31.3.08

«Certamente que»

Palavra de imortal

      Um leitor perguntou-me se o nome do blogue de Paulo Querido — Mas certamente que sim! — está correcto. Só não fiquei admirado porque já outro leitor, pessoa que reputo muito sabedora, me tinha indicado os pecadilhos de certo escritor e crítico literário português, dando como exemplo a frase: «Evidentemente que num caso de naufrágio…» Ora, não descortinei então nem descortino hoje qualquer erro nessa construção, mas, prudente, não deixei de consultar a Academia Brasileira de Letras, que me respondeu: «As palavras derivadas costumam seguir a regência ou determinadas construções das palavras de que derivam. Assim: obedecer a, obediência a, obediente a. No seu exemplo, pode-se usar: É evidente que ou Evidentemente que; É certo que ou Certamente que. A análise de cada construção é bem diferente uma da outra, mas do ponto de vista semântico “é evidente” a correspondência.»

30.3.08

Léxico: «odontograma»


Ficha dentária

Nas séries televisivas como Bones e CSI ouvimos falar de fichas dentárias*, mas nunca o nome específico destas. Ficamos agora a saber. «É também nosso objectivo implementar um Plano Nacional de Intervenção para Grandes Catástrofes realçando a importância do correcto preenchimento da ficha clínica (odontograma) dos pacientes, que nunca deverá ser negligenciada. Uma das dificuldades das identificações em grandes catástrofes é a falta de informação das fichas clínicas ante-mortem» («“É também nosso objectivo implementar um Plano Nacional de Intervenção para Grandes Catástrofes”», La Salete Alves, presidente da Associação Portuguesa de Odontologia Forense (APOF), entrevistada por Gonçalo Curião, edição portuguesa da revista Dentistry, Março de 2008, p. 52). Nem o Dicionário Houaiss regista o vocábulo.

* E lemos na imprensa: «A Polícia Judiciária (PJ) está a investigar a possibilidade de homicídio de um seu alegado informador, cujo Ferrari 360 Modena se despistou e incendiou na madrugada de segunda-feira na A4, no sentido Porto-Amarante, em Ermesinde, Valongo. Carlos Emanuel Teixeira Oliveira Almeida, 29 anos, proprietário de um stand de automóveis no Porto, seria uma testemunha importante do processo “Noite Branca” e a sua identificação só foi possível pela ficha dentária, pois o corpo estava completamente carbonizado» («PJ investiga morte ao volante de ‘Ferrari’», Joana de Belém, Diário de Notícias, 5.3.2008).

29.3.08

Ortografia: «peras»

Imagem: http://www.teachartathome.com/

Ora peras!

«A pêra, uma fruta singela que pertence à família Pyrus, está no auge de sua safra, conferindo à casca uma textura firme sem cortes, rachaduras ou manchas pardas. Além de conter vitaminas A e C e todas do complexo B, é uma das frutas mais ricas em sais minerais e ideal para regimes, pelo baixo valor calórico. […] O filé mignon com balsâmico guarnecido de risoto de pêras e aspargos (R$ 39,50) vai entrar na próxima semana no cardápio de outono do Doce Delícia, como um dos hits. […] Tanto que na Itália há um ditado que diz: “Não diga ao fazendeiro como é gostoso queijo com pêras” — cita Massimo Torresan» («Em alta na estação, as pêras invadem o menu», Pat Zinger, Jornal do Brasil, 29.3.2008, p. R6).
Nisto são iguais, os jornalistas portugueses e os brasileiros: atropelam levianamente a língua. Com a pressa, esquecem as regras. Cá como lá, o plural do vocábulo «pêra» não tem acento — peras. Para que havia de ter, não me sabem dizer? Em «pêra» é um acento diferencial ou distintivo. Absolutamente desnecessário, é verdade, pois a palavra com que se podia confundir é a preposição pera, que já não se usa, é um arcaísmo (excepto para o jornalista Pedro Bicudo, mas duplamente mal, pois não apenas não se usa como nunca foi pronunciada com e fechado, mas mudo ou aberto). Logo, como as preposições não têm plural, «peras» não precisa de acento. Absolutamente desnecessário, dizia eu, e volto a dizê-lo, desta vez em relação ao substantivo «pólo», pois que a preposição «polo» é também arcaica. Incongruências que a reforma ortográfica de 1971 podia ter eliminado.
O Acordo Ortográfico de 1990 estabelece na Base IX (Da acentuação gráfica das palavras paroxítonas), art. 9.º: «Prescinde-se, quer do acento agudo, quer do circunflexo, para distinguir palavras paroxítonas que, tendo respectivamente vogal tónica/tônica aberta ou fechada, são homógrafas de palavras proclíticas. Assim, deixam de se distinguir pelo acento gráfico: para (á), flexão de parar, e para, preposição; pela(s) (é), substantivo e flexão de pelar, e pela(s), combinação de per e la(s); pelo (é), flexão de pelar, pelo(s) (é), substantivo ou combinação de per e lo(s); polo(s) (ó), substantivo, e polo(s), combinação antiga e popular de por e lo(s); etc.»

28.3.08

Léxico: «filopátrico»

Já tinham pensado nisto?

«De facto, as águias-imperiais têm tendência a instalar-se perto do local onde nasceram — ou seja, são animais filopátricos» («Águia-imperial regressa ao interior de Portugal», Inês Santinhos Gonçalves, Público/P2, 7.3.2008, p. 4). Duas coisas. Primeira: o vocábulo «filopátrico» não aparece registado em nenhum dicionário da língua portuguesa. Segunda: grafar com hífen as palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas é algo que já toda a imprensa faz — antecipando-se em anos ao que o Acordo Ortográfico de 1990 estipula. Mesmo as almas cândidas que estão contra o acordo o fazem. Sem terem consciência, decerto. Devem estribar-se, forneço-lhes o argumento, na analogia…
«Emprega-se o hífen nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas, estejam ou não ligadas por preposição ou qualquer outro elemento: abóbora-menina, couve-flor, erva-doce, feijão-verde; benção-de-deus, erva-do-chá, ervilha-de-cheiro, fava-de-santo-inâcio, bem-me-quer (nome de planta que também se dá à margarida e ao malmequer); andorinha-grande, cobra-capelo, formiga-branca; andorinha-do-mar, cobra-d’água, lesma-de-conchinha; bem-te-vi (nome de um pássaro)» (Base XV (Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares), art. 3.º).
Sem acrimónia, agora: independentemente do valor deste acordo, faria sempre falta — na ausência de uma entidade pública competente que o faça no dia-a-dia, como sucede noutros países — um instrumento regulador destas questões do hífen. Pelo menos. Sim, uma coisa tão pequena… Só quem não lida, não luta, com a língua todos os dias é que pode subestimar a importância da questão. Lembram-se decerto da parte da entrevista de Evanildo Bechara ao jornal O Globo que aqui transcrevi: «A reforma estabelece 13 regras para utilização do hífen. É um avanço, já que hoje Portugal tem mais de quarenta regras e sub-regras. Mas isso ainda poderia ser resolvido com quatro ou cinco regrinhas muito simples, que tivessem como critério básico impedir pronúncias erradas.» Tantas e tão poucas. Na verdade, nesta matéria, o falante sente-se menos perdido com a complexidade do que com as lacunas.

Dois exemplos: «A praga de topillos, ratos-cegos-mediterrânicos que desde Julho assolam os campos de Castela e Leão, diminuiu 58 por cento, revelou ontem Sílvia Clemente, responsável de Agricultura do governo de Valhadolid. No combate aos roedores estão envolvidos especialistas da Alemanha, EUA, Reino Unido e França» («Praga de roedores em Castela diminuiu», Nuno Ribeiro, Público, 6.09.2007, p. 18).
«Todos os anos, quando chega Junho, o biólogo Jaime Ramos, de Coimbra, parte para as paradisíacas ilhas Seicheles, no Índico. Mas não vai de férias. Pelo contrário. É nessa altura do ano que se inicia a época reprodutiva das andorinhas-do-mar-róseas, cuja população o biólogo português estuda ali há dez anos» («Estudar andorinhas num paraíso tropical», Filomena Naves, Diário de Notícias, 12.1.2208, p. 42).

27.3.08

Mianmarense, mianmense ou mianmarês?

