31.1.10

Elemento de formação «anti-»


Perplexidades


      «Animador [Daniel Bensaïd (1946-2010)] das revistas Critique Communiste e Contre-Temps [sic], lançara-se em 2009 na criação de mais uma força política, o Novo Partido Anti-Capitalista, em substituição da entretanto extinta Liga Comunista Revolucionária» («O filósofo vermelho», E. C., Visão, n.º 880, 14.1.2010, p. 20).
      «Anti-capitalista»? Não é assim em português — e não é, vê-se, por influência do francês. O elemento de formação anti- (e o copydesk — porque grafam copyDesk? — da revista Visão tem obrigação de sabê-lo) aglutina-se com o elemento seguinte, excepto quando este tem vida própria e começa por h, i, r ou s, separando-se, neste caso, por hífen. Anticapitalista, pois.

[Post 3078]

Homília/homilia

Corria o ano de 2007


      «Folheadas as mais de 400 páginas do volume no qual o bispo do Funchal reuniu as suas homílias, mensagens e entrevistas de dois anos à frente da diocese, não se encontram denúncias nem sobressaltos com a carga e o simbolismo das proferidas pelo cónego Manuel Martins» («Em nome do Pai, do filho e de... Jardim?», Miguel Carvalho, Visão, n.º 880, 14.1.2010, p. 44).
      E quatro vezes assim escreve Miguel Carvalho — e bem. Como teria escrito bem se tivesse escrito homilia. São variantes, e se esta última é mais usada, tanto na oralidade como na escrita, nada temos a criticar. Na maior parte dos casos, a opção por uma ou por outra deriva somente do gosto pessoal. Há mais variantes prosódicas, como se sabe. Clítoris e clitóris, por exemplo. (Que até tem outra variante, se bem que não prosódica: clitóride.) Algumas variantes não estão registadas nos dicionários, e é pena. Num texto, «Prazeres da língua — 3 (com a devida vénia ao canal, o Odisseia)», publicado por Valupi em Janeiro de 2007 no blogue Aspirina B, podia ler-se: «Falamos de um documentário científico acerca do clítoris. Ou do clitóris, como se grafa no livro A História Íntima do Orgasmo, de Jonathan Margolis, em tradução de Fernando Dias Antunes.» Não se vislumbra — ou será que se vislumbra? — uma ponta de crítica ou de ironia no reparo de Valupi. Fui eu o revisor daquela obra e optei por deixar a acentuação por que Fernando Dias Antunes se decidira — tanto mais que é, ainda hoje, a que me parece ser mais usada.

[Post 3077]

Aportuguesamento: «coltão»

Mistura de minerais


      «A guerra civil na República Democrática do Congo é, em grande medida, uma luta pelos recursos naturais do país. A ONU estima que o tráfico desta matéria-prima, usada nos telemóveis e na indústria espacial, tenha valido mais de 750 milhões de dólares, entre 2000 e 2004, aos cofres do Governo» («Coltão», Visão 880, 14.1.2010, p. 55).
      Actualmente, ainda nenhum dicionário regista este aportuguesamento — coltão —, que é, contudo, já usado em textos de vária natureza. Em alguns dicionários pode ler-se que coltan é a designação coloquial africana para uma mistura de dois minerais, columbita e tantalita, e que em português se diz columbita-tantalita. Demasiado comprido. Prefiro coltão.


[Post 3076]

30.1.10

Plural dos apelidos

Discriminação!


      Caro Público: porque escreves «os McCann» se escreves «os Médicis»? «Foi Cosimo I (1519-1574), o primeiro grão-duque de Florença e fundador da dinastia de Médicis que governou a cidade até ao século XVIII, quem encomendou ao arquitecto Giorgio Vasari (1511-1574) a construção dos Uffizi, onde originalmente funcionariam os escritórios das 13 magistraturas florentinas» («Guardiã dos tesouros dos Médicis», Ana Filipa Gaspar, Público, 29.1.2010, p. 43). «McCann enfrentam em tribunal polícia que os incriminou» (Paula Torres de Carvalho, 13.1.2010, p. 7).
      McCann não é plural em português nem em inglês. Médici já é plural em italiano. Tira tu as conclusões, que eu agora vou tomar o pequeno-almoço (e ainda tenho de ir à padaria da D. Narcisa comprar um cacete galego).


[Post 3075]

Acordo Ortográfico

Mentiras e desastres


      Ontem, a propósito da adopção das novas regras ortográficas por parte da agência Lusa (pretexto para voltar a clamar: «O problema é a nova ortografia ser uma mentira política e um desastre linguístico.»), o filósofo Desidério Murcho voltou a publicar um texto sobre o Acordo Ortográfico de 1990. Eis um excerto: «Na verdade, ocorre as duas coisas: a ortografia afecta a fonética e a fonética a ortografia. Por exemplo, porque alguém no Brasil decidiu deixar de dizer o “c” de “facto”, alguém decidiu desatar a escrever “fato” em vez de “facto”, e porque se decidiu escrever dessa maneira, agora as pessoas no Brasil considerariam bizarro dizer “facto” — apesar de dizerem tranquilamente “factivo”, o que é estranho.»
      É, decerto, uma caricatura. Nem se sabe exactamente como é, mas não há-de ser porque «alguém decidiu deixar de dizer o “c” de “facto”, alguém decidiu desatar a escrever “fato” em vez de “facto”». E, por outro lado, pensemos, será assim tão bizarro? Também nós não articulamos o p, consoante etimológica, de Egipto e não deixamos de o articular em egípcio. Sendo assim, inteligentes são os Brasileiros, que alijaram a carga inútil do c em facto, porque não o articulam, e não prescindem dele em factivo, porque o articulam.
      Já conheço o argumento: este acordo veio consagrar o desrespeito pela unidade das famílias de palavras. Contudo, foneticamente já havia falta de unidade. Nunca haverá coexistência pacífica entre o ideal fonográfico e o princípio ideográfico (agora, com este acordo, seriamente quebrado), mas pensem só no século XIX e em toda a trapalhada que então se vivia.

[Post 3074]

29.1.10

Léxico: «mamaliano»

Por registar


      «Tal como outros répteis mamalianos, este tem uma mistura de características de réptil e mamífero» («Fóssil de antepassado comum a todos os mamíferos descoberto em Moçambique», Teresa Firmino, Público, 29.1.2010, p. 10).
      Não encontramos o termo mamaliano em nenhum dicionário geral da língua. Ainda que tenha por detrás o latim, vem directamente do inglês mammalian.

[Post 3073]

Deslizes do Ciberdúvidas

Ou em qualquer outro


      Na semana passada, um consulente brasileiro perguntou ao Ciberdúvidas se o particípio ecoada, e citava uma frase, tinha sido usado com propriedade. O mais intrigante era a classificação da consulta: «emprego de ecoada (contexto jurídico)». Se o contexto interessa quase sempre ao esclarecimento da questão, é incorrecto afirmar, como o faz o consultor permanente Carlos Marinheiro, que no contexto jurídico o termo «ecoada» significa isto ou aquilo. Posso inventar cinco ou dez frases de natureza completamente diferente em que o particípio seja usado com igual propriedade. Dito de outra forma, o verbo ecoar não tem nenhuma acepção de uso exclusivo na linguagem jurídica.

[Post 3072]

Uso do itálico

Ainda?


      «Todas as tropas iraquianas e muito do seu armamento tinham desaparecido e começavam a fervilhar receios de que um movimento de guerrilha ba’athista bem armado estivesse a ganhar forma aqui mesmo em Mossul» (Fim de Tarde em Mossul, Lynne O’Donnell. Tradução de Ana Saldanha. Queluz de Baixo: Editorial Presença, 2008, p. 11).
      Grafar em itálico o vocábulo destacado é puro disparate. Este vocábulo, e já o vimos aqui com outros, resulta de um processo híbrido de formação de palavras. Sendo formado com o sufixo –ista, é tão português como «disparate».

