivos, deu origem a um vocábulo bem formado, eufónico e necessário. (Ainda recentemente se lia no Diário de Notícias: «Borboletário único na Europa abriu a portas por um dia», Diana Barros, 11.09.2006, p. 29. Ora, experimentem abrir um dicionário e procurem o vocábulo «borboletário». E ainda há quem diga que a língua portuguesa está fossilizada…)
Hão-de convir que não é muito prático dizer: «Se faz favor, queria um móvel onde se mudam as fraldas às crianças.» Neste aspecto, os Espanhóis não nos ganham, já que têm de dizer, num circunlóquio, «un mueble para cambiar pañales».
E, a propósito de «pañal», veja-se o que diz o Dicionário de Espanhol-Português da Porto Editora, da autoria de J. Martínez Almoyna: «pañal, s. m. cueiro, fralda de criança; fralda da camisa do homem; pl. cueiros; fig. primeiros princípios de educação; estar uno en pañales, ter pouco ou nenhum conhecimento duma coisa.» Faz corresponder directamente ao espanhol pañal o português cueiro. Tratando-se de uma palavra corrente, não confundiria o leitor português. O leitor espanhol, todavia, poderia ser induzido em erro, pois na realidade ao espanhol pañal corresponde, em termos de frequência, o português «fralda». Só como sinónimo se deveria indicar o vocábulo «cueiro». Se o dicionário fosse muito completo, poderia indicar igualmente o provincianismo «panal». É pena que a última edição deste dicionário, de Agosto de 2005, não tenha acolhido a proposta do professor Álvaro Iriarte Sanromán, da Universidade do Minho, que dava a seguinte redacção ao verbete:

«pañal […] s.m. Fralda (peça de material absorvente para envolver as nádegas das crianças de peito); Los pañales desechables son hechos de celulosa: As fraldas descartáveis são feitas de celulose. 2. Cueiro, fralda (faixa de pano para envolver as nádegas das crianças de peito); Hay que cambiar los pañales del niño para proteger la piel: É preciso mudar os cueiros do bebé para proteger a pele. • Estar en ~s: Estar a zero.»

30.10.06

Tradução: «girola»

Buscas infrutíferas

O leitor Luís C. Martins pergunta-me como se deve traduzir o termo espanhol girola. Para quem não sabe, é uma palavra comum em arquitectura e história de arte e significa, segundo o Diccionario da Real Academia Española, «nave o conjunto de naves que en la arquitectura románica o gótica circundan el altar mayor, rodeadas por el ábside, y, por extensión, la misma nave en catedrales o iglésias de cualquier estilo». Ou seja? Continuamos a ter dicionários bilingues mal estruturados, que, em vez de darem o termo equivalente, nos dão a definição, o que é quase sempre inservível num trabalho de tradução. Apesar de o DRAE registar que é um vocábulo de etimologia desconhecida, podemos quase seguramente dá-lo como derivado do francês carole — que em português deu charola. Muito conhecida, entre nós, é a charola do Convento de Cristo. O termo deambulatório é sinónimo.

«Charola, s. f. Corredor semicircular entre o corpo da igreja e a fábrica do altar-mor» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa).

«Carole subst. fém. ARCHIT. Circuit des bas côtés qui entourent le chœur d'une église où ils forment l'abside. (GAY t. 1 1887). Carole de chœur (Nouv. Lar. ill.). (Le Trésor de la Langue Française Informatisé).

28.10.06

Tradução: «esperpento»

A esmo

Se compreendo o que pode levar um tradutor a verter o espanhol cañones para cânones, entre muitos outros exemplos reais e frequentes de que já aqui tenho falado, é em vão que me esforço para perceber porque é que vocábulos que não existem, nem sequer vagamente semelhantes, na língua de chegada, ficam tal qual nas traduções. Vejamos um caso.
«El carácter sombrío de sus composiciones (Las coristas, La visita del obispo, Los desheredados, etc.) le relacionó con la tendencia al esperpento, característica de algunos escritores de la generación del 98, y com un fondo plástico de tipo goyesco.» O tradutor, num momento de displicência absoluta, traduziu assim: «O carácter sombrio das composições (As Coristas, A Visita do Bispo, Os Deserdados, etc.) relacionou-o com a tendência para o esperpento, característica de alguns escritores da geração de 98, e com um fundo plástico de tipo goyesco.»
No contexto, esperpento, vocábulo cuja etimologia se desconhece, poderá traduzir-se por «grotesco». Segundo o Diccionario de la Real Academia Española, significa «1. m. Hecho grotesco o desatinado. 2. m. Género literario creado por Ramón del Valle-Inclán, escritor español de la generación del 98, en el que se deforma la realidad, recargando sus rasgos grotescos, sometiendo a una elaboración muy personal el lenguaje coloquial y desgarrado. 3. m. coloq. Persona o cosa notable por su fealdad, desaliño o mala traza».

Acrónimos

Serviço público


      Alguns, poucos, jornais publicam regularmente textos de especialistas sobre a língua portuguesa. O Correio da Manhã tem Ferreira Fernandes. Criativo, com um domínio notável da língua, culto, na sua pequenina coluna na última página do jornal faz as vezes de consultor linguístico:

«A mentira do acrónimo

Quando apareceram, deram-lhes um nome: SCUTS. Se assassinaram o belo nome de ‘liceu’ para inventar a ‘escola secundária C+S’, pareceu-nos normal baptizar estradas com um palavrão. Os mais letrados sabiam que aquilo era um acrónimo: isto é, abreviaturas que se tinham transformado em palavra comum. Mas raros sabiam o significado das abreviaturas. Passámos a dizer SCUTS para aqui, SCUTS para ali, como se disséssemos Álea das Margens Verdejantes. Os tempos não estão para poesia. Um destes dias, vieram dizer-nos: os asfaltos, tal como os almoços, não são grátis. Por esta altura, quantos se recordam que SCUTS quer dizer estradas Sem Custos para os UTilizadoreS? E se alguém protesta pela incoerência do nome, haverá quem responda: “E ONU é de Nações Unidas, é?”» (Correio da Manhã, 20.10.2006, p. 52)

