31.3.09

«Bairros “sensíveis”»

Sensibilidades



      «A intervenção policial, de acordo com as informações oficiais da PSP, incidiu especialmente nos interfaces de transportes públicos, em alguns bairros “sensíveis” e nas áreas envolventes aos estabelecimentos de diversão nocturna» («PSP faz operação musculada para combater criminalidade», Paula Sanchez, Diário de Notícias, 29.03.2009, p. 23). Este eufemismo, «sensível», para designar os bairros de habitação social problemáticos começou a ser usado há mais de vinte anos em França, quartiers sensibles. Lá como cá, o adjectivo está carregado de conotações negativas. Em Portugal ainda se vai envolvendo, pudicamente, o adjectivo em aspas.


Insustentável


      «Na realidade, apesar de o sol poder conduzir aos mesmos efeitos nocivos, o solário “é mais pernicioso porque concentra raios ultravioletas do tipo A de altíssima intensidade, enquanto na luz do Sol são mais dispersos”, sustém o dermatologista» («ASAE fechou 132 solários que não cumpriam a lei», Sara Gamito, Diário de Notícias, 29.03.2009, p. 18). Não nego: são parecidíssimos. Ainda assim, uma jornalista tem a estrita obrigação de saber o que significa sustentar e o que significa suster. Se, durante a entrevista, o dermatologista tivesse sustido nas mãos a página de um dicionário com o verbete «suster», a jornalista poderia ter visto que significa: «segurar para que não caia, sustentar, amparar; fazer face a; fazer parar; alimentar, nutrir; refrear, moderar; manter-se, conservar-se; recuperar o equilíbrio, equilibrar-se; conter-se».

«Ex situ»/«in situ»

Latim

«As instalações de Silves, construídas pela Águas do Algarve ao abrigo das medidas de compensação relativa à barragem de Odelouca, vão integrar a rede destes centros ibéricos do programa de conservação ex situ da espécie (fora do seu habitat natural), que se iniciou em 2004, com a reprodução em cativeiro, em Espanha» («Lince-ibérico reintroduzido em Silves esta Primavera», Filomena Naves, Diário de Notícias, 29.03.2009, p. 66). Não é todos os dias que se vê esta locução latina, convenientemente explicada pela jornalista, na imprensa. Opõe-se à muito mais conhecida in situ, também usada no artigo: «“A verdadeira prioridade é a conservação in situ (no habitat natural)”, esclarece o investigador português [Rodrigo Serra].»

«Descobertas/Descobrimentos»

Imagem: http://www.licoresabadia.com/pt/

Até um licorista



      «Cristo-Rei, Ponte 25 de Abril, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Castelo de São Jorge, Padrão das Descobertas, Centro Cultural de Belém, Museu da Electricidade e os Paços do Concelho serão os pontos da capital que ficarão às escuras em prol daquela campanha global de alerta para a necessidade de adopção de medidas eficazes na luta contra as alterações climáticas» («Apagão global», Vera Mendão Costa, Visão, 12.03.2009, p. 96). Mesmo para quem passa ao lado da questão relativa à vernaculidade de «Descobertas», e são milhões, uma coisa é certa: o nome oficial do monumento é mesmo Padrão dos Descobrimentos. Até um licorista de Alcobaça sabe isso.

30.3.09

Acento diferencial: «pêra/pera»

Está no «etc.»

A propósito do vocábulo «pólo», que passará, em conformidade com as novas regras ortográficas, a escrever-se «polo», uma professora de Português perguntou-me ontem se o vocábulo «pêra» não iria sofrer as mesmas alterações. Respondi que sim. A dificuldade, replicou-me maliciosamente, é dizer qual a norma que o estabelece. Mostrei-lhe o texto do acordo e apontei para o artigo 9.º da Base IX (Da acentuação gráfica das palavras paroxítonas). Sim, mas onde está exactamente escrito, insistiu. No «etc.», respondi.
Faz parte da natureza humana tentar ignorar um problema, como se, agindo dessa maneira, o problema deixasse magicamente de existir. Não quero generalizar, mas parece-me que muitos professores de Português (e os das outras disciplinas?) estão tão preparados para usarem as novas regras ortográficas como a generalidade da população. Pesquisando melhor, porém, verifico que D’Silvas Filho também afirma, majestaticamente, num texto de análise ao novo acordo ortográfico, «não encontrámos no novo acordo referência às actuais grafias pêra e pêro, acentuados». Admito que, neste caso que conto, também está em causa alguma obtusidade e falta de cultura. O vocábulo «pêra» só é acentuado para o distinguir da preposição antiga «pera», razão por que o plural não é acentuado: peras.