[Post 3071]

«Extra»: adjectivo variável II

Concordo


      «A revista [Sábado] publica um texto escrito com base em depoimentos seus, expressamente destinados a serem publicados, em que confessa a sua obsessão por crianças. O artigo disponibiliza ainda informações extras para compreender o caso» («Homem admite que é pedófilo e fala da obsessão», Destak, 28.1.2010, p. 4).
      Já temos visto que, para alguns falantes, como para mim, o adjectivo «extra» é variável.

[Post 3070]

28.1.10

Sobre «vulgo»

Diz o vulgo?


      Lê-se no editorial de hoje do Público: «O caso do aluimento de terras na Circular Regional Exterior de Lisboa (vulgo CREL) é paradigmático do modo como se cultiva e expande a irresponsabilidade em Portugal» («Irresponsabilidades do caso CREL», p. 38).
      Morfologicamente, o que é aquele «vulgo»? É um advérbio, sim senhor. Significa na língua vulgar; vulgarmente. O exemplo do Dicionário Houaiss é: «O Salmo salar, vulgo salmão.» Claro que, no caso, o uso vulgar é o do próprio jornal e de toda a comunicação social... Não estou a ver a fina-flor a proferir, escusadamente, Circular Regional Exterior de Lisboa.
      É curioso que o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não registe este advérbio. Mais um erro.

[Post 3069]

27.1.10

Léxico: «painel de mensagem variável»


Dá jeito


      «Para evitar o agravamento da situação, a Brisa alerta para que os condutores se mantenham atentos aos painéis de mensagem variável e “à sinalização especial de desvio” que está a partir de hoje colocada nas auto-estradas A1, A2, A5, A8, A9, A10, A16 e no IC19» («Deslizamento de terras vai cortar a CREL durante dias», Maria João Serra, Destak, 25.1.2010, p. 3).
      Agora já sabemos como se chamam aqueles «equipamentos de controlo de tráfego programáveis, que afixam mensagens de texto e pictogramas, visando melhorar a operação e evitar acidentes» (como se lê aqui). «Trânsito lento. Seja prudente.»

[Post 3068]

Graus dos adjectivos

«Como que de»!?


      «Por enquanto, porém, a distinção entre o portátil e o caseiro, por muito irracional que seja, há-de prevalecer. A fronteira absurda entre ambos já foi desmascarada desde que fizemos o primeiro telefonema em casa, de um telemóvel, por ser mais barato e tão bom como que de um “fixo”» («É hoje!», Miguel Esteves Cardoso, Público, 27.1.2010, p. 31).
      No grau comparativo de igualdade, a construção é tão + adjectivo + como (ou quanto); logo, aquele que está ali a mais. Apenas para a construção dos graus comparativos de superioridade e de inferioridade é necessário o pronome relativo: mais + adjectivo + que, do que/menos + adjectivo + que, do que. É assim ou não é, Miguel?

[Post 3067]

«Língua brasileira»?

Só com legendas


      Jô Soares está em Portugal para dizer poemas de Fernando Pessoa (Remix em Pessoa, no Teatro Villaret). Segundo o Público, é «com sotaque de Portugal que Jô Soares vai dizer Pessoa porque nunca poderia fazê-lo em brasileiro. “Somos unidos por uma língua totalmente diferente”, explicou. “Tem coisas em que a unificação da língua não adianta.” Os brasileiros “ficaram numa língua meio seiscentista, que antigamente se falava em Portugal”, mas para o actor “é fascinante” ver “a evolução de uma língua para um lado e outra para outro”» («Portugueses e brasileiros são “unidos por uma língua completamente diferente”», Alexandra Prado Coelho, Público, 27.1.2010, p. 10).
      «Somos unidos por uma língua totalmente diferente.» De vez em quando, ouve-se este exagero risível. E não são apenas brasileiros a dizerem-no: há três ou quatro anos, ouvi o escritor José Couto Nogueira afirmar convictamente — e desafiadoramente — a existência da «língua brasileira», supostamente tão diferente da língua portuguesa que não nos compreendíamos.

[Post 3066]

26.1.10

Verbo «haver» — inacusativo?

Vislumbre do futuro


      «Toda a ajuda é pouca, ou não houvessem, segundo os dados da Organização Internacional para as Migrações, pelo menos 500 mil pessoas sem casa, isto só na capital haitiana, Port-au-Prince, onde a confusão parece instalada, como testemunham os portugueses» («Equipa nacional ajuda a minimizar as dificuldades dos sobreviventes», Destak, 25.1.2010, p. 19).
      Na acepção de existir, já aqui o escrevi vezes sem conta, o verbo haver é impessoal, a concordância é com o sujeito nulo (de 3.ª pessoa singular). Há estudos recentes que apontam para a hipótese de estarmos no limiar de uma mudança que conduzirá ao uso deste verbo como inacusativo*.

[Post 3065]


* «Sabe-se, desde a publicação de Perlmutter 1978, que os verbos que seleccionam um só argumento e que a tradição gramatical designa por “intransitivos” não são uniformes, podendo englobar verbos que seleccionam um argumento externo — os chamados inergativos — e os verbos que seleccionam um argumento interno a que não atribuem caso acusativo, argumento esse que se comporta como sujeito final — os chamados inacusativos» («Nomes derivados de verbos inacusativos: estrutura argumental e valor aspectual», Ana Maria Brito, in Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, Porto, 2005, p. 48).

25.1.10

Tradução para o Audiovisual

Haja esperança


      Ainda está a decorrer o prazo para a candidatura na pós-graduação Tradução para o Audiovisual na Universidade Católica Portuguesa (ver aqui). No sítio do jornal Sol leio o título «Católica ‘ensina’ a traduzir filmes». E se o título é prudente, pondo aspas na forma verbal, o texto da jornalista Ana Serafim é excessivamente entusiástico, afirmando: «São frequentes as incorrecções nas traduções de filmes, o que pode até gerar falsas interpretações dos enredos. Para evitar erros deste género, a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica inicia em Março uma pós-graduação em Tradução para o Audiovisual.» Apraz-me, contudo, registar que um dos objectivos é «apurar o uso da língua portuguesa para os fins específicos da dobragem e legendagem, de modo a combater a displicência tão manifesta nos ecrãs nacionais (módulo de língua portuguesa)». A coordenação científica da pós-graduação está a cargo do Prof. Doutor José Miguel Sardica e a coordenação pedagógica é da resposabilidade da mestre Alexandra Lopes.

[Post 3064]

Mudar de nome

Foto do jornal A Bola

Onomástica


      É o jornal Destak de hoje que o garante: Abel Xavier, antigo internacional português, «converteu-se ao islamismo, recebendo como novo nome Faissal» («Abel Xavier adopta nome islâmico de Faissal», Destak, 25.1.2010, p. 8). Já para A Bola, o jogador foi «baptizado com o nome muçulmano Faisal». Em primeiro lugar, os jornalistas ainda não sabem distinguir islâmico de muçulmano. Em segundo lugar, é irrelevante, face à lei portuguesa, que o jogador «mude» de nome.
      Nos controlos alfandegários, o que conta é o documento de identidade em que surja o nome Abel Luís da Silva Costa Xavier. Se renunciar à nacionalidade portuguesa, e para isso tem de ter outra nacionalidade (art. 8.º da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro), não sei como será, mas, se acaso pudesse mudar de nome, e não pode, seria mais provável que a grafia do nome fosse Faiçal (e nenhum, Faisal, Faissal e Faiçal, consta da lista de nomes admitidos). É como o futebolista afirma: «Estamos a falar de uma situação a nível interior.»