Léxico: «xátria» ou «chátria»

Janelas cegas

      Os meus leitores já perceberam há muito a minha predilecção pelo Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado. Desde o início dos anos 80 a usá-lo, conheço-o relativamente bem. Considero-o muito bom, mas, como é inerente a tudo o que é criado pelo homem, com falhas. Uma delas constitui mesmo, devo dizê-lo, um dos mais graves erros em lexicografia: algumas entradas, sem a respectiva definição, remetem para entradas inexistentes. É o que acontece, por exemplo, com o vocábulo «xátria», cujo verbete remete para «chátria», considerado mais correcto, mas que não se encontra no dicionário. De qualquer modo, convenho que seria muito mais grave que um dicionário actual o fizesse, quando se dispõe agora de meios tecnológicos avançadíssimos.
      E a propósito de xátria, devo referir um texto («Conversões em massa entre os ‘intocáveis’», p. 37), publicado na edição de 21 de Outubro do Expresso, da autoria de Constantino Xavier, correspondente em Deli, em que se utiliza o vocábulo. Refiro-o, contudo, pelo aportuguesamento bem conseguido de outros vocábulos. O lead: «Os dálitas, ou ‘intocáveis’, a mais baixa das castas indianas, estão a abandonar o hinduísmo para se converterem ao cristianismo e ao budismo.» Mais à frente: «Especialmente no mundo rural, são frequentes os casos em que os dálitas (como preferem ser chamados) são impedidos de aceder a poços de água comuns, proibidos de entrar em espaços públicos e assassinados por casarem com parceiros de castas superiores.» E todas as castas lhes são superiores, isto porque «segundo a tradição hindu, as castas evoluíram a partir do corpo divino — os sacerdotes brâmanes da cabeça, os guerreiros xátrias dos braços, os comerciantes vaixás das coxas e, finalmente, os trabalhadores sudras dos pés. Só os ‘intocáveis’ ficaram de fora, impedidos de aspirar à reincarnação».
      Claro que preferem ser chamados dálitas (dalit), porque é muito mais sugestivo da condição social em que estão recluídos, pois «dálita» significa «oprimido». Anteriormente, eram chamados achuta. Gandhi, por sua vez, deu-lhes o nome harijan (filhos de Deus).
      Finalmente, leio neste texto outro aportuguesamento, este de um topónimo: «Nos estados onde o partido nacionalista do Bharatiya Janata Party forma governo (Rajastão, Guzerate e Madia Pradexe), já foram adoptadas leis que proíbem ou limitam as conversões, impondo, por exemplo, autorização policial prévia.» Refiro-me, neste caso, a «Madia Pradexe». De facto, esta é uma forma de representarmos o som final [sh], à semelhança, por exemplo, do inicial, como em Xangai.

27.10.06

Léxico: celação


Amor tussisque non celantur.
O amor, como a tosse, não se esconde.

OVÍDIO
Esconde-esconde

Pelas mais diversas razões, há mulheres que escondem a gravidez. Avultarão os casos em que se trata de adolescentes que têm de esconder o estado em que se encontram por temerem a reacção dos pais. Há um termo na língua portuguesa, registado em poucos dicionários e que nunca vi ser utilizado, que refere essa atitude: celação. Se o critério para admitir um determinado vocábulo nos dicionários fosse apenas a frequência com que é usado, poucos nos restariam, e, de expurgo em expurgo, um dicionário de escassas páginas acolheriam todo o nosso património lexical. Ora, como nem é de estranhar, o Dicionário da Academia deixou à porta o vocábulo «celação». Ao invés, o Dicionário Houaiss regista-o. Do latim celatione-, pertence à mesma família das palavras «cela», «céu» (coelum, em latim), «clandestino» e, mais estranhamente, «cor», entre muitas outras. O verbo correspondente é celare.

«Celação, s. f. (do lat. celatione-). Acto de ocultar uma deformação ou um fenómeno fisiológico, como a gravidez (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coord. por José Pedro Machado).»

«celação s.f. dissimulação ou encobrimento de deformação ou fenómeno fisiológico, como a gravidez. ■ ETIM lat. celatio,onis ‘acção de esconder’, do v. celo,as,avi,atum,are ‘ocultar, esconder, encobrir, iludir’ (Dicionário Houaiss).»

«celation n. Med. The concealing of pregnancy, or of the birth of a child [L celatio, -onis, celare conceal] (The New International Webster’s Comprehensive Dictionary of the English Language).»

26.10.06

«Oxford English Dictionary»


Ladrilhos e dicionários
     

      Ao passar por uma confeitaria na Baixa (às vezes saio de casa…), vi na montra uma pirâmide de ladrilhos de marmelada. Não será, convenho, uma expressão muito comum, mas que é bonita, sugestiva, isso parece-me inequívoco. E ao pensar nisto, lembrei-me da palavra brick-tea e do Dr. William Chester Minor. Sabem quem é? Foi um dos mais prolíficos colaboradores do Oxford English Dictionary, com cerca de 10 mil fichas de abonações. Semanalmente, da sua cela do Hospital Prisional Psiquiátrico de Broadmoor, Berkshire, onde estava rodeado de livros antigos, enviava os seus verbetes manuscritos para o Scriptorium, em Oxford, a sede da equipa do OED, liderada pelo Dr. James Murray. Uma história admirável que, um pouco romanceada, se pode ler na obra O Professor e o Louco, de Simon Winchester, traduzida por Eugénia Antunes e publicada pelo Círculo de Leitores e pela Temas e Debates, em 2001. Capitão-médico do Exército dos Estados Unidos da América, Minor nascera em 1834 na ilha de Ceilão, o que de alguma maneira explica o fascínio que sentia pelas palavras anglo-indianas — como brick-tea: «folhas de chá prensadas em forma de pequenos tijolos ou ladrilhos, outrora usados pelos Chineses como moeda em trocas comerciais» (p. 162 da obra citada). Como diria Camilo, esta é uma obra que não merece perder-se no mar morto das bibliotecas inúteis.