O mundo em mudança

«Mesmo que a noite já tenha caído há muito, o calor e a humidade tomam conta de Yangon, a maior cidade deste misterioso país que dá pelo nome de Myanmar. Duas palavras, aliás, que há alguns anos não fariam muito sentido, devido à decisão de alterar todos os nomes que “cheirassem” a colonialismo britânico. Yangon é a antiga Rangoon, Pagan é Bagan, Pegu é a actual Bago, o rio Irrawaddy é hoje chamado de Ayeyarwady e até o nome do próprio país foi substituído — Birmânia, em português, ou Burma, em inglês, transformou-se em Myanmar. E dei comigo em intrincados pensamentos antes de adormecer agarrado à almofada — se um natural da Birmânia é um birmanês, como se chamará um natural de Myanmar? Myanmarês? Myanmarense? Myanmano? Não dá jeito nenhum» («Navegar no rio dourado», Paulo Rolão, Global/Volta ao Mundo, 27.3.2008, p. 12). O jornalista podia ter usado um dicionário, ou não? Isso sim, dava jeito. O Dicionário Houaiss regista duas formas: mianmarense (a que prefiro) e mianmense. A forma mianmarês, a que chegamos por analogia, não é impensável, mas não está registada em nenhum dicionário nem — sobretudo — é usada. O jornalista, contudo, aflora uma questão importante: é necessário designarmos de outra forma um país que sempre conhecemos como Birmânia? É de admitir que durante algum tempo as duas designações sejam usadas quase na mesma medida, acabando por prevalecer a nova. Por muito que não gostemos.

26.3.08

Léxico contrastivo: «de quebra», «turbinar»

É longe

As famílias brasileiras que têm condições financeiras para isso mandam agora os filhos estudar para a Nova Zelândia. Ouçamos a estudante Camilla Pinto, de 18 anos, que já fez dois intercâmbios. Em 2006, esteve no Canadá. No ano seguinte, foi para a Nova Zelândia. «“Fiquei surpresa com a forma com que fui recebida. Além de aprimorar o inglês, conheci um país maravilhoso, vivenciei uma nova cultura, fiz amizades e, de quebra, ainda turbinei o meu currículo”, disse Camilla, que ficou hospedada durante um ano em casa de neozelandeses em Auckland» («Nova Zelândia vira uma opção», Flávia Lima, Jornal do Brasil, 21.3.2008, p. R4). Segundo o jornal, «a média de preço é de cerca de R$ 3 mil por mês, valor que inclui escola, acomodação em casa de família e alimentação», o que equivale a cerca de 1100 euros. De quebra, isto é, «ao mesmo tempo, em acréscimo». Turbinar é «fomentar, desenvolver, incrementar».

Elemento de composição «crio»

Crio-qualquer-coisa

      «Os polacos roubaram imediatamente a ideia e desataram a revigorar atletas de alta competição em crio-câmaras e um empresário checo achou que não havia razão para que a bizarria não servisse as massas. […] Abriu as crio-câmaras há ano e meio, e já se transformaram no último grito dos tratamentos de beleza» («Viagem a quatro minutos da morte», Ivete Carneiro, Global/Notícias Sábado, 24.3.2008, p. 12). Pois, pois, mas a verdade é que o antepositivo crio não se liga com hífen ao segundo elemento de composição: criobiologia, criobomba, criocautério, criocirurgia, crioconservação, crioextractor, criogenia, etc.

Elemento de composição «recém» (I)

Vejam lá

«A recém-mamã Nicole Richie tem medo de já não ser divertida! A celebridade, que deu à luz a sua primeira filha a 11 de Janeiro, diz que a maternidade a fez querer assentar e deixar de ir a tantas festas» («Nicole Richie anda preocupada», Global, 24.3.2008, p. 23). Já o escrevi aqui um dia: recém é um elemento de composição, forma apocopada do adjectivo «recente», que só se usa, por mais informal que seja a linguagem, com adjectivo: recém-casado, recém-nascido, recém-licenciado, recém-nomeado, etc. Com um substantivo, jamais. O jornalista deveria, dando outra redacção à frase, ter usado o adjectivo ou o advérbio da mesma família: recente, recentemente.

25.3.08

Tradução: «juniper»

Imagem: http://www.licores-serrano.pt/

Juniperus communis

Como vi duas vezes em pouco mais de uma semana, talvez valha a pena referir a forma como se traduz a palavra inglesa juniper. A primeira foi numa obra literária. Anteontem, ao rever A Paixão de Shakespeare (com tradução de Georgina Torres, da Moviola), lá vinha também o «junípero». Se usarmos o corpus CETEMPúblico, por exemplo, nem sequer uma ocorrência de «junípero» está registada. De «zimbro», há 18. À minha volta, ninguém conhece a palavra «junípero». Mesmo amigos da zona da serra da Estrela (e recordemo-nos de que a única empresa, tanto quanto sei, que produz licor de zimbro se situa no vale do Zêzere, entre a serra da Estrela e a serra da Gardunha) desconhecem o vocábulo. Só botânicos e biólogos a conhecerão. Ah, e tradutores. A razão é bem simples: em alguns dicionários bilingues inglês-português, no verbete juniper aparece em primeiro lugar «junípero»… É que o nome comum é Juniperus communis.

«Ponha-a a marinar no vinho, juntamente com as bagas de zimbro e os alhos esmagados, a pimenta em grão, e as ervas aromáticas» (in CETEMPúblico).

24.3.08

Topónimos

Colonos em Trás-os-Montes

É interessante o que o Global hoje publica sobre a colonização interna na década de 1950. Ficamos a saber, entre outras coisas, que este movimento veio a dar nome a algumas localidades.
«Nos anos 50 do século passado, enquanto milhares de portugueses optavam pela emigração várias famílias aceitaram o desafio de colonizar as zonas mais desérticas do Portugal continental. Salazar mandou preparar, por intermédio da Junta de Colonização Interna, terrenos para 160 colonos que ocuparam 4355 hectares de terrenos baldios. O plano de acção da junta, que foi apresentado em 1937, tinha como objectivo o desenvolvimento da actividade agrícola nos distritos de Portugal com mais área de baldios.
Segundo o professor catedrático Eugénio de Castro Caldas, em A Agricultura na História de Portugal, foram instalados 24 colonos no Alvão (Vila Pouca de Aguiar), 57 nos baldios de Boticas e Montalegre, 12 nos Milagres (Leiria), 36 na Colónia de Martin Rei (Sabugal), 10 na Boalhosa (Paredes de Coura) e 22 na Gafanha (Ílhavo). […] Na zona do Alvão foi incrementado o cultivo da batata entre os colonos, os quais viriam a dar nome às localidades onde foram instalados. Em Vila Pouca de Aguiar contam-se os Colonos de Soutelo, Colonos de Baixo ou Colonos do Campo de Viação» («Jovens agricultores foram colonos há meio século», Paula Lima, Global, 24.3.2008, p. 11).

Iliteracia

Ropa muy ponible



      Loja Gerard Darel, Rua Castilho. O programa Caras Notícias mostrou-nos a fina-flor, ou quem pretende alcandorar-se a tal, a escolher algumas peças de vestuário e adereços. Algumas têm a sorte de ser a marca a emprestar-lhes as peças. Como é o caso de Isabel Palmela, que, entrevistada, afirmou que a roupa da marca é muito «ponível e bonita». Está muito bem: faltava a palavra adequada, Isabel Palmela foi buscá-la ao espanhol e adaptou-a.
      Em contrapartida, durante o programa ficámos a saber que o nome da filha da actriz Halle Berry é Nahla Ariela Aubry, que na «língua muçulmana» significa «abelha que faz mel». Os responsáveis do programa deviam reflectir uns segundos antes de dizerem tais disparates. Está-se mesmo a ver: leram ou ouviram que «it’s a Muslim name that means»…

23.3.08

Acordo Ortográfico

O xibolete

O escritor e professor brasileiro Deonísio da Silva tem hoje no Jornal do Brasil uma crónica («O xibolete do português», 23.3.2008, p. A11) em que defende — em menos de meia dúzia de palavras — o Acordo Ortográfico. Pelo meio, lembra a história do xibolete. Conhecem? Vem no Livro dos Juízes. A tribo de Galaad estava em guerra com a de Efraim. A senha para identificar os efraimitas fugitivos era a palavra shibolet, «espiga». Os efraiditas, porém, pronunciavam uma variante dialectal da palavra, diferente no fonema inicial, sibolet, porque eram incapazes de pronunciar correctamente. Eram então presos e mais tarde degolados nos vaus do Jordão. E assim morreram, nesse dia, quarenta e dois mil homens de Efraim.
Deonísio da Silva afirma depois que o xibolete da língua portuguesa é o ditongo ão. Mas, neste caso, não de alguns falantes do português, mas de todos. Só funciona em relação aos estrangeiros, e por isso lembra mais uma história: «O poeta Mário Quintana, percebendo os atrapalhos de Sua Santidade para pronunciar o ditongo “ão”, escreveu ao Papa: “Sendo Vossa Santidade um poliglota notável, vejo que não consegue pronunciar o famoso ão da língua portuguesa. E tomo a liberdade de esclarecê-lo sobre esta pronúncia. Considere o ão como dois monossílabos, ã mais o, e tente pronunciá-los cada vez mais rapidamente. Assim obterá o nosso ão. Esperando sua bênção, respeitosamente. Mário Quintana.”»
Para concluir: «De todo modo, com a iminente vigência do acordo ortográfico, virão à tona xiboletes diversos, tantas são as sutis complexidades das diferenças com a língua portuguesa falada no Brasil, em Portugal, na África, e na Ásia. Camões já vaticinara: “Na quarta parte nova os campos ara/ E se mais mundo houvera, lá chegara.” Mas dos cerca de 300 milhões de falantes do português, dois terços deles vivem e falam no Brasil! Ocorre, porém, que os xiboletes são da fala. Na escrita, a unificação vem em boa hora.»