[Post 3063]

Grafia dos prosónimos II

Leiam o que escrevem


      «Em 1831 o autor francês Alexis de Tocqueville escreveu um famosíssimo livro sobre a América: Da Democracia na América. De visita ao novo mundo, foi ele o primeiro a registar as pulsões particulares que comandavam os americanos» («A América e a Europa», Pedro Lomba, Público, 25.1.2010, p. 32).
      Pois é, mas o próprio Livro de Estilo do Público, na secção relativa ao uso de maiúsculas e minúsculas, no ponto 5, recomenda e bem que se empregue a maiúscula inicial nos «nomes geográficos: Alto Alentejo, Ásia Menor, Extremo Oriente, Brasil, Novo Mundo, Outra Banda, Pirenéus». Já não sabem as regras que se impuseram? Quanto ao cronista, não lhe ficava mal aprender.

[Post 3062]

Léxico: «novilíngua»

Meia aula


      «“Todos os anos, dedico meia aula no curso de ciências da comunicação ao livro [1984], sobretudo por causa da ‘novilíngua’”, conta [Miguel Morgado, professor na Universidade Católica, em Lisboa], ao i. “O impacto que tem nos estudantes é incrível”» («Orwell 60 anos depois. O Big Brother continua de olho em todos nós», Bruno Faria Lopes, i, 21.1.2010, p. 38).
      O termo novilíngua não precisa de estar entre aspas, apesar de não estar (nem, porventura, dever estar) dicionarizado e ser usado com grande frequência. Terá sido o primeiro tradutor da obra para português a optar, perante o vocábulo newspeak (que, na obra, era uma das formas de o Partido controlar e limitar o pensamento humano), forjado por George Orwell, pelo neologismo novilíngua.

[Post 3061]

«Melhor»: advérbio ou adjectivo?

E agora?


      Boa questão, cara Luísa Pinto: ainda recentemente li uma frase semelhante no Público: «O que nós deveríamos fazer era usá-los para tirar partido do efeito placebo. É que o efeito placebo existe. Os doentes sentem-se mesmo melhores. E é isso que interessa» («Operação dos teatros», Miguel Esteves Cardoso, Público, 30.12.2009, p. 31).
      Para o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, melhor, na acepção de menos doente, é um adjectivo uniforme (não admite contraste de género). Logo, a frase de Miguel Esteves Cardoso está correcta. Para o Dicionário Houaiss, porém, melhor, na acepção de mais bem; em condições físicas e/ou psicológicas mais saudáveis, é advérbio. Logo, a frase de Miguel Esteves Cardoso está incorrecta.

[Post 3060]

24.1.10

Adjectivos relacionais

Mas não


      Já tenho lido e ouvido que os adjectivos qualificam o nome. Ora, essa é uma afirmação incorrecta. Se há adjectivos que qualificam — «afirmações estúpidas» —, também há os que estabelecem com o nome uma relação muito diferente. E se há falantes que não sabem quando podem antepor um adjectivo qualificativo ao nome, também há os que julgam, e são jornalistas, poder usar adjectivos relacionais discricionariamente. Eis um exemplo lido no jornal i: «A agenda democrata complica-se, mas a reforma sanitária ainda respira», título de um artigo assinado por Enrique Pinto-Coelho (21.1.2010, p. 33).

[Post 3059]

Opções linguísticas

É esse o objectivo?


      «Como corolário, a verdade é que a Finlândia foi considerada pelo Worl [sic] Economic Forum, em 2003, 2004 e 2005, a economia mais competitiva do mundo» (Conjunturas & Tendências, Glória Rebelo. Lisboa: Edições Sílabo, 2009, p. 98).
      Porque havemos de escrever — mesmo que bem — World Economic Forum se podemos escrever, e toda a gente perceberá, Fórum Económico Mundial? Ou escrevemos para poucos entenderem? Outro mundo é possível.

[Post 3058]

Revisão

Vão mas é trabalhar


      «Aliás, o índice a longo prazo estabelecido pela consultora Ernst & Young para a generalidade dos países considerados confere grande importância, comparativa, ao investimento na energia eólica (85%) e, menos, ao investimento na energia solar (5%) e noutras energias renováveis (10%)» (Conjunturas & Tendências, Glória Rebelo. Lisboa: Edições Sílabo, 2009, p. 88).
      Os nomes das empresas, se estrangeiras, grafam-se em itálico, é isso? Parece-se que sim: «No mesmo mês em que um estudo do Deutsche Bank previa que o nível de vida espanhol alcance o alemão em 2008, o Governo de José Luís Zapatero assinava — na presença dos secretários-gerais das duas centrais sindicais, a CCOO e a UGT e dos residentes das confederações empregadoras CEOE e CEPYME — um histórico acordo laboral e anunciava a reforma do sistema público de Segurança Social» (idem, ibidem, p. 102). Umas páginas à frente, porém, a regra muda: «E, curiosamente, a semana passada a Bloomberg, citando o South China Morning Post anunciava que o Grupo Santander, o BBVA, a General Electric Capital, entre outros, manifestam interesse em participar no capital do banco chinês China Citic Bank» (idem, ibidem, p. 135). Mais exemplos: «Não obstante, ao longo de 2006 muitas empresas internacionais procuraram Portugal como destino de investimento: Ikea, Repsol, Abertis, Advansa, Netjet e os grupos turísticos Aman Resorts, Starwood e Hilton» (idem, ibidem, p. 170).
      Alguém podia alegar a génese, a origem da obra, para explicar estas incongruências, mas esse seria um argumento supinamente desonesto. A obra reúne cem artigos de opinião publicados pela autora no Jornal de Negócios e no Expresso. Para efeitos de publicação em livro, porém, devia ser, para a editora, como se tivesse saído da gaveta ou do disco rígido da autora. O trabalho de harmonização, de uniformização tem sempre de ser feito. E feito por quem sabe, não pelo sobrinho por ser sobrinho ou por curiosos porque estão desempregados.

[Post 3057]

Léxico: «monossémico»

Univocação


      Se os dicionários registam polissemia e polissémico, não deveriam registar monossémico, já que registam monossemia? Na verdade, o Dicionário Houaiss não regista (!) nem monossemia nem monossémico, o que não deixa de surpreender num dicionário como este. (Caro Paulo Araujo, por favor, trate do caso.)
      Há vocábulos monossémicos, isto é, que têm uma única significação, e a designação é usada em algumas gramáticas. No domínio da ciência e da técnica, por exemplo, há — e é uma garantia da necessária univocidade — muitos termos monossémicos.

[Post 3056]

Advérbios interrogativos

Isto está a mudar


      Até há pouco tempo, as gramáticas escolares evitavam incluir o porque entre os advérbios interrogativos. Pura cobardia e ignorância. Como os autores sabiam que a questão é controversa, nada diziam. Contudo, não deixavam de incluir o advérbio porquê. Agora algumas já tomam uma posição, como se vê aqui: «Os advérbios interrogativos podem remeter para uma ideia de tempo (quando?), de lugar (onde?, aonde?, donde?...), de modo (como?) ou de causa (porque?, porquê?)» (Gramática Prática de Português, M. Olga Azeredo, M. Isabel Freitas M. Pinto, M. Carmo Azeredo Lopes. Lisboa: Lisboa Editora, 2009, p. 258). As autoras tiveram como consultor científico o Prof. João Miguel Marques da Costa, do Departamento de Linguística da Universidade Nova de Lisboa.

[Post 3055]

23.1.10

Léxico: «séptico»

Cépticos amputados


      «Não, aqui houve um sismo. Mas foram muitos os que ficaram debaixo dos escombros por demasiado tempo, os que estiveram sem tratamento, os que foram tratados à pressa e voltaram sépticos. Ainda não acabou» («Não se amputava assim desde a Guerra da Crimeia», Sofia Lorena, Público, 23.1.2010, p. 16).
      Não é todos os dias que lê o adjectivo séptico (e ainda menos putrígeno...) Uma das acepções, a usada no texto, significa infectado por micróbios ou suas toxinas. De acordo com as novas regras ortográficas, não sofrerá alterações, pois o p é articulado. Já céptico passará a grafar-se cético.