25.10.06

Lógica: dilema

Dilema duplo

Um velho professor de Lógica faz um acordo com um dos seus alunos. O aluno estaria desobrigado de pagar as lições no caso de perder a sua primeira causa. Findo o curso, o estudante não aceitou nenhuma causa. A fim de cobrar a dívida, o mestre processou-o. O jovem defendeu-se com este argumento: ou ganho ou perco a causa. Se ganhar, não terei de pagar as lições (porque o professor terá perdido a acção de cobrança); se perder, também não terei de pagar as lições (em vista do acordo feito com o professor). Logo, não terei, em qualquer caso, de pagar as lições.
O professor, no entanto, redarguiu deste modo: ou ganho ou perco a causa. Se ganhar, o aluno terá de pagar-me (porque terei ganho a acção de cobrança); se perder, o aluno também terá de pagar-me (porque terá vencido a primeira causa). Logo, o aluno terá de, em qualquer caso, pagar.


(Adaptado da obra Lógica, de Wesley C. Salmon, 6.ª ed., Guanabara-Koogan, Rio de Janeiro, s/d.)

Moçárabes e muladis

Etimologia mística

Nome que se dava aos cristãos da Hispânia e da Sicília submetidos aos muçulmanos? São os moçárabes, pois claro. Para alguns, provém do árabe must’arab, que literalmente significa «o que se tornou árabe, que provém de outra raça». Segundo outros, procede do hebraico môsha hárâbba, qualquer coisa como «salvação ampla, plena». À primeira vista, até se diria o contrário: para os muçulmanos, a conversão significaria a completa salvação daqueles bárbaros.
Por vezes apresentado como sinónimo, mas que o não é, muladi (do árabe hispânico muwalladin, pl. de muwállad, e este do árabe clássico muwallad, «engendrado de mãe não árabe») era o cristão espanhol que durante a dominação dos árabes em Espanha abraçava o Islamismo e vivia entre os muçulmanos. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa apresenta-nos uma definição algo nebulosa: «Muladi, adj. e s. 2 gén. Designação dada pelos historiadores árabes muçulmanos aos habitantes da Península Hispânica filhos de convertidos ao Cristianismo.» Nem o Dicionário Houaiss nem o Dicionário da Academia registam o vocábulo «muladi», falha mais estranha no primeiro que no segundo.
A diferença, apesar de tudo, é clara: o moçárabe estava submetido aos muçulmanos, mas conservava as suas crenças e o direito de continuar a praticar a sua religião. O muladi, por seu lado, é o cristão que se converteu ao Islamismo.
[Espanhol: muladí e mozárabe.]

24.10.06

Nomenclatura dos seres

Ratos e muito queijo

      «O Mus Cypriacus foi identificado na ilha mediterrânica de Chipre — daí o nome a condizer — e o seu estudo foi publicado na revista científica Zootaxa. […] E o seu estudo revelou que os Mus Cypriaticus [sic] pertence afinal à mesma espécie desses roedores da Idade da Pedra e é um verdadeiro fóssil vivo, que chegou até hoje, vindo do passado» («Há uma nova espécie de rato na Europa», Filomena Naves, Diário de Notícias, 13.10.2006, p. 23). Apesar de já aqui ter abordado esta questão duas vezes (ver textos «Moderna e um pouco burra» e «Napoleão não é para aqui chamado»), não será excessivo, dada a frequência do erro, dedicar-lhe mais um texto.
      A nomenclatura científica, escrevi então e mantenho enquanto não se realizar outro congresso que altere as regras, exige que no nome composto dos seres vivos se grafe com maiúscula a inicial da primeira palavra e com minúscula a da segunda. Uma vez que a jornalista cita a BBC News online, deveria ter reparado que é assim que está grafado: «To understand the history of Mus cypriacus, Dr Cucchi and colleagues compared the shape of its teeth with fossils of mice collected on Cyprus.» Naturalmente que, falhando a jornalista, os revisores deveriam emendar.

Sefarditas e asquenazitas

A importância da Bíblia

A leitura da Bíblia devia ser obrigatória. Claro, num Estado laico, só os pais poderiam obrigar (ou, se parecer muito coercitivo, incentivar, estimular o interesse) os filhos a ler este texto fundamental da cultura universal. Recentemente, alguém me perguntava que nome se dá aos judeus da Europa Central e de Leste. Depois de ter respondido que era asquenazitas ou asquenazins (do hebraico אַשְׁכֲּנָזִים), que falavam o iídiche, ao passo que aos judeus da Península Ibérica se dava o nome de sefarditas ou sefardis (do hebraico ספרדים), que falavam ladino, acrescentei que na Bíblia poderia encontrar a matriz semântica do nome, pois que no Génesis (10,1-5) se pode ler: «Esta é a descendência dos filhos de Noé: Sem, Cam e Jafet. Nasceram-lhes filhos após o dilúvio. Filhos de Jafet: Gomer, Magog, Madai, Javan, Tubal, Méchec e Tirás. Filhos de Gomer: Asquenaz, Rifat e Togarma. Filhos de Javan: Elicha, Társis, Kitim e Rodanim. Deles nasceram os povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações.»

23.10.06

Uso da maiúscula

Letra grelada

«Um dos primeiros museus do país surgiu na capital baixo-alentejana, pouco depois da refundação da diocese, em 1770, por iniciativa de Frei Manuel do Cenáculo, revela José António Falcão» («Diocese de Beja inaugura mais um núcleo da sua rede museológica», Carlos Dias, Público, 10.10.2006, p. 53).
«Para a presidência da Real Mesa Censória [o marquês de Pombal] escolheu o bispo de Beja, frei Manuel do Cenáculo (1724-1814), pois conciliava as qualidades exigidas de “varão dos mais sábios e autorizados” e “erudito nas letras sagradas e humanas; prudente, zeloso do argumento da Religião e do Estado e bem instruído nos direitos do sacerdócio e do Império”» («Cenáculo e a censura intelectual», António Valdemar, Actual/Expresso, 7.10.2006, p. 62).

