31.3.06

Pronúncia: «para»


Quosque tandem abutere, Petre, patientia nostra?



      Já começa a irritar-me o facto de Pedro Bicudo, o correspondente da RTP em Washington (o posto mais importante das representações estrangeiras da RTP), dizer sempre «pera» em vez de «para». Claro que tem, longe de mim a ingratidão, as suas vantagens: nas aulas, é mais fácil pôr as criancinhas a ler Gil Vicente, por exemplo:

Pera que é envelhecer
esperando polo vento?
Quant’eu por mui necia sento
a que o contrário fizer.


      Conheço alguns açorianos, e tanto quanto posso avaliar, eles não falam assim. Se fosse o Evgueni Mouravitch ou a Katarzyna Potoczec (a miúda do gás), por exemplo, era desculpável, pois são estrangeiros. Um português, jornalista, que fala para milhões de portugueses, não pode falar assim. Só a nefanda moda do politicamente correcto é que impede a maioria de expressar esta opinião, mas a mim só me fica bem cortar a direito.

Pera, prep. (do lat. per ad). Ant. O m. q. para.║ Obs. Esta palavra, ao contrário do que pode parecer, não se pronuncia pêra, mas p’ra.
In Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coord. José Pedro Machado

30.3.06

Topónimos: Toscana


Imagem: http://www.florence.ala.it


É tudo em Itália

«Ainda num registo musical, surge Sting. “Foi o convidado do HermanSic que mais me marcou”, diz e explica que passaram o fatídico 11 de Setembro juntos, na casa da Toscânia do cantor» («Vai ser difícil contentá-lo», 24 Horas, 16.3.2006, p. 51). Tem a certeza do que escreve, Vânia Custódio? A Toscânia é uma cidadezinha etrusca, que no século XIV se chamou Toscanella. A região onde Sting tem uma casa chama-se Toscana — em italiano e em português. A Toscana, na Itália Central, é uma das maiores regiões italianas, tendo como capital Florença. Sobretudo nas traduções de obras de língua inglesa, é um erro muito comum. Claro, está logo a ver-se: Tuscany → Toscânia.
Ora veja:

«Infatti in varie pergamene dei secoli VIII e IX, appartenute alla badia Amiatina, è rammentato Viterbo niente più che un semplice castello compreso nel contado e nell’ecclesiastica giurisdizione della città di Tuscania, o Toscanella. –(ARCH. DIPL. FIOR. loc.cit.).» (In Dizionario Geografico Fisico Storico della Toscana, compilado por Emanuele Repetti, de 1839, que pode descarregar aqui.)

Só por curiosidade, a Toscana também tem uma área insular, no mar Tirreno, da qual fazem parte as seguintes ilhas: Capraia, Elba (a maior), Giannutri, Giglio, Gorgona (a mais pequena), Monte Cristo e Pianosa.

Ortografia: cãibra

Azar

O jornalista tinha diversas variantes à disposição, mas resolveu logo inventar uma quarta: «cãimbra» (jornal 24 Horas, 24.2.2006, p. 12). Por pouco e acertava: o dicionário Aurélio regista «câimbra» como variante. Como formas antigas, temos ainda «cambra» e «quembra»; de uso popular temos «câmara» e «câmbria», esta última provavelmente a mais difundida.

Léxico: gêiser/gêiseres

Pérolas a proboscídeos…

«Encelado faz parte da curta lista de corpos com vulcanismo activo: além da Terra, os outros são Io, uma lua de Júpiter, e Tritão, uma lua de Neptuno com geisers.» O texto é de Teresa Firmino no Público de 10.3.2006, p. 28. Porquê «geisers»? Se conseguir encontrar algum dicionário de língua portuguesa, publicado recentemente, que não registe «géiser» ou «gêiser», avise-me.

Léxico: caixoto

Povo que lavas no rio

À luz vespertina coada pelo vitral, pude vislumbrar algumas pessoas a orar na Igreja de Nossa Senhora do Amparo. A atitude de genuflectir, contudo, transportou-me para outras memórias. Naquela ribeira, as mulheres do povo lavavam a roupa antes de o lavadouro municipal, um edifício a lembrar a arquitectura das escolas do Plano do Centenário, ter sido construído na vila, no final dos anos 40. Também ali as mulheres se ajoelhavam, mas para lavar a roupa da família ou de alguma patroa rica. E onde se ajoelhavam elas? Pois num pedaço de cortiça ou numa joelheira, também por vezes chamada caixoto. Este não passava de um caixote a que se retirava uma das tábuas do comprimento, forrando-o por dentro com uma esponja ou uma almofada.

29.3.06

Topónimos: Antuérpia

Venham de lá os xeques do Dubai!

      Num mapa-múndi — «infografia Impala», atenção! — publicado na revista Focus (n.º 335, 15 a 21 de Março de 2006, pp. 108-109), a ilustrar o artigo «Caça aos portos do Ocidente», pode ler-se «Shangai» e «Amberes». O primeiro, «Sanghai», todos perceberão de que cidade se trata, embora em português se deva escrever Xangai. Sim, porque se nos querem impingir esta mexurufada meio inglesa meio portuguesa prefiro revistas em inglês, de longe melhores. Quanto a «Amberes», o melhor é esquecer qualquer tentativa de desculpar a jornalista, Carla Jesus. Amberes em espanhol; Antwerp em inglês; Antwerpen em holandês, finlandês, alemão, norueguês e sueco; Anvers em francês; Anversa em italiano — mas Antuérpia em português!
      Diz o texto do Acordo Ortográfico de 1990, ainda não ratificado: «Recomenda-se que os topónimos/topônimos de línguas estrangeiras se substituam, tanto quanto possível, por formas vernáculas, quando estas sejam antigas e ainda vivas em português ou quando entrem, ou possam entrar, no uso corrente. Exemplo: Anvers, substituído por Antuérpia; Cherbourg, por Cherburgo; Garonne, por Garona; Genève, por Genebra; Justland, por Jutlândia; Milano, por Milão; München, por Munique; Torino, por Turim; Zürich, por Zurique, etc.» (Base I, 6.º)

28.3.06

Rádio

Em dia de Benfica-Barcelona…

A repórter da Antena 1 Rita Colaço foi fazer uma (irrelevantíssima) reportagem ao Instituto Cervantes a propósito do jogo. No fim, pergunta ao director do instituto como se diz «bola» em espanhol. Ramiro Fonte, poeta e por isso paciente, diz-lhe que é «balón». No estúdio, empolgadíssimo, António Macedo interrompe para perguntar se não é «pelota». A língua espanhola, lembra a colega repórter, também é traiçoeira. Perante esta afirmação demolidora, António Macedo conclui, pesaroso: «”Pelota” é mais o esférico.» São factos como este que me levam a ter a certeza de que nunca os Espanhóis desejariam uma união ibérica…

Os Shilluk

E o Sudão fica longe?

      Leio na revista Além-Mar que entre os Shilluk, um povo nilótico que vive no Sul do Sudão, antigamente o rei era eliminado ritualmente se contraía uma doença, se era ferido ou se caía em grande debilidade física. Cruel, não é? Mas ainda mais cruel era os candidatos não eleitos para suceder ao rei serem mortos ou desterrados para que não pusessem obstáculos à actuação real. Em tempo de transição presidencial, dá que pensar.

«Palestino» ou «palestiniano»?