[Post 3054]

Processos de composição

Depende


      Cara M. L.: no composto morfossintáctico, associam-se dois ou mais vocábulos, como, por exemplo, homem-bomba; no composto morfológico, o novo vocábulo é formado a partir da junção de dois radicais (normalmente de origem grega ou latina) ou de um radical e um vocábulo, por exemplo, telemóvel. Mesmo um termo como afro-americano é um composto morfológico. Nestes, apenas o elemento da direita sofre alterações de género e de número: afro-brasileiro/afro-brasileiros/afro-brasileira/afro-brasileira. Quanto aos compostos morfossintácticos, depende: o plural pode atingir ambos os vocábulos constituintes, só o da esquerda ou só o da direita.

[Post 3053]

«Rotinados», outra vez

Ainda entra nos dicionários...


      «Eu creio que há pessoas que nos desafiam, nos desconcertam sobretudo, por nos obrigarem a mudar radicalmente os nossos modelos rotinados de pensar e de agir, e creio que Maria de Lourdes Pintasilgo [1930–2004] foi claramente uma dessas pessoas e que marcou, por isso mesmo, acima de tudo por isso, a segunda metade do século XX em Portugal» (José Manuel Pureza, Conselho Superior, Antena 1, 21.1.2010).
       Já aqui me tinha referido ao adjectivo rotinado, tendo então afirmado que, em relação à oralidade, mais espontânea, livre, improvisada, temos de ser mais tolerantes, tanto mais que quase nada do que se diz passa à escrita. Neste caso, porém, são textos escritos para serem lidos, pelo que não há essa desculpa.

[Post 3052]

22.1.10

Ortografia: «peso meio-médio»

Mais leve


      «Campeão em título na categoria de pesos-meio-médios (sensivelmente entre os 63 e os 66 quilos), Andre Berto tinha marcado para 30 de Janeiro um confronto com Shane Mosley, o campeão da mesma categoria mas de outra organização de boxe, a WBA (World Boxing Association)» («Quando a família é mais valiosa que um combate para o título», Rui Silva, i, 21.1.2010, p. 56).
      Eh, lá, não são hífenes a mais? «Pesos-meio-médios»? Pretende-se traduzir o vocábulo inglês welterweight. Não é por isso, contudo, que precisamos de ligar os elementos. Escreva-se pesos meio-médios.

[Post 3051]

Regência do verbo «propor-se»

O i no divã


      «De D. Afonso VI a José [sic] César Monteiro, passando por Fernando Pessoa e Antero de Quental, Joana Amaral Dias propõem-se [sic] a sentar estas personalidades no divã e dar um nome aos seus comportamentos à luz da psicologia/psiquiatria actuais» («Joana Amaral Dias. Retratos da loucura dos portugueses famosos», Patrícia Silva Alves, i, 21.1.2010, p. 34).
      Francisco Fernandes, no Dicionário de Verbos e Regimes (São Paulo: Editora Globo, 36. ed.ª, 1989, p. 481), lembra que a «forma propor-se a fazer alguma coisa é condenada por muitos puristas, que mandam que se escreva propor-se fazer alguma coisa (infinito não preposicionado)».
      E o director do i, Martim Avillez Figueiredo, não esteve em 2009 no programa Páginas de Português a falar sobre os cuidados com o português no jornal que dirige?

[Post 3050]

«Coronel no resguardo»?

Eh, pá, dedica-te à pesca


      «Queria ser piloto aviador, como o meu pai que é coronel da força aérea no resguardo, e vivi no meio militar durante imenso tempo: quatro anos na base aérea nos Açores e na de Tancos», disse Moura dos Santos em entrevista ao jornal i («“Irrita-me o folclore à volta do ‘Ídolos’”», André Rito, 21.1.2010, p. 37).
      Coronel da força aérea no resguardo, não conhecia esta forma de dizer. A fonte, contudo, não é a melhor. Erros e gralhas da parte do jornalista e disparates da parte do entrevistado não faltam. Começa o jornalista: «Hoje, conhecemo-lo como o júri implacável do “Ídolos”.» O entrevistado, por sua vez, disse: «Posso não gostar e dizer “eh pá, dedica-te à pesca”. Admito que isso não seja o português mais coloquial.» Como amostra, chega.

[Post 3049]

«Pronto-a-comer» adjectivo

PC, na sigla portuguesa


      «Um avião de carga C-17 largou por pára-quedas 9600 garrafas de água e 42 mil refeições prontas-a-comer, (ou MRE, na sigla inglesa), noticiou a CNN» («Militares americanos lançam alimentos de pára-quedas», Francisca Gorjão Henriques, Público, 20.01.2010, p. 15).
      MRE, na sigla inglesa, de meals ready to eat. Os dicionários apenas registam pronto-a-comer (tal como pronto-a-vestir) como substantivo, não como adjectivo.

[Post 3048]

21.1.10

Ortografia: «microimplante»

Segundo que regras?


      «Esta é uma intervenção cirúrgica complicada, pois é trabalhada ao nível de micro-implante» («Recupera braço após operação», João Carlos Malta, Correio da Manhã, 21.1.2010, p. 19).
      No âmbito do Acordo Ortográfico de 1945, com os antepositivos macro- e micro- nunca se usa, como já tive oportunidade de aqui afirmar, hífen. E o Correio da Manhã ainda não adoptou a nova ortografia — só tem uma (!) coluna escrita de acordo com as novas regras. Ainda nesse caso, estaria incorrecto, pois, segundo a Base XVI, 1.º, b) do Acordo Ortográfico de 1990, apenas se usa hífen «nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento: anti-ibérico, contra-almirante, infra-axilar, supra-auricular; arqui-irmandade, auto-observação, eletro-ótica, micro-onda, semi-interno». Assim, inequivocamente, microimplante. Como microinformática, microindústria, microincisão...

[Post 3047]

Ortografia: «ultramoderno»

Ultravida para estudar


      «Lenine identificara bem este aspecto das coisas, distinguindo cinco níveis (ou estruturas) económicos e sociais, entre, num dos extremos, o camponês sem terra, que continuava a servir-se de uma enxada de madeira, e, no outro extremo, os poderosos grupos industriais e financeiros ultra-modernos, de Moscovo ou Leninegrado» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 326).
      O prefixo ultra- liga-se por hífen ao elemento seguinte quando este começa por vogal, h, r ou s. Logo, ultramoderno.

[Post 3046]

Ortografia: «interclassista»

Sempre a somar


      «Tudo isto condenou à impotência o regime czarista que dispunha de uma base de apoio muito estreita, bem como as elites que representavam as classes médias e as alianças inter-classistas, e também o sistema multipartidário apenas em embrião, que tinha origem no desenvolvimento em curso no país desde os começos do século XX» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 324).
      O elemento de formação de palavras inter- é seguido de hífen quando o elemento imediato tem vida própria e começa por h ou ainda por um r que não se ligue foneticamente ao r anterior. Logo, interclassista. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, por exemplo, regista o adjectivo interclubista. De nada vale, porém, com tradutores e revisores que não consultam dicionários.