Apesar de viver num século caótico no que respeita à grafia do português, foi o poeta António Feliciano de Castilho que em certa ocasião se referiu ao uso injustificado das maiúsculas como «letra grelada». Este malfadado vezo continua ainda hoje. A ideia de que a maiúscula serve para salientar determinadas palavras a que se dá especial valor perdeu-se em grande parte. Para não me cingir ao presente, cito um opúsculo que tenho à minha frente intitulado Regras para Aprender a Língua Portuguesa segundo o Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro, da autoria de J. Estêvão Pinto. Na parte final desta obra, na secção «Frases de aplicação de algumas regras», pode ler-se: «O marquês de Pombal foi ministro de D. José I»; «O rei da Inglaterra chama-se Jorge».
Há, sei perfeitamente, casos muito mais injustificados de uso da maiúscula, sobretudo quando inclui a palavra «presidente». Vejamos alguns:

«O chefe da diplomacia da Bielorrússia, Sergei Lavrov, veio ontem dizer que a polícia mostrou “mostrou contenção e paciência” durante as manifestações que, ao longo de toda a semana, encheram as ruas de Minsk em contestação à reeleição do Presidente do país, Alexander Lukachenko» («Ministro bielorrusso diz que polícia foi “contida”», Público, 27.3.2006).
«Antes de sobrevoar a Base Naval de Lisboa num helicóptero Lync, o Presidente esteve embarcado na fragata Corte Real. Aqui assistiu a dois briefings, um do CEMA sobre os meios e objectivos da Armada, outro em pleno centro de comando do navio sobre a operação virtual em que “participou”» («Presidente elogia esforço do Governo com militares», Manuel Carlos Freire, Diário de Notícias, 1.06.2006, p. 5).
«A intervenção do Presidente afegão surge num momento em que as forças da NATO desencadearam uma importante ofensiva no Sul do país — considerado um dos bastiões dos talibãs — para o subtrair ao controlo de facto dos islamitas, entrando em zonas onde o Governo de Cabul não tem meios para fazer sentir a sua presença» («Karzai adverte Ocidente para fracasso afegão», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 23.06.2006, p. 11).
«Candidato da esquerda a Presidente paralisa Cidade do México» (Dulce Furtado, Público, 1.08.2006, p. 19).

21.10.06

Pluralização de marcas


Então, o que é que se diz aqui?

Segundo o Diário de Notícias, «rejuvenescer e posicionar o Licor Beirão como a primeira bebida da noite, assim como divulgar a nova rotulagem da garrafa é o objectivo da mais recente campanha da marca» («Licor Beirão quer rejuvenescer imagem»). A jornalista Sofia Canelas de Castro, do Correio da Manhã, esteve no local das filmagens do novo anúncio da marca e conta-nos o que (ou)viu: «De volta ao ‘set’ de filmagens, Quintela repete-se, sem revelar cansaço. “Então, o que é que se bebe aqui? Sirva já três licores Beirão, um com sombrinha para a senhora.”» Pois é, mas o que nós ouvimos no anúncio é: «Então, o que é que se bebe aqui? Sirva já três Licor Beirão, um com sombrinha para a senhora.»
Terá a jornalista do Correio da Manhã pretendido corrigir, mesmo inconscientemente, ou ouviu mal? De facto, é com alguma estranheza que ouvimos a sequência «três Licor Beirão». Porque é que não se faz a concordância se os nomes são todos portugueses? Se a marca tivesse uma grafia estranha à língua portuguesa, seria de admitir a referência ao plural através do singular, porque haveria então uma elipse: «Por favor, dê-me três [comprimidos da marca] Atarax.» No caso que nos ocupa, há uma segunda dificuldade: o substantivo «licor» faz parte da marca: «Licor Beirão». Se pluralizarmos, será o todo, que passará assim a nome comum: «licores beirões». Uma solução de compromisso seria pluralizar somente o substantivo «licor», tanto mais que a estranheza no anúncio advém de se usar «três licor» (foi a «solução» da jornalista Sofia Canelas de Castro).
Havia uma forma de contornar — que por vezes se revela a melhor opção — a dificuldade, que era dizer: «Então, o que é que se bebe aqui? Sirva já três cálices de Licor Beirão, um com sombrinha para a senhora.» Talvez fosse menos eficaz e criativa, mas seria incontestavelmente a mais correcta.

20.10.06

Frutariano?

Sobre dietas

Se come carne, é carnívoro; se come frutos, é frugívoro; se come vegetais, é… vegetariano? Pelo menos no Brasil, a quem se alimenta de frutos também se dá o nome de frutariano, à semelhança de vegetariano. Frutariano vem do inglês fruitarian, que, não estando muito presente em dicionários, é relativamente fácil de encontrar em certas obras. Leio-a, por exemplo, na autobiografia de Gandhi: «It may be recalled that during the whole of this period of penance I was a strict fruitarian» (An Autobiography — The Story of My Experiments with Truth). Vegetariano vem do inglês vegetarian (embora, possivelmente, através do francês végétarien), e é um vocábulo relativamente recente. Foi, tanto quanto é possível dizê-lo, usado pela primeira vez na reunião fundacional da Sociedade Vegetariana do Reino Unido, realizada em Northwood Villa, Kent, a 30 de Setembro de 1847. Antes, os que não comiam carne eram conhecidos por pitagóricos, porque Pitágoras seguia este regime alimentar.
Claro que o elemento -voro é muito mais abundante, por razões óbvias, na nossa língua. Deixo apenas alguns exemplos:

aerívoro
apívoro
aurívoro
bananívoro
carnívoro
crudívoro
culicívoro
detritívoro
florívoro
formicívoro
frugívoro
frutívoro
fumívoro
glandívoro
graminívoro
granívoro
herbívoro
hominívoro
ignívoro
insectívoro
lardívoro
larvívoro
leguminívoro
lenhívoro
lignívoro
limívoro
melívoro
merdívoro
mucívoro
muscívoro
nucívoro
omnívoro
orizívoro
ossívoro
ovívoro
piscívoro
putrívoro
radicívoro
ratívoro
sacarívoro
salicívoro
sanguívoro
vermívoro
viscívoro

19.10.06

Ortoépia: algoz

E quem o diz?