Iliteracia

D. Pedro, o Capacidónio

É muito engraçado — e muito revelador do que era a monarquia portuguesa — o que escreve João Ferreira sobre D. Pedro III (1717-1786). «A aristocracia era encabeçada pelo marido (e tio) da rainha, D. Pedro III, irmão de D. José. À falta de atractivos físicos aliava o rei consorte a pouca inteligência. Na corte puseram-lhe a alcunha de “capacidónio”: era uma das suas palavras preferidas e com ela se referia às pessoas a quem tencionava atribuir um cargo, depois de ter apanhado de ouvido que alguém era “capaz e idóneo” para determinado emprego…» («A rainha louca», João Ferreira, Notícias Sábado, 15.3.2008, p. 92).

22.3.08

Semântica: «matraca»

Matraca da Semana Santa: http://sarrabal.blogs.sapo.pt/

Santo matraquear


Um leitor brasileiro, Mário, pergunta-me a origem da palavra «matraca». E, para não haver equívocos, acrescenta: «Aquele instrumento barulhento que, na Semana Santa, se usa nas procissões?» Na verdade, seja qual for a acepção, o étimo é o mesmo: o árabe hispânico maṭráqa, e este do árabe clássico miṭraqah, «martelo». Na definição do Dicionário Houaiss: «peça de madeira com uma plaqueta ou argola que se agita barulhentamente em torno de um eixo, usada especialmente como instrumento litúrgico em substituição da sineta durante a quinta-feira e sexta-feira da Semana Santa». A definição do DRAE é menos politicamente correcta: «Instrumento de madera compuesto de un tablero y una o más aldabas o mazos, que, al sacudirlo, produce ruido desapacible.» Tão desagradável — simboliza os trovões que ensurdeceram o povo de Jerusalém após a morte de Jesus Cristo* —, na verdade, que «matraca» passou também a significar a pessoa tagarela que nos mói o juízo. Também chamada matraca-da-quaresma. Matraquear, matracolejar e afins, todos reforçam a justeza da definição espanhola.


* No Evangelho segundo São Lucas (23,44-45), lê-se: «Por volta do meio-dia, as trevas cobriram toda a região até às três horas da tarde.
O Sol tinha-se eclipsado e o véu do templo rasgou-se ao meio.»

Glossário: golfe

Buracos



      Recentemente, saiu na revista Notícias Sábado um artigo («O puto maravilha», Tiago Salazar, NS, 15.03.2008, pp. 78-82) sobre o golfe com um pequeno glossário final. Embora tenha poucos termos, e nem sequer os mais conhecidos, tem a vantagem de estar mais bem escrito do que a generalidade dos glossários semelhantes que se encontram na Internet.

«Birdie — Quando o jogador termina um buraco com menos uma pancada do que o par respectivo (exemplo: jogador faz 3 pancadas num par 4).
Bunker — Obstáculo também conhecido por poço de areia.
Caddie — O carregador dos tacos e muitas vezes conselheiro do jogador em momentos cruciais.
Fairway — Zona de relva cortada entre o tee e o green e que é considerada zona jogável.
Green — Onde está o buraco e a bandeirola que o distingue à distância. A relva do green é mais aparada do que a restante e é nele(s) que se decidem as partidas de golfe.
Par — Número predeterminado de pancadas em que o jogador deve alcançar um buraco.
Pró — Profissional de golfe.
Putt — O taco que se utiliza no green e que tem zero graus de inclinação. Segundo as regras, cada jogador pode levar até 14 tacos no saco. Cada taco tem um loft ou grau de inclinação que varia, em média, entre os 0 graus do putt e os 60 graus do sand wedge (o taco usado particularmente no bunker ou nas pancadas de aproximação).
Swing — Movimento.
Tee — Pode ser o adereço onde se coloca a bola para a primeira pancada em cada um dos 18 buracos ou o torrão de relva onde começa cada buraco.»

Léxico contrastivo: «dezembro»

Assim o provo

«O Distrito Federal entrou na disputa para sediar a II Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Além de Brasília, Uberlândia também está na disputa. A cidade mineira foi visitada no começo do mês por membros da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que estudaram a acessibilidade e a capacidade da cidade de receber os participantes da conferência, que acontece em dezembro» («Brasília quer sediar encontro nacional», Jornal do Brasil, 21.3.2008, p. R3). Havia muito para dizer sobre este parágrafo, mas o pretexto é para falar da inicial minúscula no nome dos meses. Antecipando-se ao Acordo Ortográfico, que enquanto não entrar em vigor é somente eventual, alguma imprensa portuguesa, descuidada, laxista, já escreve o nome dos meses com minúscula inicial. E não se envergonham. Nem os revisores que lá estão a fingir que revêem. Pois, só com o novo Acordo Ortográfico é que isso vai ser legítimo. Estabelece a Base XIX, n.º 1, al. b): «[A letra minúscula inicial é usada] Nos nomes dos dias, meses, estações do ano: segunda-feira; outubro; primavera».
Quanto a sediar. Prefiro, para significar «ter sede em», a forma «sediado», que importámos do Brasil. A letra i, não há que estranhá-la: é uma vogal de ligação. Independentemente de gostos e teorias, a imprensa vai preferindo também usar esta grafia. No CETEMPúblico, por exemplo, encontramos 2182 ocorrências de «sediado» (e a forma feminina, «sediada») e somente 68 de «sedeado» (e a forma feminina, «sedeada»).

«A iniciativa será extensível a Guimarães, o outro pólo da Universidade do Minho, sediada em Braga» («Universidade distribui bicicletas», Global, 18.1.2008, p. 3).

«Mas há ainda quem o conheça como “o Melim dos Automóveis Clássicos”, clube sediado na região» («O maior coleccionador de postais da Madeira», Lília Bernardes, Diário de Notícias/Gente, 12.1.2008, p. 8).

«Os serviços de mediação dependentes do Ministério da Justiça funcionam nos Julgados de Paz e em instalações cedidas pelos municípios. O IMAP está sediado em Lisboa, na Rua sidónio Pais, 20 r/c Esq.» («Como se pode recorrer aos serviços?», Isabel Stilwell, Destak, 20.2.2008, p. 4).

«A actividade dupla de Manuel (nome fictício), 41 anos, foi finalmente interrompida no passado sábado pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária (PJ), no decurso de uma investigação após a ocorrência de um assalto a uma agência bancária, sediada em Picoto, Santa Maria da Feira» («Vendia artesanato e assaltava bancos», André Barbosa, Metro, 19.2.2008, p. 4).

«A Hovione, empresa química sediada em Loures, adquiriu 75% de uma fábrica chinesa do sector químico e farmacêutico com 181 trabalhadores» («Hovione compra indústria química na China», Global, 28.2.2008, p. 8).

«Católicos de rito oriental, os caldeus — cerca de 550 mil — constituem a principal comunidade cristã do país [Iraque] que, no total, tem 700 mil cristãos. É também uma das mais antigas igrejas cristãs. O seu principal líder espiritual é o Patriarca Emmanuel III, que está sediado em Bagdad» («Papa e EUA condenam morte do arcebispo caldeu de Mossul», Lumena Raposo, Diário de Notícias, 14.3.2008, p. 33).

«10 ME. Valor que a companhia sediada em Braga espera atingir com os negócios durante este ano» («Aeronorte compra dois aviões por 30 ME», Meia Hora, 18.3.2008, p. 9).