[Post 3045]

Uso do hífen com o prefixo contra- II

Contra factos


      «Trata-se de um cenário evidentemente contra-factual, e tudo o que podemos afirmar com segurança é que as guerras, não sendo embora as únicas causas determinantes, aceleram a derrocada dos regimes que não se mostram capazes de as vencer» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 323).
      Com o prefixo e elemento de formação contra-, já aqui o escrevi uma vez, só devemos usar hífen se a palavra seguinte começar por h, r, s ou vogal: contra-haste, contra-reacção, contra-senha, contra-almirante, contra-espião, contra-indicação, contra-ordem... E assim: contrabaixo, contraceptivo, contracheque, contradança, contradizer, contrafactual, contragolpe, contramão, contrapartida, contrapeso, contraponto, contrapropaganda, contraproposta, contraprova, contraveneno…

[Post 3044]

Tuitar/twittar

Assim não erram


      É uma moda, decerto, porque ligada à tecnologia, mas entretanto talvez fosse conveniente escrever sempre da mesma forma: «A segunda questão é: como funciona? António Eduardo Marques, autor do livro “Internet”, responde telegraficamente, como se estivesse a ‘twittar’: “Pense no e-mail. Imagine mensagens que só podem ter 140 caracteres. Imagine que as envia, toda a gente as lê. O Twitter é assim.” […] Para Glória Martins, 41 anos, a pessoa que mais ‘twita’ e mais seguidores tem em Portugal, este site representa uma “ferramenta prática” para a “escrita de improviso”» («Mais popular do que Obama», Carlos Abreu e Hugo Franco, Expresso, 24.12.2009, p. 17). Bem faz Ferreira Fernandes, que desde o primeiro momento aportuguesou o verbo: «Alguma importância deve ter, a prova é que a mãe de um miúdo com dois anos, numa casa com piscina está a tuitar 74 vezes sobre o assunto, capoeiras» («Mãe no Twitter: “O meu bebé afoga-se”», Ferreira Fernandes, Diário de Notícias, 20.12.2009, p. 9).

[Post 3043]

Actualização no mesmo dia

      «É pena não traduzirem...», lamenta «um leitor assíduo sem conta Google», Nuno Salgado, que acrescenta: «Twitter vem de tweet (daí o pássaro no logótipo) e, em português, tuitar seria piar. O que remetia para umas associações curiosas como “perder o pio”, “ficar sem pio”, “nem piaste!”, etc.»

Léxico: «castanholas»

Porque fazem barulho?


      «A embarcação e o colete que tinha, bem como um remo do barco e castanholas (que servem para assinalar a mudança de direcção) foram encontradas por um pescador a três quilómetros do local do acidente» («Cai ao rio Paiva a fazer rafting», Ana Isabel Fonseca, Correio da Manhã, 17.1.2010, p. 15).
      Não encontrei esta acepção registada nem, observada a imagem das castanholas no Correio da Manhã, a etimologia permite explicar a designação. Talvez algum leitor possa esclarecer-nos.

[Post 3042]

20.1.10

Revisores dos jornais

Ora tomem


      O provedor do The Washington Post, Andrew Alexander, lamentou que o número de erros ortográficos tenha aumentado no jornal. Já no Verão tinha escrito sobre o mesmo assunto, atribuindo então o problema ao facto de o jornal ter dispensado 30 dos 75 revisores que tinha. Agora, os revisores que ficaram têm trabalho a mais. E chovem as cartas dos leitores que protestam. O que esperavam? Também entre nós há editoras que dispensam os revisores, mas o produto final, indigno de ostentar o nome de livro, vale menos que uma bosta de búfalo na Índia.


[Post 3041]

Ortografia: «semilegal»

E outra


      «Apesar de oficialmente reprovadas, essas actividades semi-legais tornaram-se rapidamente indispensáveis, porque desempenhavam um papel vital junto das empresas que abasteciam» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 404).
      Talvez o tradutor não tenha de saber (mas, nesta obra, figura na ficha técnica como revisor...), mas o revisor tem. O prefixo semi- liga-se por hífen ao elemento seguinte, quando este começa por h, i, r ou s. Logo, semilegal. Como semilíquido, semilouco, semilúnio...


[Post 3040]

Ortografia: «antidesperdício»

Mais uma


      «Uma outra fonte importante sobre o universo burocrático é a que devemos ao Comité de Controlo de Estado, que elaboraria, em 1966, uma panorâmica daquele, transmitindo-a a título de contributo à Comissão Anti-desperdício, dirigida por Bajbakov» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 389).
      Se eu já acho lamentável que se use o hífen mesmo quando, oficialmente, a designação o tem (vide Rede Europeia *Anti-pobreza), quanto mais nestes casos. O elemento anti- aglutina-se sempre com o elemento seguinte, excepto quando este tem vida própria e começa por h, i, r ou s. Logo, antidesperdício, antidáctilo, antidemocracia, antidemocrata, antidemocrático...

[Post 3039]

Ortografia: «supraterreno»

Está nos dicionários


      «Quanto ao domínio exercido pelos czares sobre a igreja [sic], associava-se intimamente à utilização pelo regime dos símbolos dessa mesma igreja [sic], servindo-se os czares da sua legitimidade supra-terrena em seu benefício próprio» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 50).
      Errado. Este elemento de formação de palavras apenas se liga por hífen ao elemento seguinte quando este começa por vogal, h, r ou s. Logo, supraterrena. Como supraterrâneo, supratorácico, supratranscrito...

[Post 3038]

Acento diferencial

Um acordo à nossa medida


      «— Uma baixela é o conjunto de pratos, chávenas, copos... — responde. — E pára de pensar sobre essas coisas. Só de pensar em pratos, dá-me uma fome» (Um Ajudante de Muita Ajuda, Antonio Iturbe. Colecção «Casos do Inspetor Zito e Chin Me Do». Cascais: Vogais & Companhia, 2009).
      O excerto desta obra estaria absolutamente correcto — se não estivesse o seguinte aviso no início: «Texto segundo o Acordo Ortográfico de 1990.» «Prescinde-se», lê-se no art. 9 da Base IX (Da acentuação gráfica das palavras paroxítonas), «quer do acento agudo, quer do circunflexo, para distinguir palavras paroxítonas que, tendo respetivamente vogal tónica/tônica aberta ou fechada, são homógrafas de palavras proclíticas.» Preposição e forma verbal deixam de se poder distinguir pelo acento.
      O erro pode dever-se a uma de duas razões: ou na editora desconhecem as regras do Acordo Ortográfico de 1990 ou, como decerto irá acontecer com outros, não «gostam» da regra. Não concordam. Não acatam.

[Post 3037]

Sobre «Occitânia»

Bons dicionários


      «Nele se narram (em três discos acompanhados de preciosos textos, numa edição de luxo) o aparecimento do catarismo em várias zonas da Europa Central, a cruzada e a invasão da Ocitânia (o actual Sul de França, grosso modo), a perseguição do catarismo e o seu estertor final.»
      Este é um excerto de um texto que acabei de rever. É a segunda vez em menos de quinze dias que vejo o topónimo incorrectamente escrito. Só para prevenir: nem no âmbito do Acordo Ortográfico de 1990 se escreve daquela forma. Continuará a ser Occitânia. A propósito: o «consagrado Dicionário da Academia de Ciências» não regista occitânico nem occitano. Tão-pouco occitanofalante, occitanofonia, occitanófono ou occitanoparlante — como o Dicionário Houaiss faz.

[Post 3036]

19.1.10

Numeração romana

Nem pensar


      «O XII.º Congresso, que teve lugar em Março de 1923, pode ser considerado como o último em que o Partido pôde usar ainda com legitimidade o seu nome revolucionário — do mesmo modo que podemos datar do ano de 1924 a morte do “bolchevismo”» (O Século Soviético, Moshe Lewin. Tradução de Miguel Serras Pereira e revisão de Miguel Serras Pereira e Sara Figueiredo. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004, p. 339).
      Nesta obra repete-se este erro, que já tenho visto noutras obras. Os algarismos romanos tanto podem ser usados e lidos como ordinais como cardinais — e, no primeiro caso, nunca precisam de uma letra, a ou o, sobrescrita ou em índice.