Selecção lexical

Aquela base

«O seu estado [de Josef Fritzl, o “monstro de Amstetten”] de saúde mental será avaliado numa base anual» («Fritzl voltará a tribunal por mais quatro anos», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 20.03.2009, p. 26). Cada época, já aqui o escrevi uma vez, tem as suas manias, os seus modismos. Houve uma altura em que a palavra «base» estava, a propósito mas mais a despropósito, na boca de quase toda a gente. Esta redacção, «numa base anual», fez-me lembrar esses tempos. Quanto melhor não seria o jornalista ter escrito, por exemplo, isto: «O seu estado de saúde mental será avaliado anualmente.» Ou isto: «O seu estado de saúde mental será avaliado todos os anos.»

Sobre «cabouqueiro»

Pedreira em Borba. Imagem: http://abitpixel.files.wordpress.com/


Olhe que não


      «António Medeiros Alexandre define-se como “cabouqueiro”, o nome que em São Miguel, nos Açores, era dado aos homens que partiam a pedra com a ajuda de maços e picaretas» («Cabouqueiro parte pedra para os passeios da ilha», P. F., Diário de Notícias, 23.03.2009, p. 5). Escrito assim, até parece que se trata de um regionalismo. Nada mais errado. Em todo o País se dá o nome de cabouqueiro a quem extrai pedras de uma pedreira. Acrescenta o jornalista: «Faça chuva ou faça sol, e vem todos os dias (com excepção dos domingos e feriados) da Lomba de Santa Bárbara para a sua pedreira improvisada junto à praia.»
      Claro que há pedreiras e pedreiras. Nas pedreiras do chamado «Triângulo dos Mármores», Vila Viçosa-Borba-Estremoz, algumas com dezenas de metros de profundidade, uma das primeiras operações para a extracção dos blocos de mármore é a realização de um barrano, que é a perfuração que se faz na rocha e em que se introduz dinamite (e foi precisamente numa pedreira em Redhill, Surrey, Sul da Inglaterra, que Alfred Nobel fez em 1867 a sua primeira experiência com dinamite) que, explodindo, as faz rebentar; ao tiro dá-se o nome de barreno. Posteriormente, os blocos são desmontados e serrados, desbastados com fio diamantado que corre sobre polés. Ora, a esse buraco que se faz na rocha para a rebentar depois de se encher de pólvora também se dá o nome de cabouco, e ao trabalhador que o faz, cabouqueiro.



29.3.09

Etnias, povos e raças

Depende, não é?

      Entre outros aspectos, o uso da maiúscula não ficou bem explicitado no Acordo Ortográfico de 1990. Até já aqui vimos como em relação às raças, aos povos e às populações nada se diz. Vejam-se estes exemplos do Diário de Notícias para se perceber como muitas vezes os meios de comunicação não têm critério.
      «Na zona, é maioritária a etnia pastune, tradicionalmente dominante no Afeganistão» («Autoridades vencem batalhas mas há mais vítimas civis», Luís Naves, 16.07.2006, p. 13). «A visita de Rice incluiu o Curdistão e a representante americana defendeu que “o petróleo deve ser um recurso partilhado pelo conjunto do povo iraquiano”» («Casa Branca reafirma apoio a Al-Maliki», Luís Naves, 7.10.2006, p. 17). «O seu regime foi bastante violento, incluindo uma brutal purga em 1985, onde foram fuzilados vários dirigentes de etnia balanta» («Uma multidão comovida despediu-se de Nino Vieira», Luís Naves, 11.03.2009, p. 24). «O estudo utilizou pessoas do povo Mafa, um dos 250 grupos étnicos dos Camarões» («Linguagem da música parece ser universal», 22.03.2009, p. 37).
   Parece que não têm dúvidas sobre as etnias, mas já quanto aos povos, não sabem se obriga a maiúscula — e deviam saber. Pior do que ter um critério errado é não ter critério.