«Os resultados da BMW-Sauber — cujo outro piloto, Nick Heidfeld, partilha o segundo lugar do Mundial com Kimi Raikkonen, a três pontos de Hamilton — reabre a discussão sobre a possibilidade de a equipa sediada na Suíça se intrometer na luta entre Ferrari e McLaren» («O novo e magro Kubica sai da pole position, uma estreia do piloto polaco e da BMW», Hugo Daniel Sousa, Público, 6.4.2008, p. 32).

«Como explica Jim Weill, presidente do Food Research and Action Center, uma organização de combate à fome sediada em Washington, esta “avalanche” de pedidos de apoio alimentar explica-se pelo aumento do desemprego e crescente precariedade laboral, e ainda pela inflação dos preços dos combustíveis e do cabaz alimentar mais básico» («Americanos dependentes da ajuda alimentar à beira de recorde histórico», Rita Siza, Público, 6.4.2008, p. 42).

«E já vão três, em apenas uma semana. Depois da Ata Airlines e da Aloha Airlines (esta sediada no Havai), ontem foi a vez de a low-cost americana Skybus Airlines ter anunciado que iria terminar as suas operações. A culpa, dizem todas, é do aumento dos combustíveis» («Aumento dos combustíveis obriga a fecho de low-cost», Público, 6.4.2008, p. 43).


21.3.08

Léxico contrastivo: «pidão»

Pides e pidões


      «Ágeis, travessos e com cara de pidões, os micos viraram febre na cidade. Basta estar próximo a um aglomerado de árvores que rapidamente é possível escutar os assobios dos primatas. Mas, apesar do jeitinho doce, que rouba sorrisos e afeto de crianças e adultos, os animais estão deixando especialistas da área preocupados. O Rio testemunha uma proliferação desses macaquinhos e o desequilíbrio ambiental já é uma realidade na cidade» («Micos, a diversão que está virando problema», Janaína Linhares, Jornal do Brasil, 21.3.2008, p. A15). Quanto a micos, deixei que os leitores percebessem o que é — mas pidões? Mais: «com cara de pidões»? Na rua dos meus pais morava um pide, um agente da PIDE. Por muito que me custe admiti-lo, não tinha uma cara patibular, antes uma cara aparvalhada. Dizia-se que, além do que se lhe pedia, uns tabefes, umas torturas, também tinha violado uma rapariga quando estava de serviço num posto fronteiriço. Teve de fugir no 25 de Abril, mas uns tempos depois já tinha um emprego. Um prémio pelo zelo. Mas sim, não me esqueço: pidão. É aquele que pede muito.

20.3.08

Acordo Ortográfico

É um argumento

«O ministro da Cultura disse ontem que o Acordo Ortográfico é uma “necessidade para a expansão da língua Portuguesa”, sustentando no Parlamento que as reformas anteriores “não destruíram a criatividade e a liberdade de escrita”. José António Pinto Ribeiro respondia a perguntas dos deputados da Comissão de Ética, Sociedade e Cultura sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa alcançado em 1991 e ratificado pelo Brasil, Cabo Verde e São Tomé» («‘É uma necessidade para a expansão da língua Portuguesa’», Global/JN, 20.3.2008, p. 6).

19.3.08

«Soundbite»

Língua mordida


      É quase uma praga. Toda a gente agora quer usar a palavra soundbite numa frase qualquer. «São famosas as metáforas de Lula da Silva. Frases jocosas, lapsos, gafes. Ou simplesmente metáforas. Desde a celebérrima “só nos falta encontrar o ‘ponto G’ da discussão” até ao “estuda, meu filho, se não ainda vai virar Presidente”, Lula demonstra ter tendência para o sound byte, conscientemente ou não» («Aforismos», Nuno Amaral, Sexta, 14.3.2008, p. 11). Mas — pergunto-me e pergunto aos leitores — isso não é, ao mesmo tempo, uma mordidela no inglês e no português? É que nos dicionários de língua inglesa só vejo registado, como substantivo, «sound bite» ou «soundbite». Luís Paixão Martins, no seu blogue Lugares Comuns, define-a: «Chamei “mordidelas silenciosas” à secção de citações deste blogue em jeito de trocadilho com a palavra “soundbite”. Como o blogue é por natureza silencioso, aqui os “bites” não produzem som. “Soundbite” é uma palavra relativamente antiga que tem a ver com a rádio. Quer dizer, literalmente, mordidela (ou dentada) sonora e designa uma frase curta e com impacto retirada do contexto. “Houston, we have a problem”, da missão Apolo XIII, é um “soundbite” ainda hoje frequentemente repetido. No mundo actual, quase tudo anda à volta dos bits e dos bytes, mas “soundbite” não…»
      No portal da American Bar Association (que vale a pena explorar, sobretudo nesta secção), encontro esta definição: «Soundbite: A short but complete and emphatic statement that is most likely to be incorporated into a news broadcast.»

Ortografia: «Lhasa» ou «Lassa»?

Costumes lassos

A capital do Tibete é Lhasa ou Lassa? E o que estabelece o novo Acordo Ortográfico sobre a matéria? Ambas as formas se podem encontrar na imprensa portuguesa. Dois exemplos: «Perante estas declarações, o primeiro-ministro chinês não só acusou o Nobel da Paz de potenciar os confrontos em Lhasa, como ainda referiu que o propósito seria “evitar a realização dos Jogos Olímpicos de Pequim”» («Dalai Lama pode abdicar contra violência no Tibete», Margarida Caseiro, Meia Hora, 18.3.2008, p. 6). «Há quase duas décadas que Lassa, a capital do Tibete, não assistia a protestos com a dimensão dos verificados esta semana» («Protestos antichineses põem Lassa a ferro e fogo», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 15.3.2008, p. 15).
Por uma vez, a redacção é inteligente: «Recomenda-se que os topónimos/topônimos de línguas estrangeiras se substituam, tanto quanto possível, por formas vernáculas, quando estas sejam antigas e ainda vivas em português ou quando entrem, ou possam entrar, no uso corrente» (artigo 6.º da Base I). Abre-se a porta não apenas à tradição (e nem toda a tradição, lembrem-se, é respeitável), mas à adaptação consensualmente aceite. Assim, a tradição pode começar todos os dias. Prefiro a grafia Lassa.

Actualização em 28.3.2008

No Jornal de Notícias grafa-se, respeitando a ortografia vigente, como está registada no Vocabulário da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves, Lassa: «Os jornalistas estrangeiros escoltados pelo Governo chinês até Lassa descreveram a capital tibetana como uma cidade tensa, marcada pela violência e onde ainda cheira a fumo quase duas semanas depois dos primeiros protestos anti-China» («Duas semanas depois a capital do Tibete ainda cheira a fumo», Global/Jornal de Notícias, 28.3.2008, p. 11).

«Cava»?

Cella vinaria, com dolia enterrados: http://www.culturacampania.rai.it/

Antes cova

Tirando a de Viriato, a veia, a que se faz com uma enxada e pouco mais, para que precisamos nós da palavra «cava»? Para nada, parece-me. Fora disto, é como espanholismo que a usamos. «Portugal consumiu, em 2005, 800 mil garrafas de cava, o vinho espumante produzido, principalmente na região espanhola da Catalunha, o que representa um crescimento de 35 % face ao ano anterior» («Um espumante que quer ser conhecido», José Manuel Oliveira, Diário de Notícias, 10.6.2006). Isto para dizer que underground cold-store se traduz por «cave» e não por «cava». O espanhol cava vem do latim cava, «cova», «fossa», e, para aquilo que aqui interessa, é, «en palacio, dependencia donde se cuidaba del agua y del vino que bebían las personas reales». Macacos me mordam se isso não é uma adega ou cave. Tanto mais que esse underground cold-store não serve para armazenar vinho, mas outras provisões. Já a 1.ª edição do Dicionário da Academia Francesa, de 1694, definia assim o vocábulo «cave»: «Lieu creux & soûterrain pour mettre du vin & autres provisions.» Para armazenar vinho, era a cella vinaria ou cauea vinaria dos Romanos.

Iliteracia

Acordo? Mas qual acordo?

Hospital Inglês, Campo de Ourique.
Uma recepcionista jovem atende uma chamada. Alguém a marcar uma consulta.
— Sim… Fale devagar…
Do outro lado da linha, soletram um nome.
— Esse, esse, hífen…
Perpassa-lhe uma sombra de dúvida pelo rosto. Pergunta à colega do lado:
— Hífen é ípsilon, não é?...
A colega não tem a certeza, vê-se, mas arrisca:
— É.
Quase em simultâneo, desinstalo-me do meu conforto e digo:
— Não é. É o tracinho, lembra-se?

18.3.08

Tradução: «ticket»

Sim, porquê?