[Post 3035]

Revisão

Até ao fim


      «Uma das primeiras foi a intervenção (algo aventurosa dada a proibição da sua entrada em França) no Congresso de Tours do Partido Socialista Francês (SFIO), em Dezembro de 1920, que por grande maioria decidiu a aceitação das “21 condições de admissão” na IC e a sua consequente transformação no Partido Comunista Francês» (Vozes Insubmissas. A História das Mulheres e dos Homens Que Lutaram pela Igualdade dos Sexos Quando Era Crime Fazê-lo, Isabel do Carmo e Lígia Amâncio. Revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2.ª ed., 2004, p. 179). «Adquire nestes anos um conhecimento aprofundado da teoria económica do marxismo e inicia uma colaboração regular na revista teórica do Partido Social-Democrata alemão, Die Neue Zeit» (idem, ibidem, p. 185). «A intervenção no debate do ministerialismo foi ocasião de uma controvérsia com Jean Jaurès, que virá a ser o líder do Partido Socialista francês a partir da unificação deste, em 1905» (idem, ibidem, p. 188). «A primeira questão nasce em relação à greve geral desenvolvida em 1902 pelos trabalhadores belgas para a conquista do sufrágio universal, durante a qual o Partido Operário Belga estabelece um acordo parcial com o partido liberal, acordo que exclui as mulheres do direito de voto» (idem, ibidem, p. 189).
      Dúvidas, escusado seria dizê-lo, todos temos. Um revisor, porém, tem de tomar decisões e ser coerente até ao fim.

[Post 3034]

18.1.10

Sobre «arruada»

Erros no De Rerum Natura


      Escreve Rui Baptista no blogue De Rerum Natura: «No [sic] última edição do semanário Expresso (16/01/2010) foi noticiado, em escassas linhas, que o PCP, “ao fim de anos de luta, colocou a palavra ‘arruada’ no Dicionário da Academia”. E porque o povo também faz a língua, na essência, refere-se este suelto a Jerónimo de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português, por ele, em hora de inspiração, logo aproveitada pelos meios de comunicação social, ter sido o padrinho do neologismo arruada na pia baptismal do consagrado Dicionário da Academia de Ciências para significar os passeios de rua dos partidos políticos levados a efeito, por exemplo, na última campanha eleitoral pelas ruas do vetusto Chiado, qual Fénix renascida das cinzas.»
      Se não soubesse que os verbetes estão ordenados alfabeticamente nos dicionários, teria andado perdido durante muito tempo no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa. A verdade é que neste dicionário passamos do verbete «arruaceiro» para o verbete «arruamento». O que está é registado o verbo arruar, mas em dicionários de há duzentos anos também estava. É o caso do Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. E quem consagrou o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea? Como se pode escrever sobre o que seja e não consultar as fontes citadas? Sendo o autor professor, mais obrigação tem de vir corrigir a afirmação.

[Post 3033]

Actualização em 21.1.2010

      Em relação à edição do Expresso do dia 16 de Janeiro não sei, mas na edição anterior encontrei um texto, de que transcrevo o seguinte trecho, que interessa ao debate: «E há ainda uma curiosidade política: a reentrada em cena de arruada, uma palavra que chegou a existir em dicionários antigos para designar digressões festivas pelas ruas e que, depois de anos a ser usada apenas pelos partidos mais à esquerda (PCP e Bloco de Esquerda) caiu no goto da gíria mediática nas três campanhas eleitorais de 2009, qualquer que fosse a cor das bandeiras ao longo das praças e avenidas» («As 13 novas palavras da língua portuguesa», Micael Pereira, Expresso, 9.1.2010, p. 26).
      Que dicionários antigos, caro Micael Pereira? Pode citar pelo menos um?


Adjectivos truncados

Duplas nacionalidades


      Uma consulente do Ciberdúvidas, Ana Oliveira, perguntou: «Gostaria de saber qual a forma correcta de referir duplas nacionalidades em português. Atendendo a casos como luso-brasileiro, franco-canadiano, ítalo-americano, afro-americano, parece-me existir um padrão, mas será sempre essa a regra?» A consultora Edite Prada respondeu: «Sim, a regra é sempre recorrer à forma truncada, ou seja, obtida retirando a parte final do adjectivo que se pretender colocar em primeiro lugar. No caso de haver dúvidas quanto à forma que a palavra assume, existe nos dicionários mais recentes, como entrada, a grande maioria desses elementos.»
      Está mal explicado, para não dizer errado. Desde quando é que a forma truncada se obtém «retirando a parte final do adjectivo que se pretender colocar em primeiro lugar»? São formas adjectivas mais curtas, truncadas, ou seja, incompletas. E são formas fixas, eruditas, não se obtêm desta ou daquela maneira.

[Post 3032]

Caraté, caratê, carate, karaté

Diversidade


      «O caraté é uma arte marcial e requer que o corpo produza o máximo poder de ataque com o mínimo de lesões» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 106).
      É relativamente raro encontrar o vocábulo com esta grafia, o que talvez não seja de surpreender, pois o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, por exemplo, no verbete caraté remete para karaté. No Brasil, contudo, a grafia é caratê. O Dicionário Houaiss também regista o termo caraté, mas para designar uma afecção cutânea de carácter crónico. E ainda temos o termo carate, aportuguesamento de carat, que, a avaliar pela sua ausência do Dicionário Eletrônico Houaiss, não é usado no Brasil.
      No âmbito do Acordo Ortográfico de 1990, continua a ser preferível, as regras sobre o seu uso ainda são restritivas, grafar o vocábulo com c, pois o grafema tem o mesmo valor fónico de k.

[Post 3031]

17.1.10

«Docosahexaenóico»?

Princípios gerais


      «O cérebro é bastante rico em ácido docosahexaenóico (DHA), um ácido gordo que o corpo é capaz de produzir, mas não com muita eficácia» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 147).
      A pergunta, muito simples, é: não têm estes compostos de obedecer à regra de que o h é eliminado do segundo elemento? Afinal, é anarmónico, biebdomadário, coonestar, exausto, inabilitar, lobisomem, reaver, etc., que escrevemos. Logo, só podemos ter docosaexaenóico. Lá por em inglês ser docosahexaenoic, não quer dizer que copiemos. Não é justamente a adopção da fonética e da ortografia portuguesas um dos princípios gerais utilizados na adaptação das denominações comuns internacionais (DCI) para a nossa língua?
      O elemento docosa- vem do grego e significa 22, como no vocábulo «docosaedro», que designa o poliedro que tem 22 faces.

[Post 3030]

Compostos com «quase-» III

Às vezes vai apagada


      A propósito de um texto sobre os compostos com quase-, o bem informado leitor Franco e Silva deixou o seguinte comentário: «Pois é. Mas segundo a cartilha da Academia Brasileira de Letras (e candeia que vai à frente...) pela 5.ª edição do seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (regido pelo novo Acordo Ortográfico (1990)) será sempre quase e não sem hífen: quase livre, quase certo, quase ética, não alinhado, não caso, etc.»
      Agora li o que, sobre a mesma questão, escreveu Josué Machado, jornalista brasileiro: «Outra curiosidade é a da Nota explicativa do Volp, página LIII. O Acordo excluiu o hífen quando as palavras “não” e “quase” agem como prefixos. Agora é “não agressão”, “não fumante”, “quase delito”, “quase irmão”. Estranho, no entanto, é o penúltimo parágrafo da Nota:
      “Está claro que, para atender a especiais situações de expressividade estilística com a utilização de recursos ortográficos, se pode recorrer ao emprego do hífen nestes e em todos os outros casos que o uso permitir. É recurso a que se socorrem muitas línguas. Deste “não” hifenado se serviram no alemão Ficthe e Hegel para exercer importante função significativa nas respectivas terminologias filosóficas; nicht-sein e nicht-ich, de que outros idiomas europeus se apropriaram como calços linguísticos. Não é, portanto, recursos para ser banalizado.”
      Aí, o professor Bechara foi longe. Quem escrever algo que ache importante, e quiser hífen em formações com “não” e “quase” para realçá-las, poderá fazê-lo.
      Distrações, curiosidades, oscilações... Bem que Bechara previu que, apesar do esforço, os editores do Volp sofreriam críticas de quem procura erros alheios, hábito muito ruim: “Temos de fazer o melhor possível, mas de qualquer jeito vamos apanhar muito”. Nem tanto» («A Academia se atrapalhou», Revista Língua Portuguesa, aqui).