Na resposta, hoje, a uma dúvida de uma consulente, a consultora do Ciberdúvidas Eva Arim afirma que o substantivo comum «algoz» se pronuncia com o aberto [ó] no português europeu, e no português do Brasil com o fechado [ô], como no vocábulo «arroz». Ora, não me parece. No Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, farol que continua a conduzir-nos, recomenda-se a pronúncia com o fechado. Seguindo-lhe a lição, o mesmo se afirma em obras como o Prontuário Fácil da Língua Portuguesa, de D’Silvas Filho, ou o Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa, de Magnus Bergström e Neves Reis, entre muitas outras. Como nada mudou, e como poderia mudar?, continuarei a seguir o que se diz nestas obras.

Estrangeirismos: uso e abuso

Para inglês ler

Com o tempo, os dicionários unilingues de português vão-se tornando menos úteis do que dicionários bilingues, em especial os de inglês/português. O que é, diga-se já, atribuível em grande parte aos jornalistas.
Foi com muito agrado que li na obra Tudo o que se passa na TSF — … para um «livro de estilo» (Editorial Notícias, 2003), da autoria de João Paulo Meneses: «O uso de estrangeirismos na comunicação social (um dos prazeres secretos de muitos jornalistas!) é uma forma de erudição. Mas não é a única. Há outras maneiras de contrariar (consciente/inconscientemente?) aquilo que todos aceitam serem duas das principais regras da escrita — neste caso — da rádio: simplicidade e clareza. Na “aldeia global”, os estrangeirismos são cada vez mais frequentes e inevitáveis, mas nem por isso mais desejáveis ou correctos. Como regra, devíamos recusar todos os estrangeirismos, embora se aceitem algumas excepções. Quais? Aquelas palavras que sabemos serem já do domínio público e que admitimos pertencerem ao universo lexical dos nossos ouvintes (ou seja, aquelas que são descodificáveis de imediato)» (pp. 141-142).
À luz desta regra, tão sensata e enunciada por um jornalista, é claro que é completamente injustificável o uso de «draft» na citação que se segue. «Esta proposta consta de um draft da Unidade de Missão para a Reforma Penal, dirigida por Rui Pereira, que vai entregar no início de Novembro ao Governo o projecto de lei de política criminal. […] A discriminação racial, religiosa ou sexual também faz parte, no draft que a Unidade de Missão já elaborou, das prioridades da política criminal» («Mulheres grávidas que abortem não devem ser julgadas», Ana Sá Lopes, Diário de Notícias, 12.10.2006, p. 19).
O que a jornalista pretendia comunicar não o pode ser na língua portuguesa? Faltam-nos termos para o exprimir? Pelo contexto, parece tratar-se do que em inglês se diz «draft material», algo como «projecto de documento», «projecto de lei» (expressão que a jornalista acaba por usar na primeira frase) ou mesmo «documento intermédio» ou «documento provisório».
Gostava de ver a jornalista Ana Sá Lopes entrar em cafés e centros comerciais, por este país fora, e perguntar aos leitores do Diário de Notícias se perceberam a notícia nesta parte.





«Draft: c.1500, spelling variant of draught (q.v.) to reflect change in pronunciation. Meaning “rough copy of a writing” (something “drawn”) is attested from 14c.; that of "preliminary sketch from which a final copy is made" is from 1528. The meaning “to draw off a group for special duty” is from 1703, in U.S. especially of military service; the v. in this sense first recorded 1714. Draftee is from 1866. Sense in bank draft is from 1745» (Online Etymology Dictionary).

18.10.06

Apostila: patrulheiro

Patrulhar a língua

Não me queria tornar, ainda tão novo, apostilador do Ciberdúvidas. Contudo, outra consulta me faz querer acrescentar alguma nota. Trata-se, desta vez, da legitimidade do uso do vocábulo «patrulheiro». De facto, vejo-o registado pelo menos desde a 2.ª edição do Novo Dicionário Aurélio, em 1986. Entre nós, vejo-o usado desde há cerca de quatro anos para designar precisamente os cidadãos, habitualmente reformados, que patrulham as ruas das cidades, facilitando o atravessamento às crianças das escolas. Cheguei mesmo a ver algumas vezes um, todo senhor da sua autoridade e com uma braçadeira vermelha, em Odivelas. Em dicionários publicados em Portugal ainda não teve entrada. O que não é, todavia, motivo para deixarmos de o usar, se o entendermos necessário, evidentemente. Veja-se o que acontece com o vocábulo, tão politicamente conotado, «controleiro». Continua no limbo: nenhum dicionário que eu conheça o regista, e contudo ele segue a sua vida. Ultimamente, vi-o mesmo, mais liberto das peias políticas, proposto como tradução do inglês «controller».
Exemplar é, a este propósito, o trabalho da Academia Francesa, que no decurso de cada revisão do seu dicionário apresenta uma lista exemplificativa, disponível online, das palavras que suprimiu e das que admitiu, como se pode ver aqui.