Pormenores importantes

      Nos anos 80, lembro-me, pelo menos as pessoas que gravitavam à minha volta diziam «palestino» e se alguém dizia «palestiniano» era olhado como um excêntrico. Mas agora? Há dias vi com satisfação que o jornal 24 Horas escrevia «Autoridade Nacional Palestina» (edição de 22 de Fevereiro, p. 20). Mas deve ter sido, o que é pena, por distracção, pois em sucessivas edições escreve «palestiniano». Embora ambas as formas estejam registadas no Vocabulário da Língua Portuguesa, do Prof. Rebelo Gonçalves, por exemplo, prefiro a forma «palestino», tanto mais que sei que é por influência do inglês que se impôs a forma «palestiniano» (embora talvez seja decalcado do francês palestinien, como há quem defenda). Para compensar um pouco este unanimismo acrítico ou mesmo acéfalo, dá gosto ver Álvaro Vasconcelos, presidente do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, provavelmente o português que mais fala destas questões, dizer sempre «palestino». «Questão palestina», «autoridade palestina», «territórios palestinos», etc. Acresce que é mais fácil pronunciar «palestino», parece-me.

      Deitemos uma quase escusada olhadela à imprensa:

«Nome do moderado Ismail Haniyeh será comunicado amanhã ao líder da Autoridade Palestiniana.» O Independente.

«O Hamas anunciou ontem a nomeação para primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana de Ismail Haniyeh […].» Público, 17.2.2006.

«O Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmud Abbas, convidou, ontem, Ismail Haniyeh a formar governo.» Diário de Notícias, 22.2.2006, p. 15.

«O presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, rejeitou o programa de governo do Hamas, afirmou ontem um alto responsável palestiniano», Correio da Manhã, 12.3.2006, p. 40.

«Os dirigentes israelitas ameaçaram deixar de pagar impostos à Autoridade Palestiniana (AP) após a tomada de posse do Hamas no Parlamento e ameaçaram também acabar com os financiamentos à AP em todo o mundo árabe.» Expresso, 18.2.2006, p. 24.

«Os EUA suspenderam as ajudas e Israel insiste em não enviar os 42 milhões de euros mensais a que a Autoridade Palestiniana tem direito», Visão, 2.3.2006.

Tenho à minha frente a 21.ª edição (2001) do Diccionario de la Lengua Española, da Academia Espanhola, e lá está:

«palestino, na. (Del lat. Palaestīnus). adj. Natural de Palestina. 2. Perteneciente o relativo a este país de Asia.»
Não regista «palestiniano», até porque os Espanhóis não usam esta variante (bem, talvez alguns espanhóis, ignorantes também, o façam). Compulsando o incompletíssimo e inçado de erros Dicionário da Academia, comprovamos, com raiva e desgosto, que não regista «palestino».

27.3.06

Siglas

Estão perdoados

Ena, ena, na Antena 1 já sabem que as siglas não têm plural! Até na oralidade já sabem dizer: «João Salgueiro tem dúvidas sobre as duas OPA.» (Notícias das 17 horas, 27.3.2006.) Nesta matéria, o 24 Horas, que muitas pessoas têm vergonha de mostrar que compram, está muito melhor do que um jornal de referência como é o Diário de Notícias. Famas!

Gostaste e gostastes


Velhas glórias, velhos erros

      Na sexta-feira, num infausto momento de irreflexão, liguei a televisão. Caí na RTP1, na homenagem ao fadista João Braga. Num ambiente intimista, calmo, eis que aparece o realizador Luís Andrade a conversar com o fadista. «Eu não mudei assim muito e tu sei que também não mudastes.» E é a ele que o sítio da televisão pública se refere como «uma das figuras mais sólidas e importantes da RTP»?
      Em 2004, foi publicado pela Bizâncio um livro intitulado Gostastes? Contos de um país real, da autoria de João Viegas. Na altura, o editor viu-se na contingência de apor a seguinte nota na obra: «O erro intencional do título Gostastes?, que causou algum desconforto ao editor e muita satisfação ao autor, pretende ilustrar a falta de qualidade e exigência dos tempos que vivemos. Contudo, convém lembrar que esta palavra é a 2.ª pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo do verbo gostar, mas nunca, como muitas vezes é empregue, a 2.ª do singular, cuja forma correcta é gostaste.»

26.3.06

Léxico: alface-de-cordeiro



Imagem: http://www.directoalpaladar.com

Questões canónicas

Numa das últimas edições, a revista Grazia (n.º 9, 16 a 22 de Março de 2006, p. 89) propunha uma «salada de canónigos e ovos de codorniz». No Mercado de Benfica, perguntei, como quem não quer a coisa, à D. Adosinda que «raio é isso de canónigos». Não tive, porém, a satisfação de lhe dizer, no fim: «Obrigado por estar desprevenida.» «Ai filho, essas estrangeirices não aparecem por cá.» Vejam: «essas estrangeirices». Só o jornalista da Grazia (que nome!), menos xenófobo mas mais ignorante, é que não percebeu que a Valerianella locusta devia ter um nome comum português. E, de facto, alface-de-cordeiros ou alface-do-campo são designações correntes.
Já sei: Maria de Lurdes Modesto, na sua excelente crónica gastronómica no Diário de Notícias, escreveu «erva-dos-canónigos». Deve reportar-se ao conhecimento que tem do rótulo, já que acrescenta: «É frágil e actualmente vê-se durante todo o ano no mercado, lavada e pronta a usar, em embalagens de 400 g.» Por outro lado, não é por eu perceber de gastronomia que Maria de Lurdes Modesto percebe necessariamente de questões linguísticas. Digo eu.

25.3.06

«Com certeza»

Escrever como quem fala




      «Vou ficar melhor concerteza do que estar a lavar a loiça e a fazer comida para aquela cadelagem toda», podia ler-se no 24 Horas («A artista do escândalo», 21.03.2006, p. 51). «Cadelagem» acho um prodígio de criação vocabular (a autora da frase, Natália de Sousa, esteve casada com José Vilhena, o homem da Gaiola Aberta). Quanto ao «concerteza», é uma asneira que só os alunos até ao 6.º ano de escolaridade cometem (também chegam ao 7.º a escrever «derrepente», uma das predilectas). Pelo menos, era o que eu julgava, porque afinal a jornalista Lina Santos, do 24 Horas, também escreve pérolas destas. Com tantas invenções, quando é que os construtores de computadores inventam um sistema que dê um valente choque eléctrico nas polpas dos dedos de quem escreve assim? Fica a proposta.
      Se é uma locução verbal, é óbvio que não se pode escrever como se de uma só palavra se tratasse. Para isso temos «certamente», por exemplo, que é um advérbio.

24.3.06

Desestabilizar

Está mal



      «No trajecto entre o aeroporto de Bejaia e a Praça Lumumba, onde Jorge Sampaio inaugurou um busto de Manuel Teixeira Gomes (Portimão, 1860-Bejaia, 1941), centenas de pessoas olhavam, quedados nos passeios ou debruçados nas janelas, a passagem de uma caravana de automóveis que veio desestabilizar a calmaria daquela cidade costeira» («Bejaia recebeu Sampaio com honras de festa», Maria José Oliveira, Público, 5.3.2006, p.17). Agora, está em voga dizer e escrever «desestabilizar». Mesmo a literatura não escapou a este afã de usar as palavras da moda. Na frase que cito, tenho muitas dúvidas sobre a propriedade do uso da palavra «desestabilizar», mas, seja como for, quanto melhor não ficaria a frase se a jornalista tivesse escrito «perturbar». Acresce que ultimamente, sancionado por três dicionários, pelo menos, o uso de «destabilizar» (to destabilize?) está a impor-se.