[Post 3029]

«Leges artis» II

Indóceis criaturas


      Um leitor, R. A., mandou-me a transcrição de uma notícia publicada no Jornal de Notícias: «O juiz salientou, ontem, durante a leitura da sentença que o tribunal lamenta “não pode condenar, mas teria condenado”, uma vez que se provou que as médicas violaram as leis da profissão (leje artis), porque não chegaram à representação da possibilidade de uma gravidez através da leitura da imagem da ecografia, nem verificaram a falsidade da leitura, nem a mandaram repetir, aliás, um exame que, segundo o tribunal apurou, “desapareceu do hospital inexplicavelmente”» («Obstetras absolvidas pese a negligência», Glória Lopes, Jornal de Notícias, 16.01.2010, p. 27). Acrescenta o leitor: «É caso para dizer que, se o JN transcreve bem o que está na sentença, o tribunal, além de fraco em latim, parece fraco noutras coisas...»
      Bem, a verdade é que a locução latina não surge em nenhum dos trechos identificados como citações. Atribuo, pois, o erro à ignorância da jornalista. Com o português não se entendem muitos deles, quanto mais com o latim.

[Post 3028]

16.1.10

Acordo Ortográfico

Por cima da lei


      Eu também deposito grande esperança no futuro vocabulário ortográfico comum. Tenho é sérias dúvidas que a comissão que o venha a elaborar possa alterar, sem um mandato específico, o que foi consignado no texto do Acordo Ortográfico de 1990. Da nota que se segue de D´Silvas Filho, deduzo que este consultor do Ciberdúvidas pensa o contrário: «Nota: em trocas de impressões com a ilustre consultora de Ciberdúvidas Prof. Dra. Edite Prada sobre este assunto, foi-me sugerido que as inovações contra o texto do Acordo poderiam aparecer como variantes às soluções recomendadas no Acordo de 1990 (ex. meu: cor-de-rosa/cor de rosa). Considero esta ideia uma boa solução, como preparativo para eventuais alterações do Acordo na altura de elaboração do Vocabulário Comum.»
      No limite, dependendo de quem integre a comissão, poderíamos vir a ter um antiacordo. Nesse caso, creio que a língua portuguesa e todos os seus falantes ficavam mais bem servidos se houvesse um novo acordo, mais bem estudado, mais consensual, mais abrangente, menos lacunar.

[Post 3027]

«Por cento», locução

Até isto?


      «Se pensar que uma camisola pesa 250g e que obtemos 5kg de lã, em média, de cada ovelha (onde apenas serão utilizáveis 65 porcento, já que o resto estará demasiado sujo), então obter-se-ão catorze camisolas de lã de uma única ovelha» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 153)
      Trata-se de uma locução; logo, por cento. E a propósito de trata-se de, eis mais um erro crasso nesta tradução: «Infelizmente tratam-se de pedaços que o escopro vai perdendo e o que você vê é um fragmento de metal fundido a voar pelo ar» (p. 157).
      Por outro lado, só alguém com pouca sensibilidade para a língua usa o pronome pessoal você neste contexto. Para quê? Eis três alternativas melhores: «Infelizmente trata-se de pedaços que o escopro vai perdendo e o que se vê é um fragmento de metal fundido a voar pelo ar.» «Infelizmente trata-se de pedaços que o escopro vai perdendo e o que o leitor vê é um fragmento de metal fundido a voar pelo ar.» «Infelizmente trata-se de pedaços que o escopro vai perdendo e o que vemos é um fragmento de metal fundido a voar pelo ar.»

[Post 3026]

15.1.10

Prefixo «super-»

Frio, frio...


      «O que queriam dizer é que o vidro é conhecido como um líquido super arrefecido» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 88). «Ao colocar a sua colher dentro da chávena e mexer, as camadas frias podem ser levadas até ao ponto de ebulição, ou mesmo acima, devido ao súbito contacto com as camadas superaquecidas» (idem, p. 142).
      Para a tradutora e a revisora, a regra parece ser altamente subjectiva, mas provavelmente relacionada com a temperatura... Erradíssimo: o prefixo super- só tem hífen a ligá-lo ao elemento seguinte se este começar por h ou r. Logo, superaquecido e superarrefecido.

[Post 3025]

Beta-carbono/betacarbono

Novamente


      «Esta mostrou que o nitreto de beta-carbono (beta-C3N4) estaria a um nível acima dos restantes» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 160).
      A propósito da grafia beta-aminóide, escrevia aqui o leitor Franco e Silva: «Quanto a alfa-, beta-, gama-, delta-, etc., consideramos a situação diferente: a palavra não representa exactamente um prefixo, mas a transcrição de uma letra grega, justificada pela dificuldade tipográfica de a escrever (e substituindo-a, pois, pelo seu nome, alternativamente). Isto é, pode equivalentemente escrever-se α, β, γ, etc., seguida de hífen e posteriormente qualquer outra palavra (comece por que letra comece, vogal ou consoante) desde que isso seja tipograficamente possível.
      Teríamos, assim, alfa-aminoácido, alfa-lactona, beta-aminóide, beta-caroteno, etc. (ou, alternativamente, β-aminoácido, β-lactona, β-aminóide, β-caroteno, etc. Embora este caso não seja focado no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, nem no seu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, é-o assim considerado no Aulete Digital.»
      Não é exactamente um prefixo — mas funciona como tal. Veja-se o que regista o Dicionário Houaiss a propósito de alfa-: «[alfa- como prefixo] é a letra inicial do alfabeto grego, como equivalente, numa ordinalidade, a 'primeiro'; quando se faz uso da letra propriamente dita, é ela seguida de hífen; quando, porém, sem rigor terminológico ou por frequência de uso corrente, se usa da palavra com seu significante escrito por extenso, este se aglutina ao elemento verbal seguinte, inclusive com ocorrências de crase ou sinalefa: alfaaglutinação/alfaglutinação;alfa-hemoglobina/alfa-emoglobina/alfemoglobina».
      É por razões gráficas, tão-somente, que se usa hífen se usarmos as letras gregas. Quando se usa a palavra por extenso, aglutinam-se os elementos. É o que eu faço e recomendo, com uma excepção: se o último carácter do primeiro elemento for o mesmo do primeiro carácter do segundo elemento, uso hífen. Neste caso, escreveria betacarbono. É esta também a opção do VOLP da Academia Brasileira de Letras.


[Post 3024]

Repetições

Deselegância


      «O relatório do falecimento do “rei da música pop” conclui assim que a morte de Jackson se deveu a uma “injecção intravenosa” que causou uma “intoxicação por Propofol”, a substância que provocou o ataque cardíaco que Jackson sofreu no dia 25 de Junho, sendo que foi Conrad Murray que deu ao cantor o anestésico referido» («Médico de Jackson vai ser acusado», DN/Global Notícias, 12.1.2010, p. 9).
      «Relatório do falecimento»? Bem, esqueçamos isto. O revisor antibrasileiro, lembram-se?, tinha uma sensibilidade especial para as repetições. Se lesse «sendo que foi Conrad Murray», ficava apopléctico. Pode muito bem ser idiomático, mas também é deselegante e aparvalhado. Sendo que foi, ele que é...