«O candidato esperava ainda que a vitória pusesse definitivamente fim às especulações de que estaria disposto a aceitar a proposta da sua adversária, que nos últimos dias tem repetido a ideia de os dois concorrentes seriam imbatíveis se unissem os seus esforços num único ticket — com o nome de Hillary à frente» («Obama em busca do momentum perdido», Rita Siza, Público, 12.3.2008, p. 19). Por muito diferente que seja de uma lista eleitoral europeia, e especificamente portuguesa, não sei porque se tem de deixar por traduzir o termo ticket.

Léxico contrastivo: «Bagdá»

A terceira via

«Enquanto o pré-candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos, o senador John McCain, chegou a Bagdá em uma visita surpresa, contagens finais de Iowa e Califórnia mostram que o senador pelo Estado de Illinois, Barack Obama, expandiu sua frágil vantagem sobre a rival e senadora pelo Estado de Nova York, Hillary Clinton, em número de delegados que determinarão quem irá receber a nomeação pelo lado democrata» («McCain faz visita surpresa a Bagdá», Jornal do Brasil, 17.3.2008, p. A21). A esmagadora maioria das vezes, preferimos, na escrita, a forma «Bagdad», mas como a pronunciamos? Na verdade, como se estivesse escrito «Bagdá», pois sabemos que uma consoante final pode ser muda, como é o caso — ou sabíamos, porque nos dias que correm a oralidade é completamente descurada no ensino da língua portuguesa. Contudo, talvez fosse de considerar esta terceira via*. Para as novas gerações, que começam agora a aprender a língua, seria a grafia mais lógica.

* Neste aspecto, nada mudará com o novo Acordo Ortográfico. De facto, lê-se no artigo 5.º da Base I: «As consoantes finais grafadas b, c, d, g, e t mantêm-se, quer sejam mudas quer proferidas nas formas onomásticas em que o uso as consagrou, nomeadamente antropónimos/antropônimos e topónimos/topônimos da tradição bíblica: Jacob, Job, Moab, Isaac, David, Gad; Gog, Magog; Bensabat, Josafat. Integram-se também nesta forma: Cid, em que o d é sempre pronunciado; Madrid e Valladolid, em que o d ora é pronunciado, ora não; e Calecut ou Calicut, em que o t se encontra nas mesmas condições. Nada impede, entretanto, que os antropó[ô]nimos em apreço sejam usados sem a consoante final Jó, Davi e Jacó.»

17.3.08

Pronúncia: «sofá»


Não digam

Mais uma coisa irritante, só uma? Repoltreado no sofá (espero que não se importem que não seja numa poltrona), ocorre-me uma. Que alguém pronuncie a palavra «sofá» com o aberto. Só à estalada. Claro que quem diz /sófá/ também diz /drógado/. E está tudo dito.

16.3.08

Léxico contrastivo: «pego»

Escusado será dizer

Como 50 % dos meus leitores são brasileiros, só me fica bem dedicar-me mais à língua portuguesa falada do outro lado do Atlântico. Escusado será dizer — mas Vasco Graça Moura, encarniçado opositor do Acordo Ortográfico, julga-se forçado a dizê-lo, como ainda ontem à noite, no programa Diga Lá, Excelência, na RTP2 — que o Acordo Ortográfico não vai uniformizar particulares formas de dizer, sintaxe, léxico e pronúncia diferentes. Nem podia. Ainda hoje, ao ler um artigo no Jornal do Brasil, topei, mais uma vez, com o estranhíssimo particípio «pego», repudiado pelos próprios académicos brasileiros. E, no entanto, nem os académicos ignoram que a língua segue o seu próprio caminho, alheia às vontades individuais de seres tão efémeros como nós. O texto era, concretamente, uma tradução deste outro publicado no The New York Times: «Mr. Zammer is caught up in a Congressional standoff over immigration overhaul that is punishing employers who play by the rules and that, advocates of change say, could cost small companies billions in lost business» («Businesses Face Cut in Immigrant Work Force», Katie Zezima, 14.3.2008). E a tradução, impensável para um português, saiu assim: «Zammer foi pego por um impasse no Congresso com relação à reforma das leis de imigração, o que está punindo empregadores que seguem as regras e poderá custar às pequenas empresas bilhões em negócios perdidos» («Falta força de trabalho imigrante», Jornal do Brasil, 16.3.2008, p. A27). É caso para dizer que se trata de um particípio duplamente irregular… Por exemplo, como se pronuncia aquele e? É aberto ou fechado? Em que autores respeitáveis abonam o seu uso? Qual é o problema do particípio regular do mesmo verbo, na verdade o único, pois que não se trata de um verbo abundante? Pois é.

15.3.08

Gentílicos

Mais simples

Por estes dias, os jornais brasileiros não deixam de realçar que foi uma capixaba que ajudou a derrubar o hipócrita governador de Nova Iorque, Eliot Spitzer. Ah, pois, vejo os leitores portugueses a abanarem a cabeça e a perguntarem que raio é uma capixaba. É a pessoa nascida ou que vive no Estado brasileiro de Espírito Santo, no Brasil. O étimo é tupi. Também se pode dizer, naturalmente, espírito-santense.
E já que falamos de gentílicos, a propósito da ascensão de David A. Paterson, lia-se no The New York Times: «Many said they felt pride not only that a Harlemite had been thrust into the role of incoming governor, but that they had lived to see a black New Yorker as the state’s chief executive.» O Jornal do Brasil publicou este artigo — «In Harlem, Delight Over a Favorite Son’s Rise to Governor» —, da autoria de Jonathan P. Hicks, e tratou assim o gentílico: «Muitos disseram que sentem orgulho não só porque uma cria do Harlem assumiu o papel de governador, mas porque viveram para ver um nova-iorquino negro como chefe do governo de Nova York.» Em contrapartida, pelo menos num jornal espanhol vi o gentílico adaptado para «harlemita».

Léxico: «corta-vento» I

Onde está?

      «Pesa apenas 75 gramas o casaco corta-vento mais leve do mundo, lançado pela Montane, uma marca de equipamento de montanha e BTT, com produtos desenhados especificamente para quem procura as melhores performances» («Casaco mais leve do mundo», Metro, 14.3.2008, p. 12). Não vejo o vocábulo, ou pelo menos esta acepção, em nenhum dicionário de língua portuguesa. E, no entanto, é diariamente usado. Traduz na perfeição o termo inglês windcheater.

Léxico: «carjacker»

Fatal

Tinha de ser. Depois de carjacking, os jornais tinham de começar a usar o substantivo carjacker. «Um dos autores do roubo por “carjacking” no Estoril, e de um outro assalto em Lisboa, foi ouvido ontem no Tribunal de Cascais e levado para o Estabelecimento Prisional de Caxias» («“Carjacker” do Estoril foi preso», Metro, 14.3.2008, p. 2).

13.3.08

Léxico: «lofoscopia»

CSI


      Como não é todos os dias que a palavra surge, será bom dar conta do seu uso na imprensa. «Sem perder tempo, a PJ manda logo um perito para o local, encarregue de fazer o exame de lofoscopia do automóvel (recolha de impressões digitais)» («PJ e PSP fazem tudo para apanhar assassino», Rute Coelho, Global/24 Horas, 12.3.2008, p. 11). Na verdade, no local os técnicos de lofoscopia só fazem isso, mas há depois a parte laboratorial. Assim, a lofoscopia é a recolha e a análise de impressões digitais.
      Na edição n.º 554, de Agosto-Setembro de 2006, do Jornal do Exército, lê-se: «Tal como no antecedente, a PJM [Polícia Judiciária Militar] tem, nas suas instalações, as áreas técnicas de Lofoscopia (conjunto de técnicas que visam identificar indivíduos através das impressões das pontas dos dedos, palmas da mão, plantas dos pés, vestígios corporais, vestuário) e de Informática Forense» (p. 7).
      Lofoscopia é o termo mais geral. Se a análise for da ponta dos dedos, designa-se dactiloscopia; se for das palmas das mãos, é a quiroscopia; se for das plantas dos pés, é a palmatoscopia.

12.3.08

Tradução: «separator»

Imagem: http://bmfunchal.blogs.sapo.pt/
Anúncio do Diário da Madeira de 8 de Março de 1925

Separador?

Caro A. M. L.: pelo contexto, parece tratar-se de uma desnatadeira, que é uma máquina para separar (daí o nome em inglês) a matéria gorda do leite, isto é, a manteiga. O creme que fica é depois batido, separando-se a parte sólida, a manteiga (mas também para o fabrico de outros produtos lácteos, como iogurte), da líquida, o soro ou leitelho (buttermilk, em inglês). Assim, traduzir simplesmente por «separador» deixa o leitor na dúvida. É esse o objectivo?