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Em que se fala de má publicidade e tiros


      Neste anúncio da Portugal Telecom, que está a ser publicado, em página inteira, em vários jornais, podemos ler: «Chamadas grátis para sempre? Épa, inventam tudo!» Não terão antes pretendido escrever «EPA», abreviatura de Escola Prática de Artilharia? Então, está o acento agudo a mais. Estou a brincar. E, o que é pior, parece que também eles estão a brincar. Vejamos. «Épa» não existe, mas ninguém — a PT, os Gato Fedorento, a agência de publicidade — se deu ao trabalho de consultar um dicionário. Para quê, não é? Se isto tem tudo tanta graça, mas tanta… Deveriam ter escrito, já todos os meus leitores viram isso, desta forma: «Chamadas grátis para sempre? Eh, pá, inventam tudo!» «Eh», no caso, é uma interjeição que exprime surpresa. «Pá» é a forma abreviada de «rapaz», usada como interlocutório pessoal. Tornou-se, depois do 25 de Abril, bordão de linguagem, marcando o tratamento nas relações sociais. Lembro-me sempre, quando penso em «pá», de Otelo Saraiva de Carvalho, que ainda hoje, passados mais de trinta anos, profere «pá» com uma frequência estonteante. Parece uma G3: pá-pá-pá-pá-pá-pá-pá-pá-pá…

17.10.06

Falso cognato: «compound»

Canetas e braços partidos

Na Província da Fronteira Noroeste, no Paquistão, ocorre uma escaramuça. Nada de importante, mas ainda assim, um homem faz uma fractura no braço. «His horse had fallen on him when it was shot. The break was a bad one, a compound fracture of the forearm, near the wrist.» O tradutor português, sem surpresa para nós, complica a situação: «A fractura era má, uma fractura composta do antebraço, junto do pulso.» Em Portugal, imagino, ninguém saberia tratar este tipo de fractura, e o homem poderia morrer. E o leitor também sairia maltratado do mau encontro, pois de certeza sabe que o inglês «compound fracture» significa «fractura exposta». Se devolvesse o livro, aí sim, o leitor-consumidor deveria ter direito a «compound interests», juros compostos.

16.10.06

Apostila: arma de antecarga

Pela boca



      Hoje apetece-me fazer uma apostila a uma consulta ao Ciberdúvidas. Trata-se da locução «arma de antecarga», que está dicionarizada, por exemplo, no Dicionário Houaiss e não nos dicionários portugueses. Em espanhol diz-se, de facto, «arma de avancarga» e significa o mesmo que «arma de carregar pela boca». Quero apenas acrescentar que usei a locução em textos que por aí circulam e que corresponde ao inglês «muzzle-loading». Como na frase que se segue: «The muzzle-loaded rifle was decorated along all of its wooden surfaces with gleaming discs, scrolls, and diamond shapes fashioned from brass and silver coins and polished to a dazzling brilliance» (Shantaram, Gregory David Roberts).


Ortografia: «falaxa»

Castanhas ou negros?

      O leitor J. Gomes pergunta-me se se pode aportuguesar o vocábulo «falasha» para «falacha», como vê em alguns textos. A resposta é não. «Falacha», como se pode ler no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, é um provincianismo que designa «um bolo feito de castanhas». Característico, ao que parece, dos concelhos de Cinfães e de Mesão Frio. Uma vez que estamos na época das castanhas, veja aqui uma receita de falachas. Falaxas, como está dicionarizado em português, são os judeus da Etiópia (entre os quais, sabe-se, terá sido comum a prática dessa atrocidade que é a excisão feminina), durante muito tempo conhecidos como os Judeus da Abissínia. Perseguidos durante séculos pelas autoridades, restam tão-somente cerca de 20 mil na Etiópia, depois de terem sido algumas centenas de milhares. O nome «falacha» provém de um antigo vocábulo do geez* que significa «exilado», emigrado», «estrangeiro».


* Língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Etíope cuja escrita é em bustrofédon: maneira de escrever em que a primeira linha, em vez de terminar na borda do papel, dá uma volta semicircular, para continuar por baixo, da direita para a esquerda, tornando depois a baixar e a voltar da esquerda para a direita, e assim por diante.

Topónimo: Sanchoão

Hirto e firme

Todos os anos tenho de escrever — não interessa agora porquê — o nome da ilha onde São Francisco Xavier, o padroeiro das missões, morreu, a 3 de Dezembro de 1522. Como seria extremamente difícil, e supinamente ridículo, escrever esse topónimo em caracteres chineses, resta-nos a transliteração. Assim, não é raro ver escrito que este santo morreu em Chang-Chuen-Shan, embora não falte quem jure que São Francisco terá acabado os seus dias em Sancian. Outros ainda, com a mesma convicção, afirmam que foi em Sanchian. Outros, em Changchuen-shan. Outros, Shang-tschuan. Outros, Chang-tchouen. Eu, sem jurar, continuo a escrever, ano após ano, que foi na ilha de Sanchoão, pertencente ao Império do Meio. Voltamos a falar em 2007.

15.10.06

Etimologia: Gardunha

Refúgio

      De regresso dos montes Hermínios, atravessei a serra da Gardunha. Situada entre os rios Pônsul e Zêzere, com 20 quilómetros de comprimento e 10 quilómetros de largura, atingindo os 1227 metros de altitude, a serra da Gardunha também é conhecida por Guardunha (do árabe «refúgio). Nela nasce o rio Ocresa, um dos afluentes do Tejo. Claro que as placas da Brisa anunciam o «rio Ocreza», mas uns bons quilómetros à frente noutra placa pode ler-se «Paúl do Boquilobo». Percebe-se: tiveram receio de estar a escrever em inglês. Paul* só em Paul McCartney. Apenas uma conjunção particularmente harmoniosa de ignorância e obstinação permite que escrevam mal e não corrijam nunca. Por outro lado, os ladrões de alumínio não são coleccionadores de anomalias, como há, por exemplo, filatelistas que dão tudo por tudo por um selo com qualquer defeito: falta de serrilhado, imagem invertida, etc.


* Sabemos, assim, que conhecem a regra: põe-se o acento agudo no i ou no u que são tónicas e que não formam ditongo com a vogal anterior. Esperamos que aprendam agora que uma das excepções é precisamente a das palavras, oxítonas ou paroxítonas, em que aquelas letras são seguidas de l, m, n, r ou z que não iniciam sílaba e ainda nh: adail, hiulco, paul; Caim, Coimbra, ruim; constituinte, saindo, triunfo; demiurgo, influir, sairdes; aboiz, juiz, raiz; fuinha, moinho, rainha.