[Post 3023]

Léxico: «sensila»

Do latim científico

      «Os insectos têm um grande número de órgãos olfactivos formados por sensilas, que são pequenos cabelos modificados para sentirem o toque, odor, paladar, calor ou frio. Cada sensila é composta por apenas uma célula sensorial e uma fibra nervosa» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 78).
      É verdade que o Dicionário Houaiss não regista (caro Paulo Araujo...) o vocábulo, mas o modestíssimo Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora neste caso portou-se muito bem. Regista-o («órgão dos sentidos de constituição rudimentar, em especial, dos insectos») e ficamos a saber que vem do latim científico (há muitos latins...) sensilla. Não devia estar grafado em itálico.

[Post 3022]

Árctico/Ártico

Já não precisam de emendar


      Não escrevi eu já aqui que é muito raro encontrar correctamente grafados os topónimos Árctico e Antárctico? Nada mudou. Mais um exemplo: «Curiosamente, as pessoas que vivem nas regiões do Ártico, habitat dos ursos polares, dir-lhe-ão que isto é verdade, mas não existem provas» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 58).
      O Acordo Ortográfico de 1990 veio salvar esta gente, pois passará a escrever-se sem a consoante muda: Ártico. Mas o acordo não os irá salvar de todos os disparates.

[Post 3021]

Numeração

Em que ficamos?


      «Oito minutos após o início da ruptura da crosta terrestre no Haiti começaram a chegar ao outro lado do Atlântico os primeiros sinais de um sismo naquela ilha das Caraíbas, com as estações sísmicas dos Açores a registarem um evento de magnitude sete na escala de Richter. […] Essa equipa, de que fazia parte Paul Mann, do Instituto de Geofísica da Universidade do Texas, dizia que aquele sistema de falhas tinha potencialidade para originar um sismo de magnitude 7,2 na escala de Richter» («Sismo pouco profundo explica destruição localizada», Teresa Firmino, Público, 14.1.2010, p. 6).
      No mesmo texto, a magnitude expressa em numeração arábica e por extenso? Jornalista, editor e revisor, todos distraídos...


[Post 3020]

Biliões/milhares de milhões

Isso é muito


      «A teoria do Big Bang sobre a criação do universo ocupa muitos volumes e algumas mentes mais avançadas, mas, em resumo, diz que o universo começou com toda a sua matéria, concentrada a uma densidade e temperatura muito elevadas, há cerca de quinze biliões de anos» (Quantas Ovelhas São Precisas para Fazer Uma Camisola?, Paul Heiney. Tradução de Alexandra Cardoso e revisão de Benedita Rolo. Lisboa: Academia do Livro, 2009, p. 15).
      A sério? O Prof. Carlos Fiolhais, e tem por companhia dezenas e dezenas de académicos em todo o mundo, dizem que foi há menos tempo: «Hoje sabemos que o Universo está em expansão e em arrefecimento, desde o seu início há cerca de 15 mil milhões de anos» («O Big Bang: em casa e via satélite», in De Rerum Natura, 21.06.2007, aqui).

[Post 3019]

14.1.10

«Mata-processos»


Mata-mata


      «Berlusconi esteve um mês ausente da política, mas mal regressou, levou aos deputados os seus projectos de lei para reformar a justiça. A primeira norma, baptizada pelos juízes como “lei mata-processos”, visa encurtar os prazos que as várias instâncias têm para tratar de cada processo. Se o prazo se esgotar, o julgamento morre» («Berlusconi propõe mais leis para contornar a justiça», Sofia Lorena, Público, 14.1.2010, p. 17).
      O Corriere de la Sera, por exemplo, titulava: «Pronto il decreto blocca-processi». Não é que bloccare seja matar, mas é uma boa tradução. Num certo jornal, nestas ocasiões, alguns revisores ficavam logo aflitos, não sabendo se deviam grafar com hífen se não...

[Post 3018]

Léxico: «piadético»

Tem piada


      «Aos primeiros telefonemas duns assessores governamentais mais ou menos exaltados ou piadéticos para comentadores e jornalistas, estranhou-se. Depois entranhou-se. Paulatinamente deixaram de discutir-se» («Primeiro estranha-se. Depois entranha-se», Helena Matos, Público, 14.1.2010, p. 37).
      Os Brasileiros, caro Paulo Araujo, desconhecem este vocábulo, que ostenta assim uns ares de conceito científico mas apenas significa o que tem piada; o que diz muitas piadas (e, nesta acepção, sinónimo de piadista, conhecido e usado no Brasil). São insondáveis os motivos que levam os dicionaristas a incluir uns vocábulos e a excluir outros.

[Post 3017]

Léxico: «egodistónico»

No médico


      De vez em quando, gosto de ler as Cartas à Directora do Público. Uma publicada hoje («Prioridades», p. 38), da autoria de António Carvalho, trouxe-me uma novidade lexical: «E depois, bem... e depois de tudo isto e porque é necessário continuar a cavalgar a onda do progresso e da modernidade, não admira que mais cedo ou mais tarde se comece a encharcar a praça pública com a incontornável discussão sobre os casamentos polígamos e a sua consequente legalização ou com a implementação de uma disciplina sobre orientação egodistónica logo a partir dos bancos do segundo ciclo do ensino básico... isto, porque é de pequenino que, mesmo não tendo dúvidas sobre a sua orientação sexual, os “putos” a poderão alterar por causa das consequências que a ela venham a estar associadas (sic)! Enfim: é Portugal no seu melhor!»
      Alguns dicionários médicos registam o termo, que vem do inglês egodystonic (ou ego-dystonic) e não significa mais que o que é incompatível ou inaceitável para o ego. No âmbito da psiquiatria, serve para descrever os elementos do comportamento, pensamentos, impulsos, mecanismos mentais e atitudes de uma pessoa que não são a norma do eu ou que são incongruentes com a personalidade global. Neste contexto, é comum ser relacionado com a homossexualidade. O antónimo de egodistónico é egossintónico.

[Post 3016]

Léxico: «campanilismo»

O sino da minha aldeia


      «Na verdade, os italianos são muitas vezes descritos como uma sociedade em “pequena escala”. Cada italiano faz questão de habitar mentalmente num tempo e espaço restrito. Há nisso toda uma atitude que alguns definem como campanilismo: quando a identidade cultural, social e política de cada um reside não na nação ou no Estado, mas na mesma igreja e no mesmo quarteirão por onde já transitaram gerações de famílias inteiras» («Os estrangeiros», Pedro Lomba, Público, 14.1.2010, p. 40).
      Os anglo-saxónicos queixam-se de que a palavra campanilismo não tem tradução para inglês, e não conseguem disfarçar. Nós, porém, podemos usá-la como se fosse português. Uma grande vantagem. Desta vez, o cronista esteve à altura da situação: usou a palavra como se fosse português (mas isso é hábito do Público) mas explicou-a. Os dicionários portugueses não registam a palavra, mas quase: falta-lhes o –ismo. Temos o termo campanil, que designa duas coisas: a liga de metais para sinos e o lugar alto para sinos. E é a sinos também — não é em vão que são ambas línguas novilatinas — que se refere a palavra italiana.
      Ainda assim, transcrevo uma explicação que encontrei na revista Penélope («Verflechtung» — Um Método para a Pesquisa, Exposição e Análise de Grupos Dominantes», Pedro de Brito, in Penélope, Fazer e Desfazer História, n.º 9/10, 1993, p. 237). «A comum origem geográfica, ao contrário das outras três categorias, é ignorada pelas ciências sociais. De facto não se trata de um tipo de relação mas, especialmente na Alta Idade Moderna, era causa a que se podia atribuir uma relação e também a base de recrutamento de grupos dominantes. Em instituições nas quais a transmissão hereditária de cargos se não verifica, como por exemplo a Igreja Católica, a comum origem geográfica desempenhava um papel importante. Os italianos inventaram para isso um vocábulo da mesma família de “nepotismo”: “campanilismo”»

[Post 3015]