23.3.06

Ênfase

MEC escorrega e cai


      Na última crónica — «A língua caníbal» — de Miguel Esteves Cardoso na revista Única (Expresso, n.º 1742, 18.3.2006, p. 14), podia ler-se: «Talvez possamos prescindir da masculinidade de algumas palavritas e passar a dizer “a silicone”, “a ênfase”, “a ioga” e “a hamburguesa” se eles desistirem de aleivosias como “el pétalo” e “el análisis”.»
      Caro MEC: não precisamos de passar a dizer «a ênfase», pois é assim mesmo que se diz. «Ênfase» é do género feminino, e já no latim, de onde provém, era feminina. 
 

22.3.06

Léxico: «trangla»

Imagem: http://www.tringles.com
Trangla



      Não sabe de que se trata? Também eu não sabia, até que me pus afincadamente a ler um dicionário de língua portuguesa ― ainda não havia Internet e eu tinha tempo para isso ― para descobrir que nome tinha uma «barra de metal própria para prender passadeiras aos degraus das escadas». Agora sei que vem do neerlandês tingel, através do francês tringle, língua onde foi registado o seu uso pela primeira vez, segundo o Petit Robert, em 1459. Ingenuidade? Talvez, mas como faria ainda hoje quem, vendo um objecto, quisesse saber que nome lhe é atribuído? Há vocabulários específicos, dicionários de ideias, mas nenhum que satisfaça completamente as nossas necessidades. Bem podiam os editores portugueses apostar nesta área.
      Na foto, vê-se uma das extremidades da trangla, que é fixada ao degrau por dois parafusos: um que prende a peça ao espelho do degrau e o outro ao cobertor do degrau.

Actualização em 18.04.2010


      Quando se desconhece o vocábulo, é claro que se tem de usar uma locução: «No terceiro degrau faltava a vara de metal» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 373).


21.3.06

Estrangeirismo: «pitfall»

Armadilhas

Um leitor, que pede o anonimato, diz-me que o autor de uma obra sobre coleópteros referia os vários métodos de colecta dos espécimes, enumerando-os: «armadilhamento com lâmpadas de mercúrio e de ultravioleta, aspirador entomológico, rede de bater, observação directa e o “pitfall”». Em nota de rodapé, explicava que o «pitfall» consiste no «armadilhamento com frascos ou outros recipientes enterrados, cujas aberturas ficam ao nível do solo». Pergunta-me o leitor se a língua portuguesa não tem uma palavra para substituir aquele «pitfall».
Em qualquer bom dicionário encontrará a seguinte acepção do vocábulo «alçapão»: armadilha dissimulada no solo para fazer cair uma presa dentro de um buraco ou cavidade. Julgo que o inglês pitfall não diz mais do que isto, a não ser que em estudos de entomofauna tenha outros significados, o que não me parece. À minha frente tenho uma obra, publicada em 1983 pela Sá da Costa Editora, cujo título é Avoid Pitfalls in English, de Eunice Sanders. Se fosse Avoid Pitfalls in Portuguese, seria sem dúvida uma indirecta ao autor do trecho citado pelo leitor.

20.3.06

Sociedade: educação

Por a + b

«O PISA (Program for International Studente Assessment), o maior estudo internacional a avaliar as competências e conhecimentos dos estudantes de 15 anos, tem colocado a Finlândia no topo da tabela dos melhores resultados. Agora, uma investigação mostra que muitos jovens deste país lêem jornais com frequência. E que esse facto ajudará a explicar os desempenhos excepcionais. Até no caso da matemática.
[…]
«Elevados níveis de leitura de jornais apareceram também associados a melhores competências a matemática e à destreza na resolução de problemas ― “em parte isso será explicado com o facto de também nestas matérias os testes do PISA proporem tarefas que estão ligadas, com a ajuda de textos, a situações do dia-a-dia.» («Leitura frequente de jornais associada aos bons resultados dos alunos na escola», Público, 5.3.2006, p. 31)
«O pecado original da Linguística foi o de se afirmar contra a Literatura. Ainda hoje, no ensino do português, há quem receie o cânone literário, por considerá-lo perigoso e manipulador. Também há quem entenda que a disciplina de Português deveria ser distinta da de Literatura. E há ainda quem resvale já para a aceitação de uma norma correspondente à transmitida pelos jornais, pela rádio e pela televisão, embora a comunicação social seja o maior viveiro de erros e imbecilidades de que o país dispõe nesta matéria…» («A gripe das aves e os manuais de português», Vasco Graça Moura, Diário de Notícias, 8.3.2006, p. 10)
Mudamos de país ou de imprensa? Mudamos de métodos ou de professores? Mudamos de programas ou de políticos? Como escreveu uma vez Miguel Esteves Cardoso, as únicas alterações bem-vindas são as que vêm alterar as alterações anteriores. A avaliação e certificação prévias da qualidade dos manuais escolares ainda nos conduzirão bem perto do melhor do negregado livro único: nas palavras de Vasco Graça Moura, no artigo citado, à promoção de «manuais elaborados no respeito pelos programas e aferidos e adoptados com rigor científico e pedagógico».

19.3.06

Curiosidade: leitura

Parece simples...

Para avaliar até que ponto o trabalho de um revisor de texto é dificultado até por processos mentais, leia o seguinte texto:

Sguedno um etsduo da Uinvesriadde de Cmabgirde, a oderm das lertas nas pavralas não tem ipmortância qsuae nnhuema. O que ipmrtoa é que a prmiiera e a utlima lreta etsajem no lcoal cetro. De rseto, pdoe ler tduo sem gardnes dfiilcuddaes... Itso é prouqe o crebéro lê as pavralas cmoo um tdoo e não lreta por lerta.
In O Brasileirinho, n.º 55, Janeiro de 2006, p. 54.

18.3.06

Concordância

Explique isso melhor

Título do jornal Público (6.3.2006, p. 22): «Peru processa Yale para reaver peças inca». No corpo da notícia, podia ainda ler-se: «A universidade diz que Yale propôs organizar exposições de objectos inca em Yale e num novo museu a construir no Peru.» «Peças inca»? «Objectos inca»? Que espécie de concordância temos nós aqui? É verdade que nos últimos tempos a vejo muito em livros e jornais, o que me causa alguma perplexidade. Em português, os adjectivos concordam com os substantivos. O jornalista deveria ter escrito «peças incas» e «objectos incas», pois que «inca» é um adjectivo. Deve haver aqui confusão com as locuções verbais ou palavras compostas por justaposição, como em escola-modelo, por exemplo, em que entre os dois termos há uma relação de subordinação. Nesses casos, porém, ocorre o oposto: o segundo termo, que é um substantivo, passa a ser encarado, tendencialmente, por evolução regressiva, como um adjectivo.
Se o jornalista for moçambicano ou angolano (mas está a escrever para os Portugueses…), não será de surpreender: nestes países, com a interferência das línguas bantas, a língua adoptou novas soluções, e entre elas o uso da desinência do plural só com o artigo ou com o primeiro nome de uma sequência:
Os engenheiro das obra ganham muito dinheiro.
Engenheiros esperto ganham bem.