28.3.09

Sobre «farda»


Outrora

Não nasci a tempo de pertencer à Mocidade Portuguesa. Mas usei bibe na escola primária e não gostava nada. A pertença à Mocidade Portuguesa obrigava ao uso de farda, que se comprava a pronto ou a prestações. A farda, diziam os estatutos, era o uniforme de trabalho. Bivaque, camisa, cinto (com um s, fosse de «servir» ou de «Salazar»), calções e meias. Nem é por acaso que à farda se dá o nome de uniforme. Uniforme porque uniformiza, anula as características individuais, torna os membros todos iguais, mais facilmente controláveis. Curioso é que «farda» e «fardo» tenham o mesmo étimo árabe. E figuradamente, um fardo é um peso, algo que incomoda ou custa a suportar. Era objectivo da Mocidade Portuguesa fazer de cada membro um «português perfeito», seja isso lá o que for.

Uso da maiúscula

Lacunas

E a propósito de Portugueses e Galegos: D’Silvas Filho depreende que, no âmbito do novo acordo ortográfico, as raças, os povos e as populações não obrigarão a maiúscula em Portugal (os portugueses, os galegos). Eu depreendo exactamente o contrário. Como o texto do Acordo Ortográfico de 1990 não é explícito em relação a esta questão (ao contrário do Acordo Ortográfico de 1945), esta poderá ser mais uma questão que só o vocabulário ortográfico comum poderá e deverá esclarecer. Não se pode é argumentar, como fez um autor há dias em conversa comigo, que já agora pouca gente faz a distinção entre sentido geral, em que constituem verdadeiras formas onomásticas, e sentido particular, em que são meros substantivos comuns. É um argumento que invoca não a força do uso, mas a força da ignorância.

Sobre a dupla grafia

Falta o melhor

Enquanto não houver um vocabulário ortográfico comum, o Acordo Ortográfico de 1990 não terá uma aplicação sensata nem uniforme. Nos últimos dias, tenho visto como as confusões à volta do conceito de dupla grafia já vão fazendo estragos. Os falantes não se entendem e, ainda pior, os linguistas também não. Haverá dupla grafia quer no âmbito da língua portuguesa como um todo, ou lusofonia, como agora se diz, em especial na oposição variante brasileira/variante luso-afro-asiática, quer no âmbito mais restrito da mesma comunidade linguística. Assim, no âmbito mais alargado, no Brasil continuará a escrever-se, por exemplo, fato e recepção, o que corresponderá a facto e receção em Portugal. No âmbito da mesma comunidade, a oscilação de pronúncia relativamente às consoantes mudas c e p (cacto e cato, dicção e dição, sector e setor, etc.) também conduzirá a uma legítima dupla grafia. É assim errada a noção, largamente difundida, de que o novo acordo ortográfico permite uma ampla liberdade na grafia.
É decerto muito útil haver já uma nova edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras com as novas regras ortográficas. Até o podemos entender como um passo oportuno e mesmo decisivo para termos um verdadeiro vocabulário ortográfico comum, como exige o preâmbulo do acordo, mas a verdade é que são contributos como o da Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), que entregou na Academia das Ciências de Lisboa (ACL) um vocabulário com léxico comum a Portugueses e Galegos, que edificarão um vocabulário ortográfico comum. Falta agora o melhor: fazer-se esse vocabulário ortográfico comum que contemple todas as variantes e estabeleça as duplas grafias para cada país signatário.

27.3.09

Sobre «janela de oportunidade»


Contributos da ciência

A esta hora, deve haver criminosos a usar a expressão «janela de oportunidade». «Meu, quando tivermos uma janela de oportunidade, assaltamos aquela moradia no Restelo de que nos falaram aqueles bacanos ontem.» Janela de oportunidade não significa mais do que um breve período de tempo em que ocorrem particulares vantagens para fazer qualquer coisa. É a tradução literal do inglês window of oportunity, tendo começado a ser usada metaforicamente naquela língua, na década de 1960, na astronomia, passando depois à economia, estando agora na rua. (Não ainda nas ruas da amargura.) Na década de 1970, surgiu a locução window of vulnerability, que nunca vi traduzida para português.