12.10.06

Revisão e tradução

Os limites da revisão

Um mafioso está nas ilhas Maurícias a traficar passaportes falsificados. Espera receber o que pediu por eles e voltar ao seu país. Algo começa a correr mal, pois o interessado diz-lhe que, ao contrário do que estava combinado, vai pagar em rupias mauricianas, que é uma moeda restrita. Acrescenta, contudo, que poderá proceder ao câmbio, com toda a segurança, junto de outro comparsa. Depois de alguma contrariedade inicial, o mafioso pede que o seu contacto o leve a essa terceira personagem. «’You’ll have to go there alone, man,’ the passenger said, laughing happily. ‘He’s in Singapore.’» E o tradutor escreve, e bem: «— Terás de ir lá sozinho, meu — disse o passageiro, rindo alegremente. — Ele está em Singapura.» Como reagirá o mafioso? Vejamos: «‘Singa-fucking-pore!’ I shouted, as that little whirlwind flared in my mind.» E o nosso tradutor, como reagirá ele? «— Singapura?! Merda!! — gritei, com aquele pequeno furacão a crescer na minha mente.»
Para onde foi o jogo linguístico, menor aliás, do original? O que deve fazer o revisor? Se este corresponder ao protótipo que está na mente de alguns profissionais do meio editorial, limitar-se-á a reflectir se os pontos de interrogação e de exclamação não estarão trocados, tentando interpretar o que tem mais força, se a exclamação se a interrogação, um esforço inglório e que escapará ao escrutínio da esmagadora maioria dos leitores. Formalmente, está tudo correcto, ou não? Os dicionários, é óbvio, de nada servem neste aperto. Se estiver a rever em Word e tiver instalado o FLIP, este ainda lhe dirá, numa advertência escusada e antiescatológica: «Calão (sem sugestões)». Se o revisor não se encaixar, e será bom para todos que não, a começar talvez pelo tradutor, na imagem do manga-de-alpaca caça-gralhas, proporá um jogo linguístico equivalente ao do original. Algo como: «— Singaporra! — gritei, com aquele pequeno furacão a crescer na minha mente.» Claro que o título deste texto poderia ser, e estaria a falar do mesmo:

Os limites da tradução

11.10.06

Determinação de topónimos

Imagem: http://formiguinha.blogs.sapo.pt/2005/07/

Falamos do mesmo?

Ultimamente, é comum ouvir-se na rádio e na televisão «o Monsanto». Lembram-se daquela regra de perguntar aos naturais ou residentes como se diz? Ora, da minha janela avisto… o quê? Avisto Monsanto. Os meus vizinhos com janelas a deitar para aqueles lados dizem-me o mesmo: avistam Monsanto. Se pensarmos neste nome exclusivamente como um orónimo ou orotopónimo (nome designativo de montanhas, montes, colinas e afins), pois que se trata de uma serra, talvez se possa concordar com o uso do artigo, tanto por causa da etimologia (monte Tagro → monte Sacro → monte Santo → Monsanto), como por razões de analogia, já que também se diz, embora constituam excepções, «o Gerês», «a Malcata», «a Arrábida» (ver texto «Artigo em nomes de localidades»). Como topónimo (e só dissocio uma coisa da outra para fins de análise), a designar mais precisamente o Parque Florestal de Monsanto, creio que a determinação não faz sentido. E, de facto, não ouço ninguém na rua dizer «o Monsanto». Parece, pois, um modismo de radialistas.

10.10.06

Livro de Estilo

Revisores e normas

Nem todas as publicações periódicas têm, como deviam, Livro de Estilo. É verdade que nem sempre os leitores sabem que determinada publicação tem este instrumento uniformizador, pois que nem sempre é objecto de edição comercializável, como fazem o Público e a TSF, por exemplo. Recentemente, foi-me pedida a redacção de um destes textos normativos para uma publicação e sei que será apenas um instrumento interno. É bem verdade que se escreve correctamente, e com critérios uniformes, em certas publicações que não têm Livro de Estilo: estão lá os revisores para isso. Contudo, se há mais do que um revisor ou se há rotatividade, o risco de deriva na forma como se grafa, além de outros aspectos gramaticais, pois que um Livro de Estilo tem uma vocação mais abrangente, é real. Ocorreu-me esta reflexão a propósito da seguinte frase do Diário de Notícias: «A barragem de Alqueva é este fim-de-semana a capital nacional do catamaran» («Velas ao vento na barragem de Alqueva», Roberto Dores, 6.10.2006, p. 31). Um Livro de Estilo recomendaria (ah, pois, as mãos dos jornalistas permanecem sempre livres) que se não usasse a grafia inglesa de um vocábulo procedente de outra língua — em especial porque, no caso em apreço, este vocábulo está há muito adaptado à língua portuguesa. A recomendação legitimaria, por sua vez, a emenda que o revisor deveria fazer.
A propósito, «catamarã» vem, já aqui o registei no texto «Asiatismos. Índia e Ceilão», do tâmil e, se está registado no inglês desde 1673, no português é usado desde o século XVI.

9.10.06

Bandeira dos piratas


Abordar!




      Apesar de não nos faltarem obras sobre pirataria, de ficção e não só, é muito raro ver o nome que tinha a universalmente conhecida bandeira dos piratas. Mesmo nas traduções, e ainda que no original apareça o nome em inglês, é comum ver-se assim referida — bandeira dos piratas. A verdade é que, tirando o próprio termo «pirata», cujo étimo é grego, muitos dos vocábulos deste campo lexical são ingleses ou franceses. Alguns aportuguesámo-los, como o francês boucanier («Aventurier d’Amérique et des Antilles chassant le bœuf sauvage pour boucaner la viande et faire le commerce des peaux»; por extensão de sentido: «Pirate écumant, au XVIIe siècle, les mers de l’Amérique et des Antilles»), que é o étimo do nosso bucaneiro. Ou flibustier («Membre d’une association de pirates des mers d’Amérique»), origem do nosso flibusteiro. A bandeira com a caveira e as tíbias cruzadas, porém, não tem nome entre nós, nem sequer nos preocupámos em aportuguesá-lo. Ao que parece, e independentemente da sua etimologia, aliás bem longe de ser incontroversa, logo em 1785 se registava no inglês, na obra A Classical Dictionary of the Vulgar Tongue, de Francis Grose, a designação «Jolly Roger» para a bandeira dos piratas.