17.3.06

Léxico: martinicano

Não me parece

«Harry Roselmack tornar-se-á um dos raros jornalistas negros a apresentar um telejornal num canal francês, a par de Audrey Pulvar, igualmente de origem martinica, que desde 2005 é pivô do canal France 3» («TF1 lança pivô negro no jornal das 20.00», Diário de Notícias, 8.3.2006, p. 39). Ó senhor jornalista, o adjectivo relativo a Martinica é «martinicano»; o adjectivo pátrio reduzido, martinico. «O martinico-inglês Harry Roselmack…» Vamos lá vencer essa inércia e estudar um pouco mais. Nós merecemos, caramba (já lá têm o adiantamento: 0,85 euros).

Verbo haver

Eu bem dizia…


      O leitor João Cavaco mandou-me a seguinte questão: «Não vai haver despedimentos na Função Pública» ― frase dita pelo senhor ministro da Presidência Dr. Pedro Silva Pereira. Porque tal frase me deixou alguma confusão, admitindo eu que a forma mais correcta seria: “Não vão haver despedimentos...”, aproveito esta oportunidade para solicitar os seus esclarecimentos, que presumo sejam mais apropriados.»
      Embora eu já aqui tenha tratado («Agora já percebi» e «Será que ouvi bem?...») do verbo «haver» e das desventuras de que padece às mãos dos falantes, esta é uma excelente oportunidade para chamar a atenção para o efeito perverso que os erros, sobretudo os difundidos pelos meios de comunicação, têm. De tantos disparates ouvirem, as pessoas já não vão sabendo o que está certo e o que não está. Neste caso, porém, está correctíssimo: o verbo haver só se conjuga no plural quando substitui, como auxiliar, o verbo ter, o que não é o caso.

Topónimos/pontos cardeais/cores

A próxima tortura

Veio parar-me às mãos (eu também vou ao dentista…) a edição de Fevereiro da revista A Próxima Viagem. Ora vejamos lá uma frase, só uma: «É nestas ilhas situadas em pleno Oceano Atlântico, a Norte das Antilhas, que nos deparamos com um fenomenal quadro: Praias de areia cor-de-rosa (sim, é verdade) rodeadas de águas absolutamente turquesas.» Falava-se das Bermudas, isso nem os erros conseguem obscurecer. A jornalista Cátia Matos devia saber que os nomes comuns que acompanham os nomes dos acidentes geográficos se grafam em minúscula («oceano Atlântico»), os pontos cardeais e colaterais quando apenas designam direcções se escrevem com minúscula («a norte das Antilhas»), depois de dois pontos não tem de se escrever, neste caso, a primeira palavra com maiúscula e que, na verdade, as águas seriam «turquesa», pois de acordo com os melhores gramáticos (Evanildo Bechara ou Mário Barreto, por exemplo), quando usados de forma adjectival, os substantivos que designam cores só têm singular. Não direi nada, por ora, da pontuação. Passe a palavra aos seus colegas, todos eles estão a precisar de saber o mesmo, ou terei de mudar de dentista.

16.3.06

Locução: obras de arte

Da arte de dizer

Tenho lido alguns artigos em que aflora a estranheza pelo título do programa de Paulo Portas na Sic Notícias, O Estado da Arte. Ontem, também a mim me perguntaram o que significa. Parece ser a tradução do inglês (li um artigo no mesmo sentido no Público) state of the art, locução com que se define o nível mais elevado de desenvolvimento num tempo definido*.
Escrevo, porém, este texto para referir outra ambiguidade: nos últimos dias, tem-se falado muito, novamente, do estado das pontes em Portugal. Pelo menos na SIC, uma notícia aludia às «obras de arte», assim, sem mais. Mesmo no contexto, quem sabe do que se trata? Os jornalistas, já aqui o afirmei uma vez, deliciam-se com estas expressões e com palavras invulgares, quando deviam ser os primeiros a descodificar, a explicar, a traduzir. Este comportamento, contudo, não é regra. Sobre o mesmo assunto, leio uma notícia no Público («Programa de obras em pontes arrasta-se cinco anos depois da tragédia de Entre-os-Rios», Luísa Pinto, 4.3.2006, p. 26) em que se escreve: «Nos três meses seguintes à tragédia foram vistoriadas 354 obras de arte (termo técnico que inclui passagens agrícolas e de peões, bem como viadutos e pontes; em Portugal há 5600) com o objectivo de avaliar as condições de segurança de cada uma delas.» Isto é bom jornalismo.


* Tomemos, por exemplo, a locução «state-of-the-art equipment»: é comum vê-la traduzida, e a meu ver bem, como «equipamento de ponta», ou «equipamento topo de gama». «This is a state-of-the-art» podemos traduzir como «é o último grito», e referimos a área em que isso acontece.

14.3.06

Neologismo: inumeracia

Vamos inventar

Tenho andado, suspeito, um pouco distraído. José Júdice, cuja crónica n’O Independente tento nunca perder, por considerar que estamos perante um dos grandes cronistas do nosso tempo, escrevia numa das últimas edições deste semanário: «O sr. Taheri revela, claro, além de uma presunçosa inumeracia, uma abominável ignorância.» A polémica era, percebe-se, as afirmações irresponsáveis e estúpidas do embaixador iraniano em Portugal a propósito de quantos judeus tinham sido assassinados no Holocausto. José Júdice, acutilante, designou por «inumeracia» esta ignorância, palavra formada por analogia com «iliteracia».
A pergunta que se impõe é: fazia falta este vocábulo? Em termos latos, a iliteracia abrange a falta de domínio das operações aritméticas fundamentais*, e nesse sentido talvez não faça falta. Claro que, sendo um termo mais específico, faz falta, objectar-me-ão. A outra pergunta é: e a língua não tinha já um vocábulo que veiculasse o mesmo conceito a que José Júdice pudesse ter recorrido? A pergunta é longa, a resposta, curta: sim. Está dicionarizado: «inumerismo». «Inumeracia» quase só na Internet se deixa ver.


* Não confundir com discalculia, que é a perturbação, semelhante à dislexia, relativa a uma dificuldade na simbolização dos números e na capacidade aritmética.

13.3.06

Pronúncia: medíocre

Aleluia

Esquadrinho na memória em busca da última vez que ouvi alguém pronunciar correctamente a palavra «medíocre»; em vão, porém. Hoje, nas notícias das 7h00 na TSF, a repórter Cristina Laimen pronunciou de forma correcta, enfática, a palavra: com a vogal tónica no i: medíocre (à semelhança de «período»). E se etimologicamente «medíocre» é aquele que fica a meio (medius) da montanha (ocris), com jornalistas como Cristina Laimen chegamos ao topo.

Nomenclatura dos seres

Moderna e um pouco burra

Já aqui falei da nomenclatura e classificação dos seres («Nomenclatura dos seres/dengue»), e eis que surge uma oportunidade de voltar a abordar esta matéria. Na edição n.º 887 da revista Mulher Moderna, podia ler-se a seguinte frase: «O staphylococus aureus é uma das bactérias mais resistentes e pode ser encontrada em ambiente hospitalar.» (p. 45). Como referi então, a designação binominal científica é, de facto, em latim. No entanto, o primeiro termo do nome da espécie (o nome genérico) deverá sempre ser escrito em maiúscula. O segundo termo (o epíteto específico), por sua vez, escrever-se-á em minúscula. Além disso, correctamente é Staphylococcus, com dois cc (claro, também pode escrever cês).
Para os que graduam a gravidade do erro em função do meio, aqui fica um exemplo no institucional, sólido e igualmente descuidado Expresso (Única, n.º 1739, 25.2.2006, p. 73): «Estas propriedades despertaram o interesse da comunidade científica e têm sido realizados inúmeros estudos com o óleo de orégão, nomeadamente sobre a sua capacidade em combater e destruir bactérias como a E. coli, salmonella e staphylococus aureus.» (Como quase sempre, apenas focarei este problema, abstraindo de outros que a frase tenha — e tem mesmo.)