«Podiatra», «podólogo» ou «podologista»?


Sem pés nem cabeça

Cara Luísa Pinto: optaria por escrever «podólogo». Nem todos os dicionários registam a forma «podologista». «Podiatra» (em inglês podiatry) nem pensar. É correcto, sim, não se pode negá-lo. E até está registado em alguns dicionários, como o Houaiss. Contudo, a semelhança com «pediatra» levar-me-ia a afastá-lo, por prudência. Não é uma boa razão? Afinal, escrevemos para que nos entendam, não para que nos decifrem.

11.3.08

Léxico: «meixão»

Mei… quê?

      «A Brigada Fiscal da Figueira da Foz apreendeu cinco indivíduos e quase 30 quilos de meixão (enguia bebé), numa operação realizada na madrugada de ontem, no Mondego» («Apreensão», Metro, 7.3.2008, p. 4). Numa notícia datada de 2003, o Correio da Manhã escrevia: «O meixão é uma enguia-bebé quase transparente, com cinco centímetros de comprimento, muito procurado para petiscos em Espanha, sendo vendido pelos pescadores a 200 euros/kg, o que faz dele o ‘caviar português’.» O vocábulo não está registado nos dicionários.

Novos pecados capitais

Os 13 pecados

«O Vaticano publicou, no domingo, uma lista com seis novos pecados capitais. Assim, aos outros sete tradicionais — gula, luxúria, avareza, ira, inveja, soberba e vaidade — juntam-se a modificação genética, a poluição do ambiente, provocar injustiça social, causar pobreza, tornar-se extremamente rico e por fim consumir drogas. Tudo para que a antiga lista se adapte à “realidade da globalização”, avança a BBC» («Vaticano apresenta uma lista com seis novos pecados capitais», Maria Nobre, Meia Hora, 11.3.2008, p. 4). Aliás, a jornalista não sabe se é uma lista se uma «listagem»: «Contudo, esta listagem da Santa Sé é vista com algumas reservas por parte de figuras da Igreja ouvidas pelo Meia Hora.» Dada a época que vivemos, é lembrada a definição de pecado (definição mais completa e clara do que a que se lê em alguns dicionários): «Transgressões de princípios religiosos, éticos ou morais, que podem acontecer por palavras, acções ou omissões.»

10.3.08

Casco velho

Zona histórica

      «A Câmara de Lisboa quer contrair um empréstimo para financiar a recuperação urbana do casco velho da cidade, “um buraco” financeiro e social, com bairros como Alfama e Castelo a definharem há anos sem população nem comércio» («Câmara faz empréstimo para reabilitar “casco velho”», Meia Hora, 10.3.2008, p. 7). É claro que vem do espanhol casco viejo — mas não é razão para escrever a expressão entre aspas. Para agravar, as aspas do título não chegaram ao corpo da notícia. De resto, esta é pecha de muitos jornais: escrever desnecessariamente palavras e expressões entre aspas. Quando são absolutamente necessárias, não as usam.

Definição: «carjacking»

Outros perigos

Ninguém mais do que eu apela à sensatez dos jornalistas quanto ao uso e explicação de estrangeirismos. Hoje, o Meia Hora usa o vocábulo carjacking e ensaia uma definição. «O Relatório Anual de Segurança Interna aponta como prioridade o combate ao roubo de carros na estrada com ameaça de armas de fogo (carjacking), revelou o responsável pelo Gabinete Coordenador de Segurança em entrevista à TSF» («Roubo violento de carros vai ser a prioridade», Meia Hora, 10.3.2008, p. 6). E se não for usada uma arma de fogo, mas uma arma branca, já não será carjacking? E se for já dentro da garagem ou na rampa de acesso?

8.3.08

O termo «nação»

O dedo na ferida

A propósito do termo «nação», escrevia ontem Javier Ortiz na sua crónica habitual, «El dedo en la llaga», no Público: «O termo “nação” não apenas recebeu desde antigamente usos muito diversos, como cada dia que passa ganha sentidos mais imprecisos e subjectivos. O que desagrada muito aos que identificam “nação” com “Estado” ou não vêem na ideia de “nação” outra dimensão possível que não a jurídico-política. Para estes, falar da “nação árabe” — expressão muito comum entre os interessados — não tem sentido. Ultrapassa-os tanto o muito grande como o muito pequeno: tão-pouco compreendem que haja ameríndios que falem da “nação sioux”, por exemplo. Nos EUA, muitos afro-americanos definem-se como “nação”. E o mesmo acontece com não poucos latinos» («Las nuevas naciones», Público, 7.3.2008, p. 18, tradução minha).

RevPar e pax

Como?

«De acordo com um estudo da consultora imobiliária [Cushman & Wakefield], o preço médio por quarto disponível (RevPar) em Lisboa é de 58,74 euros, assente numa taxa de ocupação de 6,58 %» («Lisboa tem dos hotéis mais baratos do mundo», Global, 5.3.2008, p. 4). Desta vez, o jornal explicou o acrónimo que usou, o que ainda não é, como devia ser, prática corrente. Outras fontes indicam que o RevPAR é o rácio entre a receita dos quartos ocupados e os quartos disponíveis num determinado período. Como era de esperar, RevPAR vem do inglês: «revenue per available room». Estranho? Tanto ou tão pouco como pax para designar o passageiro aéreo ou o hóspede de hotel. São termos usados em todo o mundo.

Tradução: «canyon»

Quase acertavam

Como traduzir a palavra inglesa canyon? Isso mesmo: por «ravina», «vale profundo com rio», «desfiladeiro». Mas tratar-se-á exactamente do mesmo? É esse o problema da tradução. Neste caso, os Brasileiros têm uma forma aparentemente expedita de traduzir a palavra. O artigo do The New York Times, assinado por John Noble Wilford, dizia: «By dating mineral deposits inside caves up and down the canyon walls, the geologists said they determined the water levels over time as erosion carved out the mile-deep canyon as it is known today. They concluded that the canyon started from the west, then another formed from the east, and the two broke through and met as a single majestic rent in the earth some six million years ago» («Grand Canyon Still Grand but Older», 7.3.2008). O Jornal do Brasil traduziu assim: «Ao datar os depósitos minerais dentro das cavernas do cânion, os geólogos disseram que determinaram os níveis de água ao longo do tempo, à medida que a erosão esculpiu o cânion de 1.600 metros de profundidade como é conhecido hoje. Eles concluíram que um cânion começou no Oeste, outro, no Leste, os dois avançaram e se encontraram formando uma escultura majestosa e única na Terra, há 6 milhões de anos» («Grand Canyon é três vezes mais velho do que se pensa», 8.3.2008, p. A23). O Dicionário Houaiss, contudo, ao registar «cânion», afirma que é a forma não preferencial de «canhão». Logo, canhão é a melhor tradução de canyon.
O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, regista também a forma canhom: «Canhom, s. m. Formação orográfica, também chamada canhão.» Na língua espanhola há o termo cañón: «Paso estrecho o garganta profunda entre dos altas montañas, por donde suelen correr los ríos.»

Mapear e cartografar

Poupem-nos

Posso estar enganado, mas o «mapeamento» foi largamente divulgado (atenção, precipitados: eu escrevi «largamente divulgado») com o genoma. Agora, os tradutores não podem é querer à viva força que tudo seja «mapeado», não deixando nada para a cartografia. Então ele foi «to map that region» — mapear a região. Não pertencia, com certeza, aos Serviços Cartográficos do Exército. Mais um amador.

7.3.08

Léxico: «gestuário»

«O patriotismo é o último refúgio dos canalhas.»
Samuel Johnson
Capitão Gancho

No gestuário da língua gestual espanhola, o nome «Zapatero» é transmitido fazendo quase um círculo com o indicador e o polegar sobre o olho direito. Agora, é notícia a iniciativa de mau gosto que foi o PP de Castela-La Mancha ter publicado na sua página da Internet uma imagem do terrorista Abu Hamza, por baixo da fotografia de Mariano Rajoy e ao lado da presidente do PP desta comunidade autónoma, Maria Dolores de Cospedal, com o gancho (garfio em espanhol, palavra que há menos de uma semana vi mal traduzida por «garfo». Quem não se lembra do Capitán Garfio?) a fazer o mesmo gesto. Conclui o Público: «Más flaco favor que a Zapatero hacen a su líder máximo y a su ‘lideresa’ regional colocando al terrorista bien pegado a ellos.»