26.3.09

Sobre «retaguarda»

Vade retro

Apanhados desprevenidos, muitos falantes não sabem se o vocábulo «retaguarda» tem ou não c. Certo, certo é que vejo a palavra inúmeras vezes incorrectamente escrita: «rectaguarda». Aconteceu agora mesmo, num texto de uma professora universitária (que não terá sido apanhada desprevenida…). Bem, talvez valha a pena esclarecer porque é que não tem c. O étimo é o espanhol retaguardia, com os mesmos significados. E este retaguardia provém de uma palavra, actualmente caída em desuso, em que o sentido de recto (como em «rectângulo») não está presente, que é retroguardia: de início, apenas a porção de uma força, de uma guarda, que avança em último lugar. Para tudo acabar bem, de acordo com as novas regras ortográficas, passar-se-á a escrever retângulo. Suspeito é que, daqui a vinte anos, muita gente ainda não saiba, como sucede com a regra da prioridade nas rotundas, que ainda não entrou na cabecinha de todos os automobilistas.

Sobre «pedigree»

Palavras bastardas

A etimologia é, não há qualquer dúvida, uma das áreas mais interessantes da língua. Acabei agora de ler que o duque de Saldanha (1790―1876) tinha «o necessário pedigree aristocrático e era um marechal do exército com fama de invencível». Pedigree é um vocábulo inglês e vem do francês pied-de-grue, que significa pata de grou. Antigamente, os criadores de cavalos marcavam os animais com três segmentos de recta alinhados de tal forma (em leque aberto) que pareciam as patas de um grou, ave encontrada em planícies e zonas pantanosas de quase todo o mundo.
A. Tavares Louro, consultor do Ciberdúvidas, sugere que, equivalendo o termo a genealogia, linhagem ou ancestralidade, «algumas pessoas podem ter relutância em usar estes vocábulos relativamente aos animais e, por isso, optam por uma palavra estrangeira». O que bem pode ser verdade. Curioso é que depois se vá buscar o termo — nesta acepção, completamente desnecessário — precisamente para referir a linhagem de determinada personagem.

Sobre «criatura»

Boa acepção

Na catequese, ouvíamos falar das criaturas de Deus, todos os seres criados. Em casa, ouvíamos falar, em especial depois de alguma travessura, em criaturas do Diabo. Mais tarde, ouvimos falar de outras criaturas. Leio agora que o governador do castelo de Lisboa era uma criatura do duque da Terceira, ou seja, dependia do duque. Hoje em dia, não faltarão criaturas de Sócrates. E, por causa das hierarquias, ainda mais criaturas de criaturas de Sócrates. Depois das eleições, as criaturas mudam. Andamos assim desde o século XIX.

Sobre «real»


Na real gana

Em 1834, a rainha D. Maria II enviou ao Porto o coronel João Ferreira Sarmento com uma carta para a Junta Provisória escrita «pelo seu real punho», noticiava a imprensa da época. Palavras evocam palavras: ao ler «pelo seu real punho», lembro-me logo do Paço do Lumiar. Há ali um, muito bom, restaurante chamado Tertúlia do Paço. Mais expressivo ainda, o Real Colégio de Portugal, que pertence ao Grupo Lusófona, também tem sede ali e decerto que o qualificativo advém somente da localização. Mais monárquico será a Real Funerária, também na zona, que até faz desconto a militantes (com as quotas pagas?) do Partido Popular Monárquico, um irrecusável incentivo a deixar-se morrer mais cedo. Numa república, tudo o que for ou aparentar ser monárquico será, no mínimo, alvo de atenção. As palavras têm um valor conotativo efectivo, real.

«Antirreeleição»


Para espantar?

Escreve o leitor Paulo Araujo que tem notado que os jornais brasileiros, parece que propositadamente, estão agora a usar palavras que sofreram alteração ortográfica com o Acordo Ortográfico de 1990, «talvez até por pedantismo», suspeita «mas isto tem um sentido educativo muito importante; as pessoas acabam aprendendo sem se preocuparem de estudar o assunto». A imagem mostra uma manchete de uma notícia no Estadão de hoje, em que se pode ler «um palavrão (apenas no tamanho), mas recomendo ao leitor malévolo para buscar a acepção correta de “racha” para esse contexto». Já aqui tínhamos visto a mesma acepção para esta palavra: cisão de um grupo político, de um partido. Para os Brasileiros como para nós, «racha» também é a vagina, mas é vocábulo que quase não vejo ser usado.
A imprensa pode ter realmente um papel muito importante na rápida assimilação das novas regras ortográficas, muitas vezes até forçando a nota. É pedagógico, sim.