12.3.06

Sociedade: o revisor

Com autorização expressa do autor, o escritor Màrius Serra, divulgo hoje um texto que foi originalmente publicado no diário espanhol La Vanguardia (23.2.2006). O apelo para a valorização do papel do revisor de texto, essa figura obscura, é tão necessário em Espanha como em Portugal. Pensar que aqui se publicam, por exemplo, manuais escolares sem revisão ― com os dislates que todos conhecemos, e eu conheço dezenas de manuais de várias disciplinas ― é revoltante. E sobre isto não vejo nenhum membro do Governo perorar ou alertar para os direitos dos consumidores. Sim, porque é disso mesmo que se trata: produtos com defeito. Perante este, os consumidores podem exigir a reparação do bem, a sua substituição, a redução do preço ou a própria resolução do contrato. Acho notável que seja um escritor a escrever tal texto, coisa impensável em Portugal.

Otra corrección es posible

NO ES LÓGICO prescindir de los lingüistas y quejarse del empobrecimiento de la lengua

Màrius Serra

Entre los sobresaltos que provocó la manifestación del sábado hubo uno más bien colateral. En su flamante diario digital, Pasqual Maragall publicó el domingo un post que empieza «Considero raonable que milers i milers de ciutadans expressin la seva actitud» y acaba recordando el bombardeo de Gernika. El presidente rubrica sus reflexiones con un topónimo (es lógico) y la fecha (redundante tratándose de un diario digital). Este domingo debió de escribirlo desde Rupià, porque se leía: «Al Baix Empodrà (sic), diumenge, 19 de febrer del 2006». El error de tecleo en el nombre de la comarca produjo una metátesis espectacular, digna de figurar en los manuales de retórica junto a los clásicos «àguila-àliga, egua-euga o xicallaquitxalla». Al desplazar la R de Empordà, Maragall construyó sin querer una frase inquietante, homófona de «el baix em podrà». Este desliz tipográfico propició un hilarante juego especulativo por parte de los sagaces humoristas del espacio Alguna pregunta més? de Catalunya Ràdio. A las ocho, Carles Capdevila ya se preguntaba por la identidad de esa persona de baja estatura que podría con Maragall. Las hipótesis más verosímiles apuntarían hacia el ministro Montilla, aunque podría haber más candidatos. Descartados por el centímetro tanto Zapatero como Rajoy y apartados de la primera línea Pujol y Aznar, la discusión se centraría en comparar estaturas entre Maragall y sus rivales: ¿Mas? ¿Bono? ¿Carod? El equipo APM volvió a la carga a eso de las diez en su repaso de la prensa. Y entonces, por arte (digital) de magia, la metátesis ampurdanesa se deshizo y «Al Baix Empodrà» devino «Al Baix Empordà».
Ésa es la grandeza de ambos medios. La radio, por su trascendencia social; internet porque, a diferencia de los medios impresos, permite corregir erratas sin dejar rastro. Sin embargo, no se puede corregir con garantías sin contratos dignos para los lingüistas, unos profesionales cada vez más arrinconados que son básicos en el tan cacareado fomento de la lectura. Para que los textos de periodistas, novelistas, ensayistas, traductores, crucigramistas e incluso poetas nos lleguen dignamente los correctores deben ser más valorados. No es lógico prescindir alegremente de ellos en nombre de los costos de producción y luego quejarse del empobrecimiento de la lengua. De cualquier lengua. Debemos exigir el máximo dominio del instrumento a los profesionales del lenguaje, pero nadie es infalible. Un texto debe ser siempre revisado por más de una persona. El lenguaje verbal es un instrumento demasiado complejo. ¿No exigimos controles de calidad en otros ámbitos? ¿No se revisa el trabajo de arquitectos, juristas e ingenieros? Resulta paradójico que, mientras se lava la imagen de los cuerpos policiales, los correctores aún carguen con el sambenito de ser la policía (represiva) de la lengua. Y no. O no siempre. Una buena corrección juega a favor de cualquier texto.

Aparte del weblog presidencial y de las hilarantes antologías de erratas que proliferan en la red, deberíamos visitar más a menudo un weblog que reivindica la figura del lingüista como http://addendaetcorrigenda.blogia.com/. Ya verán que es un espacio combativo, a cuyas críticas por fortuna nadie escapa, como este columnista ha podido comprobar.

11.3.06

Léxico: «xivor»

Imagem: http://www.infotravelromania.ro


Coca-bichinhos



      Talvez nenhum povo esteja tão obcecado com nomes colectivos como os Brasileiros. Nos mais diversos meios onde há consultórios sobre a língua, se houver uma pergunta sobre qual é o colectivo de mosca ou de casa ou de arara, quase de certeza será de um brasileiro. Há umas semanas, vi uma dessas perguntas numa coluna de um jornal brasileiro. «Qual é mesmo o coletivo de coco?» O colunista, coitado, não sabia e disse… que não sabia e que a leitora devia saber que nem todos os substantivos têm colectivo. A resposta, sobretudo a parte final, ponderei então, estava certa; quanto a não haver colectivo para coco, sei-o agora, a leitora foi enganada.
      À primeira vista, o recurso a uma catacrese — «cacho de cocos» — parece-me satisfatório. Um cacho de uvas, um cacho de bananas… Mas como a leitora não me perguntou a mim — fiada, decerto, no provérbio «Coco velho é que dá azeite» —, ficou sem saber nada, quem sabe se com o Carnaval estragado. Cara leitora do colunista rival: no léxico português há uma palavra de origem asiática (concani?) que designa o cacho de cocos: xivor.

Concordância

Passivos&Activos

«Na clausura fabrica-se hóstias para vender à diocese, mas também se faz dinheiro com terços e pagelas desenhadas a esferográfica pelas carmelitas.» A frase é da jornalista Cândida Pinto na revista Única (n.º 1738, 18.2.2006, p. 42). Embora não pareça, a construção é a típica da voz passiva, mais concretamente, passiva de -se, pronominal ou reflexa. Naturalmente, a concordância, questão nuclear na nossa língua (sim, é verdade que há diversos tipos de concordância, um dia lá chegaremos), deverá ser respeitada, devendo escrever-se: «Na clausura fabricam-se hóstias.» Se não queria escrever assim, ou porque não lhe apetecesse ou porque pressentisse que no Universo iria surgir uma criatura, eu, que a contrariaria, à jornalista restavam várias alternativas, e uma delas era escrever «Na clausura são fabricadas hóstias».
«Na clausura fabricam-se hóstias.»
«Na clausura fabrica-se a hóstia.»
«Na clausura são fabricadas hóstias.»
«Na clausura é fabricada a hóstia.»
«As hóstias fabricam-se na clausura.»
«A hóstia fabrica-se na clausura.»
«Fabricam-se hóstias na clausura.»
«Fabrica-se a hóstia na clausura.»