Costumes espanhóis

Imagem: http://img207.imageshack.us/

Con aceite, como Dios manda


A correspondente do jornal espanhol Público nas Canárias, Concha de Ganzo, foi a Lanzarote entrevistar José Saramago. Pergunta a jornalista: «Rajoy propone que los inmigrantes firmen un contrato, en el que, entre otras obligaciones, tendrían que cumplir con las costumbres españolas. Como portugués que vive en Canarias, ¿qué le parece?» Responde Saramago: «Rajoy no es estúpido, pero se esfuerza mucho por parecerlo. Lo malo es que de vez en cuando lo consigue. Me satisface tranquilizar a don Mariano: en mis desayunos, siempre hay tostadas con aceite y azúcar, que es costumbre española, andaluza por más señas…» Costume que, a determinada altura da História, passou a fronteira. A conversa andou toda à volta da actualidade política espanhola, mas ainda houve tempo para perguntar: «¿Y qué pasará en la nueva obra de José Saramago?» «Se llamará El viaje del elefante y sobre ella no diré más. En otoño, se sabrá.» Talvez só tenha título, pois o escritor já confessou que começa as suas obras pelo título. Homem feliz.

Ortografia: «jihadista»

Então pensem

      Devemos grafar — e, pese o desleixo ignóbil de alguns jornais, há absoluto consenso na matéria — jihad como acabei de fazer, pois a palavra não é portuguesa. Não devemos, porém, fazer o mesmo com a derivada «jihadista». Por uma razão muito simples: esta é portuguesa. (Deixem lá o agá no meio! Também «chanfrado» o tem, e vocês importam-se, acaso? Revoltam-se?) Apesar de tudo, quem assim escreve devia parar um pouco e reflectir em casos de analogia. Stress *, por exemplo. É em itálico que a grafamos. Já a derivada «stressado» ninguém a grafa, e muito bem, em itálico. Com um exemplo tão claro, dispenso-me de aduzir outros. «Entretanto, confrontos entre jihadistas e o exército de Israel em Kissufim, na Faixa de Gaza, vitimaram um soldado israelita» («Faixa de Gaza encontra-se em “implosão humanitária”», Meia Hora, 7.3.2008, p. 8).


* Este sim, um estrangeirismo insubstituível, ao contrário do que afirma a equipa do Ciberdúvidas sobre os vocábulos background e kit. É desta maneira derrotista que defendem a língua portuguesa. De kit não digo nada, por achar desnecessário. Quanto a background, já vi alguns dos nossos melhores tradutores, nas mais diversas obras, vertê-lo para «pano de fundo» «enquadramento», «panorama», «antecedentes», «passado», «contexto», «origens», «ambiente», etc.

6.3.08

República Chechena da Ichequéria

Porque não?

Pergunta, e muito bem, o leitor J. J. L.: «Aquilo que em inglês se escreve Ichkeria, em francês, Itchkérie, em alemão, Itschkeria, em espanhol, Ichkeria, e em catalão, Itxkèria, como poderá (ou deverá) ser transcrito para português: Itchquéria, Ichquéria, Isquéria, Ichéria?» A minha resposta, e a esta hora já muitos leitores o saberão, porque ficou lá para trás, num comentário, foi: «Ainda não vi nenhuma tentativa de aportuguesamento deste topónimo, mas “Ichequéria” não me parece mal.» Parece-me a mais conforme à língua portuguesa. Mas, é claro, passados tantos anos, ainda se continua a escrever «Abkázia», quando seria mais natural (mesmo que se repute tolice não termos a letra capa no nosso alfabeto) a grafia «Abcázia», como eu já escrevi vezes sem conta na imprensa e na revisão de obras. «Conhecida a intenção da Ossétia do Sul, também a outra região separatista da Geórgia, a Abkázia, anunciou que pedirá ao resto do Mundo que reconheça a sua independência» («Estilo “Kosovo” estende-se à Ossétia do Sul e Abkazia», Meia Hora, 6.3.2008, p. 11).

Penitenciaria e penitenciária

Mais confusões

A notícia apareceu em toda a imprensa: o bispo Gianfranco Girotti aconselhou a intervenção de um exorcista em caso de fenómeno diabólico como possessão ou obsessão. E a que instituição da Igreja Católica pertence ou preside D. Girotti? A maioria da imprensa portuguesa não tem dúvidas: ao Tribunal da Penitenciária Apostólica, um dos três tribunais da Cúria Romana. Mas não: pertence, isso sim, ao Tribunal da Penitenciaria Apostólica. Semelhante, sim senhor, mas diferente. Como os jornalistas só conhecem a Cadeia Penitenciária de Lisboa, que é, na verdade, a antiga designação do que actualmente é o Estabelecimento Prisional de Lisboa, não concebem uma instituição designada (a partir do latim Pœnitentiaria Apostolica) Tribunal da Penitenciaria Apostólica.
«O bispo Gianfranco Girotti, regente do Tribunal da Penitenciária Apostólica do Vaticano, defende que em caso de possessão diabólica a pessoa afectada deve dirigir-se a um exorcista e não a um confessor» («Bispo aconselha um exorcista em caso de possessão diabólica», Meia Hora, 6.3.2008, p. 11).


5.3.08

Léxico contrastivo: «contêiner»

Imagem: http://www.pianoclub.gr.jp/

Porque contém

Sabiam que no Brasil o nosso contentor se chama contêiner e que antigamente era designado cofre-de-carga? E que está escrita a história deste recipiente? Não? Pois não sabem muito. Leiam. «Um datacenter (local que abriga servidores de rede) com capacidade para processar milhões de pedidos de compra ao mesmo tempo, em um site de comércio eletrônico, já pode funcionar, inteirinho, dentro de um contêiner e ser levado, em tese, para qualquer lugar. Basta que a região tenha água, energia elétrica e conexão de rede» («Datacenter móvel da Sun cabe em um contêiner», Paulo Marcio Vaz, Jornal do Brasil, 3.3.2008, p. A24). Contêiner é, como se vê, o aportuguesamento da palavra inglesa container.

4.3.08

O que se diz na rádio

Promessas

Nos jornais gratuitos já tinha visto isto. Hoje, ao ouvir um noticiário na Antena 1, tomei plena consciência da dimensão da nova tendência. Na informação meteorológica, jornais e rádio já não falam de previsões, mas de «promessas». «No final da tarde, conforme prometido, registar-se-ão ventos fortes no litoral norte.» Prometido por quem, valha-me Deus? Quem pode prometer seja o que for nesta matéria? São Pedro? São previsões, senhores jornalistas, e previsões não são promessas. Mas a RDP e a RTP não tinham estabelecido com o Ciberdúvidas um protocolo para um serviço de consultoria linguística permanente? E então?

Tradução: compostos de «hood»

Enfia lá este

Traduzir o vocábulo inglês «hood» é fácil: será, em função do contexto, «bioco», «capa», «capelo», «capota», «capuz», «touca»… O pior é quando «hood» é sufixo. Este é mais um glossário em construção.

adulthood: adultícia; idade adulta
bachelorhood: celibato
boyhood: meninice, infância
brotherhood: irmandade; confraria
buddhahood: budidade
childhood: infância
falsehood: falsidade, mentira
hardihood: coragem, audácia, intrepidez, ânimo; descaramento, atrevimento
knighthood: cavalaria
Jewhood: condição judaica
likelihood: verosimilhança, possibilidade, probabilidade; cenário
livelihood: modo de vida; ganha-pão
manhood: masculinidade, virilidade; condição masculina; os homens
motherhood: maternidade; vocação maternal
nationhood: condição de nação; o facto de ser nação
neighbourhood: bairro, zona, vizinhança
priesthood: sacerdócio, clero
sisterhood: confraria, irmandade, congregação de religiosas; situação de irmã
statehood: posição do Estado; Estado independente
victimhood: vitimização
widowhood: viuvez
wifehood: situação (condição) de mulher casada


[Glossário em construção] [22 entradas]

3.3.08

Como se fala na rádio

Vórtices culturais

      Cultura. Que digo? Culturalíssima. Antena 2, programa Boulevard, com André Pinto e Reinaldo Francisco. Um deles, não sei qual, anunciou uma composição de Antonio Vivaldi como «Águas Revoltas» — mas este «revoltas» como quem diz «revoltas mineiras» ou «revoltas do século XVII», com o o aberto. Ostensivamente aberto. Abertíssimo. Escancarado. Rádio cultural...


Glossário: burlescos, injuriosos...