25.3.09

Nomenclatura científica


Ainda não é desta

      No texto principal, «Penas e dinossauros evoluíram juntos» (Diário de Notícias, 19.03.2009, p. 31), a jornalista, Susana Salvador, nunca deixou de grafar correctamente os nomes científicos dos dinossauros: Sinosauopteyx prima e Tianyulong confuciusi. No texto de apoio, que se reproduz acima, o nome científico do dinossauro referido nunca é bem grafado. Não é nenhuma excepção, senhora jornalista: escreve-se Tyranossaurus rex. T-rex, para os amigos.

24.3.09

Acordo Ortográfico

Não ficamos em branco

Um acordo ortográfico, qualquer que seja, não é uma lei que se destine a ter vigência temporária, pelo que só deixa de vigorar se for revogado por outra lei. Ora, se o Acordo Ortográfico de 1990 não contém nenhuma norma revogatória expressa, a revogação das regras ortográficas que ainda nos regem só pode resultar ou da incompatibilidade com as novas disposições ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior. As perguntas que se impõem são: o novo acordo ortográfico regula toda a matéria anterior? Se não regular, e creio que não regula, que podemos fazer? Em meu entender, como acontece noutros domínios regulados juridicamente, continuarão em vigor as disposições precedentes. Ainda não li nenhuma opinião neste sentido.

Ortografia: «fotobiobibliografia»


Não queriam mais nada

Vamos ver se nos entendemos. Há o vocábulo «biobibliografia», não é assim? Também há o vocábulo «fotobiografia», não é verdade? Então parece que temos de escrever «fotobiobibliografia». Parece-me que os responsáveis pela concepção deste cartaz deviam saber, pois as bibliotecas municipais de Lisboa têm, por exemplo, a obra Miguel Torga: fotobiobibliografia, da autoria de José de Melo e publicada em 1995 pela editora Estante, de Aveiro. Mais um caso de amnésia linguística...

Léxico: «marca»

Passar das marcas

O vocábulo «marca» é — já tinham reparado? — um dos mais polissémicos na nossa língua. Aprendi agora que no século XIX se dava o nome de marcas à horda de maltrapilhos que aproveitavam para dormir na tarimba dos quartéis, e que a troco de dinheiro faziam o serviço em lugar de gente graúda que pretendia eximir-se a ele.

Uso de estrangeirismos. «Vocal»

E instrumental?

      E o autor escrevia que «o grupo dos “ordeiros” se tornava cada vez mais vocal». Já vimos este vocal aqui. Nem sempre o contexto ajuda o leitor a perceber de que se trata, o que parece não tirar o sono aos autores. Vocal, escrevi então, poderá traduzir-se, por exemplo, por «que se faz ouvir»: «o grupo dos “ordeiros” que se fazia cada vez mais ouvir». Isto é português, é compreensível.

23.3.09

Léxico: «chamorro»

Bons ventos...

Voltemos ao século XIX, em que ficámos ontem. Como sempre acontece quando há confronto, inventam-se e refrescam-se termos com que se pretende ofender os adversários. Com a outorga da Carta Constitucional por D. Pedro IV (1798-1834) e a sua vinda para Portugal, em pleno «reinado da frase e do tiro», como lhe chamou o historiador Oliveira Martins, à volta do primeiro imperador do Brasil juntaram-se vários homens, os chamados «amigos de D. Pedro», mais tarde apodados de chamorros. O termo «chamorro» já tinha sido usado pelos Castelhanos no século XIV para referir depreciativamente os portugueses, por estes usarem a cara rapada e o cabelo curto. Chamorro significa, em espanhol, «tosquiado», e aplica-se mais facilmente a uma ovelha do que a homem.