10.3.06

Curiosidade: escala musical

Cantemos

Todos os cruzadistas sabem, com a frequência com que surge nos problemas que resolvem, qual o «antigo nome da letra dó». Até eu, que não sou cruzadista, sei a resposta de cor: ut. Esta era a primeira palavra do hino a S. João Baptista, a partir do qual o monge beneditino Guido d’Arezzo (990-1050) construiu a escala musical. Guido d’Arezzo verificou que na primeira estrofe, com sete versos, cada uma das sílabas iniciais subia um grau na escala em relação à primeira sílaba do verso anterior. Assim, reflectiu que toda a gente que soubesse esse cântico saberia logo de que nota se tratava. A nota si apenas foi acrescentada no princípio do século XVII, a partir das iniciais de Sanctae Ioannes, que está aqui no vocativo. Eis a primeira estrofe desse hino:
Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labii reatum
Sancte Ioannes.
Uma tradução livre — o padre António Carmo, meu saudoso professor de Latim e tão excelente como desconhecido poeta, não iria achar completamente mal empregadas as horas que despendeu comigo a ensinar-me a traduzir as fábulas de Esopo, o De Bello Gallico, as Metamorfoses… — poderia ser a seguinte: «Para que os teus servos possam, a plena voz, celebrar tuas acções maravilhosas, purifica nossos lábios conspurcados, ó São João.»

9.3.06

Ortografia: «hobby»

Passa muito tempo     


      Marcos Cóias e Silva, leitor habitual deste blogue, escreveu-me a dizer que leu no Expresso Economia uma entrevista ao armador George Potomianos em que se usava a palavra «hóbi». Pergunta-me se este vocábulo é correcto ou se é preferível usar o anglicismo «hobby». Caro amigo: entre «hóbi» e «hobby»… prefira «passatempo».
      Repare que, a não ser que tenha sido uma entrevista por email, como a que a prioresa Maria Celina deu à revista Única (Expresso, n.º 1738, 18.2.2006), a palavra é do jornalista e não do entrevistado. E depois, pergunta-me? Bem, é que a tendência do Expresso para aportuguesar os estrangeirismos é bem conhecida de todos nós. Por vezes, parece ir à frente do tempo, outras, atrás do tempo, e outras ainda, a destempo.
      Tentemos a analogia, esse poderoso instrumento do raciocínio. Até há pouco tempo, a ninguém ocorreria aportuguesar a palavra «lobby», e veja como agora em muitos jornais se escreve «lóbi», «lobista» e «lobismo». Até já estão dicionarizadas com estas roupagens portuguesas. Eu, que sou um pouco conservador (o que será deformação profissional, digo eu), não apenas escrevo, como recomendo que se escreva «ateliê», «dossiê», «tricô», etc.
      Voltando a «hobby», deixo-lhe aqui as «Seis regras de Orwell», para ver como até um inglês — e eles não têm preconceitos: o que tocam é deles — prefere usar o que é nacional.

Orwell’s Six Rules

1. Never use a metaphor, simile, or other figure of speech which you are used to seeing in print.
2. Never use a long word where a short one will do.
3. If it is possible to cut a word out, always cut it out.
4. Never use the passive where you can use the active.
5. Never use a foreign phrase, a scientific word or a jargon word if you can think of an everyday English equivalent.
6. Break any of these rules sooner than say anything outright barbarous.
George Orwell, Politics and the Eng­lish Language

8.3.06

Cultura: Homero

Ignorância clássica

Conhecemos, dos estudos de cultura clássica, a Questão Homérica*, que, em poucas palavras, versa sobre a autoria dos poemas homéricos, Ilíada e a Odisseia. Da análise destes, os especialistas concluíram que a linguagem apresenta não apenas marcas de diversas épocas, como elementos de quatro dialectos: arcado-cipriota, ático, eólico e iónico. Este facto, a juntar às dúvidas sobre a data de composição e à descoberta de que assentam numa técnica de improvisação oral, determinaram a opinião de que os poemas homéricos, afinal, não podem ter tido apenas um autor. De resto, de Homero nada se sabe: talvez tenha nascido em Quios, ou em Cólofon, ou ainda em Esmirna. Até a etimologia do nome, provavelmente não grega, é incerta: derivará de ho mè horôn, isto é, «o que não vê» (a lenda descreve-o efectivamente como um aedo cego), ou significará «refém», ou «recolector»?
Este texto foi-me sugerido por Amélia Pais, que me chamou a atenção para o facto de José Bandeira ter afirmado ter visto na televisão «Héliada» em vez de «Ilíada». Para troçar, José Bandeira escreve por baixo: «(esse best-seller de Hemero)

* A Questão Homérica, de resto, tem raízes na época alexandrina. Só em finais do século XVIII Wolf fundamentou de forma científica estas dúvidas.

Ortografia: «mundanidade»

Já soube


      Na revista Actual (n.º 1739, 25.2.2006, p. 24, artigo «Eutanásia passiva», da autoria de L. M. Faria), podia ler-se: «Mundaneidades e alcoolismo à parte, seria um crime menor — o da indiscrição em relação às personagens que concediam dar-se com ele — a arrumá-lo de vez.» Vá-se lá perceber! Uns escrevem «precaridade», quando deviam escrever «precariedade»*, outros, devendo escrever «mundanidade», escrevem «mundaneidade». Claro que estes erros se vão instilando insidiosamente na mente de quem lê. Se mesmo um jornal como o Expresso, com os meios de que dispõe e a influência que exerce, trata assim a língua, o que podemos esperar? Para emigrar talvez seja tarde.

* Eis uma mnemónica: se o adjectivo do qual deriva o substantivo abstracto (isto é, os que designam acções, noções, estados e qualidades) termina em -io (tais como -ário, -ório ou -úrio), o substantivo terá um e entre o i e o d, regra que já vem do latim:
acessório — acessoriedade
aleatório — aleatoriedade
arbitrário — arbitrariedade
binário — binariedade
contrário — contrariedade
discricionário — discricionariedade
espúrio — espuriedade
executório — executoriedade
hereditário — hereditariedade
impróprio — impropriedade
notório — notoriedade
obrigatório — obrigatoriedade
peremptório — peremptoriedade
perfunctório — perfunctoriedade
precário — precariedade
primário — primariedade
próprio — propriedade
provisório — provisoriedade
sedentário — sedentariedade
sério — seriedade
sóbrio — sobriedade
sócio — sociedade
solidário — solidariedade
subsidiário — subsidiariedade
temporário — temporariedade
transitório — transitoriedade
unitário — unitariedade
vário — variedade
vicário — vicariedade
visionário — visionariedade
voluntário — voluntariedade
etc.

7.3.06

Revés/reveses

Resvés



      «Traições da linguística», pp. 114-117, Focus, edição n.º 333. Embora o título do texto me parecesse logo enfermar de um grave erro, que não vou hoje comentar, o conteúdo afigurou-se-me útil e prometedor. Para além do «f*da-se» (leia-se fod*-se…) de Mário Crespo, em directo, e de situações que não encaixam, nem de perto nem de longe, no que o título pretendia classificar, Paula Simões às banalidades acrescentou alguns erros. Apontarei apenas dois:

«Mas os revezes da profissão revelam, por vezes, pessoas talentosas que, apesar de todas as contrariedades, tentam fazer da melhor forma possível o seu trabalho.»

« uns anos atrás, aquando da estreia do filme Branca de Neve de João César Monteiro […].»


      «Revezes» existe, claro, não quero desmotivá-la, mas significa outra coisa. O plural de «revés» — contrariedade, etc. — é «reveses» (à semelhança de convés >conveses). Quanto ao «years ago», perdão, ao «há anos atrás», está tudo dito.

SIDA ou sida?