... depreciativos…


artólatra
m. Adorador do pão.│Nome dado, por irrisão, aos católicos, por adorarem a Eucaristia.
autolata m. gír. Nome dado a automóveis velhos.
aviscondalhar v. Pej. Fazer visconde.
bedelhar v. Intrometer-se com curiosidade em assuntos alheios, cavaquear.
beiçola adj. Que tem beiços grandes.
belfa f. Face de pessoa bochechuda.
belfaça f. Belfa grande.
boche adj. e m. Termo depreciativo com que os Franceses designam os Alemães.
boi-corneta m. Indivíduo intrometido, abelhudo, indisciplinado, rixoso, que em toda a parte introduz a discórdia.
bolónio m. Pop. Ignorante; simplório.
boquirroto adj. Falador, que não guarda segredo.
borboletice f. Caprichos ou modos de borboleta.│2. Volubilidade.
brichote m. Nome que, por desprezo, se dá aos estrangeiros.
brulote m. Homem de opiniões exaltadas.
bugre m. Nome depreciativo dado aos selvagens do Brasil.
camacho adj. Diz-se do indivíduo que é coxo.
capeludo adj. Que usa capelo.│Designação injuriosa dos franciscanos.
cita-cristos m. Ant. e Pop. Esbirro; oficial de diligências; beleguim.
citote m. Pop. Oficial de diligências ou qualquer empregado judicial, que faz citações.
coronelício adj. Próprio de coronel.
dentolas m. Indivíduo que tem os dentes grandes e feios.
doutoreco m. Doutor sem valor.
dramalhoco m. Drama sem valor nem merecimento.
escarumba m. Homem de raça negra.
escorropicha-galhetas m. Deprec. Sacristão.
franchinote m. Nome que no século XVI se dava em Coimbra aos padres jesuítas.
franduleiro adj. Estrangeiro.
frege-moscas m. Cozinheiro das tabernas de iscas.
godeme m. Bras. Alcunha pitoresca dos Ingleses.
machacaz m. Pleb. Indivíduo corpulento e desajeitado.
marteleiro m. Caçador que quase nunca acerta o tiro contra a caça (por alusão à pancada do cão da espingarda cobre a espoleta).
novelória f. Novela mal engendrada, mal feita.
porta-pastas m. Ministro de Estado.
possidónio m. Deprec. Político ingénuo, que só vê a salvação do país no corte profundo e incondicional de todas as despesas públicas.
rancatrilha m. Prov. Aquele que coxeia, arrastando uma perna.
repolho m. Fam. Pessoa muito gorda, muito nutrida.
requinho m. Ant. Deprec. Seminarista.
retambufa f. Pop. e Chul. As nádegas.
roupeta m. Deprec. Padre, clérigo, especialmente jesuíta. O m. q. roupeta-negra.
sargentola m. Depre. Sargento de escassos méritos.
sotaina f. Padre ou frade
teatrelho m. Teatro insignificante ou ordinário; teatreco.
teatrório m. Teatro pequeno e reles.

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Semântica: «arregaçar»

Parece-me elementar

Não costumo discutir com ignorantes que o querem ser — mas desta vez tive de fazê-lo. Era professor de Português, mas para mim podia e devia ser açougueiro ou arrieiro. Creio que o segmento de frase era «hitching up their pants». «Arregaçando as calças», lancei eu. O que fui dizer! «Forrando as calças», rugiu. «“Arregaçar” é para as mangas e só para as mangas!» Ainda lhe falei da etimologia de «arregaçar»: que originalmente era apenas puxar, recolher a borda, a barra, a fímbria de uma peça de vestuário, formando regaço, dobras ou pregas. Cá está, regaço. Que só depois, por extensão de sentido, passou a significar também — também — puxar, dobrar para cima parte de uma peça de vestuário, como as mangas da camisa. Por outro lado, fiz-lhe ainda ver, «forrar» é um provincianismo a evitar. Em vão.

2.3.08

Tradução de «Juno»

Métodos

A edição de hoje do Jornal do Brasil publica uma entrevista com a tradutora Marina Fragano Baird, por ocasião da atribuição do Óscar para o Melhor Argumento Original atribuído ao filme Juno, de que foi responsável pela tradução.

«Tradutora responsável pelas legendas de Juno e de mais de mil filmes, Marina Fragano não trabalhou sozinha no longa indicado para quatro Oscars, ganhador da estatueta de roteiro original e proprietário de gírias, muitas incompreensíveis. ­
— Na internet, encontrei expressões que achava que se adaptariam —­ entrega Marina, que diz ter se apegado bastante à história da personagem-título interpretada por Ellen Page, grávida que, em vez de abortar, decide escolher os pais mais indicados para criarem seu bebê. — No caso de Juno, pedi para meu filho de 23 anos ver o filme comigo. Discuti com ele sobre as gírias.
Mesmo com esse exercício de tentar fazer o longa não perder a leveza de linguagem, em alguns casos expressões do vocabulário do adolescente americano ficaram perdidas com a troca de idiomas. A descolada honest to blog, com referências à internet, por exemplo, virou o careta e sóbrio “francamente”. Algo parecido ocorreu com your eggo is preggo, que se tornou o protocolar “seu óvulo foi fecundado”. ­
— Houve o caso em que o namorado chama a Juno de wizard. Fiquei na dúvida. Não sabia se usava maga ou feiticeira. Falei com meu filho e a namorada dele, que tem 20 anos, e ela gostou do termo “bruxinha”. Ela disse que gostaria de ser chamada assim —­ lembra a tradutora, deixando claro que a expressão deveria ser carinhosa.
Marina é uma das tradutoras mais requisitadas do mercado. São de sua autoria legendas de grandes produções, como as das séries Senhor dos anéis e Harry Potter.
— Mas são as comédias que demoram um pouco mais para serem traduzidas. Por terem mais diálogos, gasto uma semana. Para filme de ação ou terror, demoro quatro dias — ­ explica Marina.
— Comédias italianas são ainda mais difíceis do que Juno, pois são mais complexas na linguagem. ­
— Um exemplo é Parentes é serpente. Outro com muitos diálogos é o novo do Woody Allen, O sonho de Cassandra. Allen costuma dar bem mais trabalho do que Juno.
Marina explica que seu trabalho começa quando recebe as sinopses e listas de comentários sobre o filme. Depois, lê o roteiro e vê o DVD fazendo anotações, já que as traduções dependem dos cortes e da duração das falas. ­
— Tive que ler os cinco livros do Harry Potter em inglês e também o Senhor dos anéis. É importante para uma boa tradução ­— diz. ­
— Quando é uma história de que você gosta, como é o caso de Juno, acabo torcendo para que o filme seja premiado e assistido» («Juno foi ‘decifrada’ para o Brasil», Braulio Lorentz, Jornal do Brasil, 2.3.2008, p. B5).


Alguns termos e expressões traduzidos

Wizard Bruxinha
Shut your gob Cale a boca
Your eggo is preggo Seu óvulo foi fecundado
Fertile Myrtle Senhorita Fertilidade
One doodle that can’t be undid, homeskillet Não é algo que pode desfazer
Honest to blog Francamente
Phuket, Thailand! Caramba
Pork sword Lingüiça
Haven’t taken a dump Não faço cocô
Narc you out to your folks Entregar você para seus pais
Bleeker is totally boss Bleeker é o máximo

1.3.08

Tradução: «buffalo chips»

how to destroy the nuisance On the pampas of southern temperate America the prairies of northern temperate America and in sundry table lands to boot fuel of wood or coal is a very scarce commodity and the chief resource of travellers is called bosta in the south and buffalo chips in the north it is in short dry animal manure When in sufficient masses a pleasantcr or better fire never warmed an Irish cabin on the edge of a peat moss Here is an indication of one means of disposing of noxious matter not polluting thousands of gallons of water in a vain attempt to move matter from one wrong any of floated it will this oil shilling ticable instead The ask arc to answer

Tradução: «athletic supporter»

Suspensório escrotal (athletic supporter) usado pelos jogadores de beisebol

Genitália


Mesmo que seja conhecido de alguém como «suporte atlético», temos honestamente de convir: pouca gente saberá do que se trata. Mas foi assim que o tradutor optou por verter a locução athletic supporter (que é o mesmo que jock, jockstrap). Certo é que para os Espanhóis — e até está registado no DRAE — a peça de vestuário se chama suspensorio. Ora, também no Brasil lhe dão o nome de «suspensório», mas não qualquer suspensório: «suspensório escrotal». Entre nós, encontrei numa tabela de comparticipação da ADSE um «suspensório testicular/trousse escrotal». Sim, porque isto não é só para atletas, mas também para homens herniados. Assim, também se podia chamar-lhe bragueiro ou mesma funda. Consoante as características específicas e o objectivo, imagino que tanto se possa encontrar um suspensório escrotal numa loja de material ortopédico, como na Decathlon ou na Sexilândia. Com ou sem concha.