Etimologia: testemunha

É de homem

Todos temos consciência de como, de uma maneira geral, ainda somos relutantes em ir a tribunal prestar testemunho acerca de quaisquer factos que interesse averiguar. Na província, correm como anedotas episódios hilariantes sobre esta realidade e, até há pouco tempo, estava enraizado no imaginário colectivo o risco de a testemunha ficar detida em vez do próprio arguido. Ir testemunhar voluntariamente parecia ser coisa só de homens intimoratos.
Parece que a própria etimologia do vocábulo «testemunha» já determinava a atitude. De facto, «testemunha» provém do latim testis (no português antigo, usava-se o vocábulo «teste» nesta acepção; modernamente, qualquer teste, e este chegou-nos também do latim através do inglês, comprova, atesta algo), que por sua vez procede da raiz indo-europeia tris-, a que pertence também, por exemplo, a palavra inglesa tree. A ideia é a de alguém, imparcial, que está no meio, qual árvore bem fincada no chão, das partes interessadas, que testemunha o acordo. Ora, da mesma palavra latina testis provém, e era aqui que queria chegar, o vocábulo «testículo» — o órgão que atesta a virilidade de um homem.

6.10.06

Etimologia: Santarém

Santa etimologia

Século VI. Filha dos senhores de Sellium (Tomar), Irene ou Iria, natural de Nabância, começou muito cedo a professar a religião cristã num mosteiro da ordem beneditina. Vítima de uma intriga engendrada pelo monge Remígio, seu mestre, foi decapitada e lançada por Britaldo (ou Banão) num pego do rio Nabão, e o seu corpo sepultado pelos anjos nas areias do Tejo, junto a Scalabis. Em sua homenagem, esta localidade passou, no século seguinte, a chamar-se Santarém (Santa Irene ou Iria). Lendária ou não, é a explicação que temos para a etimologia do topónimo Santarém. Ao contrário de inúmeros santos aémeros (os que não são celebrados em dia especial, por ignorar-se a data da sua morte), Santa Iria tem um dia em que é festejada: 20 de Outubro.

4.10.06

Léxico: pastifício

Imagem: http://www.pastificiopetropolis.com.br/

Sucos & Massas


Em Setembro, um consulente brasileiro, Paulo Pérsio, perguntava à equipa do Ciberdúvidas se existia um adjectivo que exprimisse a noção associada à locução «de suco», para referir uma indústria que produz sumos. Depois de referir «suculento», o consultor concluiu, sensatamente, que não se aplicava com propriedade e, inferimos, que não existe vocábulo para o exprimir. O que é, tanto quanto sei, verdade. E este é ou pode ser o primeiro passo para criar ou adaptar de outra língua esse vocábulo de que se precisa.
Lembremo-nos do termo «pastifício», usado para designar a indústria de massas alimentícias, levado na bagagem cultural e linguística dos italianos que emigraram para o Brasil. Actualmente, depois de ter sido introduzido no léxico no início do século XX, faz parte do dia-a-dia dos Brasileiros. De alguns, pelo menos. Em contrapartida, quem o conhece em Portugal? Os imigrantes brasileiros, pois claro!

3.10.06

Léxico: «hálux»

Da mão para o pé


      É verdade que o vocábulo «polegar» também se aplica ao dedo grande do pé. Contudo, o ideal é fazer corresponder a cada conceito um vocábulo diferente. É prosseguindo por este caminho que a ambiguidade (que, de resto, tem causas muito mais vastas) é menor naquilo que dizemos e escrevemos. Os Brasileiros, que são mais criativos e liberais, libérrimos, na verdade, na linguagem, dão o nome de «dedão» ao dedo grande do pé — e o Dicionário Houaiss regista-o. O vocábulo que designa, de forma inequívoca e com propriedade, esse dedo é «hálux». Os joanetes (vocábulo que vem do espanhol «juanete», registando o Diccionario de la Real Academia Española que é assim porque provém de «Juan, nombre rústico frecuente, pues se atribuía a rústicos ser juanetudo») têm a designação médica de «hallux valgo». O Chico Fininho, de Carlos Tê e Rui Veloso, tinha joanetes — e muita droga no corpo, o que é pior.

2.10.06

Multiúsos

Nada disso

      Tratava-se de traduzir o termo inglês «all-purpose» e a frase era a seguinte: «But like some all-purpose brainbooster, the prefrontal area is spectacularly flexible, able to engaje in a greater range of tasks than any other neural structure.» O tradutor verteu-a assim: «Mas como uma espécie de impulsionador cerebral multi-usos, a área pré-frontal é espectacularmente flexível, capaz de desempenhar uma gama de tarefas muito mais ampla do que qualquer outra estrutura neural.» Recentemente, também li no Diário de Notícias: «Novo pavilhão multiusos abre no dia 28» (12.09.2006, p. 33). A verdade, porém, é que a palavra é grave (como a maioria das palavras portuguesas) e, por ter o acento tónico no u, que é precedido de vogal com a qual não forma ditongo, tem de ter acento gráfico: multiúsos. Pela sua formação irregular, é, contudo, uma palavra que se deve evitar, substituindo-a vantajosamente por «polivalente», por exemplo. O que, afinal, sucede muitas vezes, pois que deverá haver mais «pavilhões polivalentes» do que «pavilhões multiúsos». Vendo bem, talvez não haja sequer um «pavilhão multiúsos», mas somente «multi-usos» ou «multiusos».