Evoluções


      Luís Soares, leitor deste blogue, pergunta-me porque se deixou de escrever «SIDA» para se passar a escrever, pelo menos na maioria dos meios de comunicação escrita, «sida». O termo começou por ser a abreviatura de «síndrome de imunodeficiência adquirida». No início, ora se lhe atribuía o género masculino, ora o feminino. (Era um tempo incerto, esse, em que quase toda a gente dizia «Cavaco e Silva»; como ainda há, hoje em dia, quem hesite, ele voltou para mais dez anos.) Estabelecido, com o tempo, que o género devia ser o feminino (a síndroma ou a síndrome), passou a usar-se de uma forma crescente, infelizmente. Decorridos estes anos todos, a sigla foi lexicalizada, isto é, é como se fosse um vocábulo como qualquer outro. É a gramática a seguir a pragmática. A marca da sigla — o emprego das maiúsculas — desapareceu. Ora dê uma olhadela ao Dicionário da Academia. Já viu? Está dicionarizada como substantivo feminino.

      A propósito, devo dizer que no Brasil a sigla que se preferiu foi «AIDS», tal como em inglês, porque, sendo «sida» homófona de «Cida», hipocorístico de Aparecida, nome próprio muito comum no Brasil, não seria lá muito auspicioso, pois que se prestaria facilmente a trocadilhos.



6.3.06

Citação: Vergílio Ferreira

Aponte

«A filosofia é a consciência da realidade, como a gramática é a consciência da língua.»

Vergílio Ferreira

Utilidades: blogue

Saber mais

Um grupo espanhol de profissionais da edição, da linguagem e da educação que se dedica à revisão de textos criou um excelente blogue — «Addenda & Corrigenda» — que poderá visitar em http://addendaetcorrigenda.blogia.com/. Se estou distraído? Claro que não é português, mas estou certo de que podemos aprender muito lendo-o. A ignorância só nos envergonha e os preconceitos nacionalistas, para lhes dar algum nome, são abomináveis.

Regência: verbo «pensar»

Pensa devagar e obra depressa

      «Queremos mostrar às pessoas coisas que elas não pensam» (jornal 24 Horas, 3.3.2006, p. 52). A autora da frase é Vanessa Oliveira, que começa hoje a apresentar, com Pedro Mourinho, o Programa da Manhã na SIC. A jornalista, que parece saber quem é e o que é («Acho que sou uma mulher muito sexy», Mulher Moderna, n.º 887, 27 de Fevereiro a 5 de Março), ignora a regência do verbo pensar. Sem preposição, pensar é dar penso. «Ó ti Manel, já deu penso ao burrico?» Em algumas zonas do Alentejo ainda se usa referido a crianças, no sentido de tratar, alimentar, etc. Quem pensa, acho eu, pensa nisto ou naquilo. Leia mais, vai fazer-lhe bem.

Pensar em (v. intr.) — ter presente no pensamento, aspirar.
Só pensa em viajar.
(Nunes, Carmen, Sardinha, Leonor, Vocabulário — Regime Preposicional de Verbos, 1.ª ed., Lisboa, Didáctica Editora, 1999, p. 92)

5.3.06

Etimologia: profeta

Da Pitonisa a Maomé

Quando hoje se fala de profeta, é quase sempre a Maomé que nos estamos a referir. Na Antiguidade, porém, os profetas eram os intérpretes das pitonisas, eram os que sabiam decifrar os gritos e gemidos destas e os seus avisos expressos em versos enigmáticos e ambíguos (para não se lhes assacar depois a falsa profecia, à semelhança dos actuais horóscopos, que invadem as publicações periódicas). Mais tarde, profeta era o portador da mensagem de Deus aos homens e, como tal, podia revelar factos futuros. Quando a estrutura hierárquica da Igreja começou a tomar corpo, os profetas, fenómeno totalmente individualista e, logo, arredios a normas institucionais, associado ao carisma, os profetas desapareceram. Resta-nos — ou, em termos de credo, resta aos muçulmanos, com o nosso respeito e o respeito deles pela nossa liberdade de expressão — Maomé.
Por fim, um apontamento sobre a palavra. Provém do latim propheta, tomada do grego prophetés, que por sua vez derivou de prophanai (o que fala antes, o que prognostica), formada com o prefixo pro- (que está antes no tempo ou no espaço) e phanai (falar, dizer), proveniente do indo-europeu bha* (falar).

* Esta raiz indo-europeia tem dois significados: fala ou voz e luz. Assim, tiveram origem a partir dela, intermediadas pelo grego ou pelo latim, duas séries. A partir do primeiro significado, chegaram-nos palavras como afamar, afasia, afásico, afável, difamar, eufemismo, fábula, fabuloso, facúndia, facundo, falar, fama, famoso, fático, inefável, infâmia, infância, infante, infantil, prefácio, profecia, profeta, profético, profetizar, profissão, profissional, etc. A partir do segundo significado, temos vocábulos como diáfano, ênfase, enfático, epifania, fantasia, fantasma, fantástico, fase, fenómeno, fenótipo, etc. Curiosamente, por vezes os dois campos semânticos, já tão próximos, entrelaçam-se, como na locução «esclarecer uma dúvida», «fez-se-lhe luz na mente», «ideias claras», «ter umas luzes sobre alguma matéria», «com a razão ofuscada», «com o juízo toldado», etc.

4.3.06

Pronúncia: «alopecia»

Alô! Malato


      Ainda só duas vezes vi, por infausto acaso, o concurso televisivo A Herança, apresentado por José Carlos Malato. A primeira vez calhou-me em sorte ouvir o apresentador falar de «palavras homólogas», e rapidamente me pus a salvo noutro canal. Na sexta-feira passada, reincidi e ouvi-o perpetrar uma silabada: /àlôpécia/. Pronunciou assim o vocábulo quatro vezes. Embora a pronúncia de «alopecia» seja controversa, ninguém, que eu saiba, defende a pronúncia com o o fechado. Em Portugal, de qualquer modo, julgo que a tendência é para julgá-la grave, o que seria exigido pela origem grega do vocábulo. Contudo, o latim, língua de intermediação, autoriza a acentuação como esdrúxula.
      O vocábulo «alopecia» provém do grego alopexia, de alopex, raposa, através do latim alopecia. Verificando que este animal costuma perder muito pêlo, os Gregos passaram a designar a queda de cabelo no homem com este termo, seja por doença, seja por velhice.

3.3.06

Ortografia: isquémico

Esquemas mentais

O 24 Horas tentou hoje explicar-nos «o que é uma cardiopatia esquémica» (3.3.2006, p. 9). Como a jornalista, Rute Coelho, escreveu cinco vezes «esquémica», deduzo que é o esquema mental dela a funcionar e não uma gralha. Como qualquer dicionário poderia elucidar a jornalista, escreve-se «isquémico», «isquemia», e, logo, «cardiopatia isquémica». Imagino que a opinião do cardiologista Daniel Ferreira, do Hospital Amadora-Sintra, tenha sido recolhida por telefone. Uma vez que «esquémica» era o mais parecido ao que a jornalista conhecia, «esquema» e «esquemático», foi assim que escreveu. Não se lembrou de consultar um dicionário, de papel ou na Internet — como era seu dever como profissional. A meu ver, a língua é tão digna de protecção como as fontes, ou não?
O termo «isquemia» provém do latim científico, embora formado a partir de um vocábulo grego, e chegou-nos através do francês ischémie (o inglês, mais próximo do latim, é ischemia). Designa uma paragem ou insuficiência do fornecimento de sangue a um tecido ou a um órgão. Pode ser devida a vasoconstrição, a obstrução ou compressão arteriais.

Actualidade: ensino do Inglês

Para inglês ver

      Foi ontem divulgado um estudo em que se conclui que os estudantes britânicos costumam dar muito mais erros ortográficos e de sintaxe do que aqueles que têm o inglês como segunda língua. O estudo foi feito por Bernard Lamb, especialista em genética do Departamento de Ciências Biológicas do Imperial College, e concluiu que os estudantes britânicos não conseguem expressar-se correctamente. Entre os erros mais comuns, Lamb indicou que 78 % dos estudantes britânicos colocaram apóstrofo no pronome possessivo «its», enquanto somente 25 % dos alunos estrangeiros cometeram esse erro. Para o especialista, isto deve-se ao facto de os estudantes estrangeiros «terem mais aulas de gramática, mais correcção de erros e mais ênfase na forma correcta de escrever em inglês».
      Se José Sócrates sabe disto, em vez de 20 milhões de euros, irá gastar o dobro com o Programa de Generalização do Ensino de Inglês no 1.º ciclo. Convém, de qualquer modo, esperar, pois pode haver algum especialista ocioso que se dedique a demonstrar que os estudantes chineses escrevem e falam melhor a língua portuguesa do que os estudantes portugueses.

Neozelandês

Ooops

É cada vez mais comum ver incorrectamente escrita a palavra «neozelandês». A última vez foi no jornal Público (1.3.2006, p. 42): «A sala de cinema hardcore dos reclusos neo-zelandeses.» Tentando entrar na mente do criminoso, creio que a explicação para o erro se pode encontrar no facto de Nova Zelândia se escrever em duas palavras. Será esta a razão?

Lago Constança

Imagem: http://ontology.buffalo.edu/



Já meteram água



      Ainda fui ao quiosque devolver o jornal, mas não aceitaram reembolsar-me. Escrevia a jornalista Ângela Marques na página 19 do Diário de Notícias de 27 de Fevereiro: «A Suíça partilha o lago de Constância com a Alemanha e a Áustria.» Com todo o respeito (ou, à mestre Gil, salvanor), não me parecem muito bons em geografia. O que é que a Vila Poema, a antiga Punhete, tem que ver com isto? A nossa Constância foi a determinação dos seus habitantes no apoio à causa liberal, o que foi recompensado por D. Maria II ao mudar o nome da localidade. O lago Constança — repita comigo, Ângela: Constança — (Constance em francês, Bodensee em alemão) é, de facto, partilhado pela Suíça, a Alemanha e a Áustria. Já sei: também assim foi dito na RTP1 e era o que estava escrito na notícia da Lusa. E depois? Querem ver que o jornalista perito em línguas mortas, como o português, não estava na redacção?!

2.3.06

Fluido e fluído

Lábil, untuoso…

      Ora cá está um dos erros mais persistentes. Trata-se de uma tradução, mas esse é um pormenor irrelevante, no caso em apreço. «His walk, she thinks, is smoother, more fluid than usual.» Lá vem a tradução: «O seu andar parece-lhe mais leve, mais fluído do que o habitual.» Parece perfeito, não é? Se estivermos distraídos, é. Passo a passo, vamos lá: «fluido» é o quê? É um adjectivo. Então, será «fluido», tal como seria se se tratasse do substantivo, e como a vogal tónica é o u, o i não leva acento. A forma com acento agudo, «fluído», é o particípio passado do verbo «fluir» (como puído, saído, caído, etc.) Como é óbvio, a prosódia destas formas (nominal e verbal) é diferente. Um exemplo em que se usa, respectivamente, o substantivo e o particípio passado: «O azeite, o precioso fluido mediterrâneo, tem fluído bem, apesar de um pouco coalhado por causa do frio.» (conversa de um lagareiro dado a leituras…)

Léxico: «barbecue»

Bem passado

Foram os Espanhóis que divulgaram o termo «barbecue» (barbacoa, em espanhol), que vem do aruaque barbicu, a grelha feita de ramos de árvore verdes sobre a qual os índios Aruaque (de cuja língua provém «canibal», através da evolução ou confusão caribal→canibal), das Antilhas, assavam a carne. Está registada na língua inglesa logo no final do século XVII. Cristóvão Colombo, ao contactar com este povo, percebeu «caniba» em vez de «cariba» («corajoso» ou «selvagem», em aruaque), e «caniba» está muito próximo de «canis», cão em latim. Ora, canis fazia lembrar os Cinocéfalos, homens de um olho só e focinho de cão que devoravam os seres humanos. Assim surgiu o termo «canibal» conotado com a antropofagia. Há mais versões sobre a etimologia de «canibal», mas esta é a que me agrada mais.

1.3.06

Etimologia: Quaresma

Quarenta


      A Quaresma, sabemo-lo, começa hoje, Quarta-Feira de Cinzas, e termina no Domingo de Ramos. De onde vem esta palavra, «Quaresma»? Bem, «Quaresma» vem do latim quadragesima. Na verdade, é a abreviação de «quadragesima dies», que são os quarenta dias antes da Páscoa (se exceptuarmos os domingos). Assim, quadragesima era um adjectivo em latim. «Quadragesima die Christus pro nobis tradetur» (No quadragésimo dia, Cristo será entregue por nós). Foi no século IV que a Igreja adoptou a Quaresma como o período de seis semanas antes da Páscoa, num domingo a que se dá o nome de Domingo da Quadragésima. Em espanhol diz-se «Cuaresma», em francês, «Carême», em italiano, «Quaresima». Para os anglo-saxónicos a palavra é «Lent».
      Talvez a duração da Quaresma não passe de um simbolismo, pois que o número quarenta está muito presente na Bíblia. Vejamos: o dilúvio afectou a Terra por quarenta dias («Porque dentro de sete dias, vou mandar chuva sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei na superfície de toda a Terra todos os seres que Eu criei», Génesis, 7,3-4); Moisés esteve quarenta dias no deserto («Moisés entrou pelo meio da nuvem e subiu à montanha, e ali esteve Moisés durante quarenta dias e quarenta noites», Êxodo, 24,18); os exploradores enviados a Canaã por Moisés demoraram-se quarenta dias: («Ao fim de quarenta dias, regressaram de explorar a terra», Números, 13,25); os médicos empregaram quarenta dias no trabalho de embalsamamento do corpo de Jacob (« Ordenou aos médicos, seus servidores, que embalsamassem seu pai; e os médicos embalsamaram Jacob, empregando nisso quarenta dias, que são os dias precisos para o embalsamamento», Génesis, 50,2); Elias vagueou quarenta dias pelo deserto («Elias levantou-se, comeu e bebeu; reconfortado com aquela comida, andou quarenta dias e quarenta noites, até chegar ao Horeb, o monte de Deus», Livros dos Reis, 19,8); Jesus Cristo aparece aos Apóstolos durante quarenta dias, já depois da paixão («A eles também apareceu vivo depois da sua paixão e deu-lhes disso numerosas provas com as suas aparições, durante quarenta dias, e falando-lhes também a respeito do Reino de Deus», Actos dos Apóstolos, 1,3); Jesus ficou quarenta dias no deserto («Em seguida, o Espírito impeliu-o para o deserto. E ficou no deserto quarenta dias», Evangelho segundo São Marcos, 1,12-13).