Os prefixos co- e re-


Como se comporta a ABL



      Salvo para afirmar, na Base II, n.º 2, b), que o h inicial é suprimido quando, por via de composição, passa a interior e o elemento em que figura se aglutina ao precedente (reabilitar, reaver), nunca o Acordo Ortográfico de 1990 refere o prefixo re-, mas nem mesmo a omissão deixou a salvo a regra que tradicionalmente se observa. É sobre esta questão que versa o artigo acima do Prof. Evanildo Bechara. A questão é tanto mais importante quanto a 1.ª edição do dicionário escolar da própria Academia Brasileira de Letras (ABL), lançado em Outubro, «agasalhou» o erro, de que saiu uma errata no sítio da ABL. A 2.ª edição deste dicionário corrigiu, mas errou, conforme escreve o leitor Paulo Araujo, «o que estava certo (cri-crilar e zi-ziar em vez de cricrilar e ziziar, mas cri-cri e zi-zi-zi continuam, sob a justificativa de que os nomes onomatopeicos têm hífen, tradicionalmente), ou seja, a errata acertou mas errou. Devia haver o termo “acertata”, para nomear esse tipo de barbeiragem [erro cometido por profissional, decorrente de descuido, inabilidade ou incompetência, no exercício do seu trabalho]». Agora, o Volp não acolhe este erro, que também alguns dicionários portugueses difundem.

22.3.09

«Governo pasteleiro»

Outras fusões

Entre 1834, termo da guerra civil entre liberais e miguelistas, e 1851, ano do pronunciamento militar da Regeneração, imperou largamente a violência política no País, legado perdurável da Revolução Francesa de 1789. Alguns políticos, de que Rodrigo da Fonseca (1787-1858) foi um dos expoentes, procuraram evitar a ameaça por meio de concessões, que se esperava que esvaziassem de conteúdo as reivindicações dos adversários e satisfizessem as ambições pelo menos de alguns deles. Era a táctica dos governos chamados «pasteleiros», a partir dos versos jocosos que então estavam na boca do cidadão comum: «Um pasteleiro queria/fabricar um pastelão/e, porque tinha de tudo,/deu-lhe o nome de fusão.» Aos esforços de agradar às clientelas, dava-se o nome de «pastelarias».

Léxico: «cisionista»

Dá que pensar

Embora o termo «cisão», na acepção de divisão de uma agremiação, de um partido, de uma sociedade, de uma doutrina, etc., se aplique em qualquer área ideológica, parece que são quase exclusivamente os comunistas que usam o adjectivo «cisionista», que nenhum dicionário regista. Do anarquista Bakunine ao mais cordato zé-ninguém, muitos têm sido os indivíduos acusados de «actividade cisionista».

Léxico: «heminegligente»


Pela metade

Conheci ontem um novo vocábulo: «heminegligente». É a tradução do francês héminégligent e pertence ao jargão da neuropsicologia, designando o paciente que, na sequência de uma lesão parietal do hemisfério direito, ignora tudo o que se passa no seu lado esquerdo, ignora metade do seu universo. Sobretudo no campo da terminologia da medicina, há outras coisas pela metade: hemiagnosia, hemialgia, hemicrania, hemianestesia, hemianopsia, hemiopia… Contudo, o hemi- de que mais se fala, sobretudo nos meios de comunicação social, é o hemiciclo, o Parlamento.

Plural de «viés»

Não me parece

O autor terminava a frase escrevendo que a manipulação linguística «acaba por criar em qualquer indivíduo bem-intencionado um mundo mental onde os viés são poderosos». Não contesto a verdade da afirmação — só a gramática. Convenho: «viés» não é palavra de todos os dias. Por isso mesmo, o autor devia ter consultado um dicionário ou gramática. O plural de viés é vieses, como o de revés é reveses. Não é como lápis, que é invariável: um lápis, duzentos lápis.

21.3.09

À volta de «alunagem»

Sem perigo

Há almas cândidas que se vão preocupando já com o que vai acontecer quando naves espaciais pousarem nos planetas Vénus, Plutão, Saturno e todos os outros. É que na Lua as naves alunaram… Essas almas cândidas, contudo, que se calhar nunca embarcaram num navio, dizem que o fazem num avião, num comboio… Valha-nos a catacrese, que é o nome que se dá ao uso de um termo figurado por falta de termo próprio. Se aterramos na Terra, talvez também o possamos fazer, sem perigo para ninguém, na Lua, em Marte, em Neptuno…

Actualização em 23.05.2009

«A agência espacial norte-americana, NASA, está a preparar uma nova missão à Lua. O objectivo é encontrar água e locais adequados à alunagem — duas condições essenciais para planear o regresso dos seres humanos àquele planeta e uma eventual colonização» («Procurar água e locais para novas alunagens», Patrícia Jesus, Diário de Notícias, 23.05.2009, p. 39).

Concordância verbal

A seita

Imaginem, se não custar muito, esta frase: «Nada nem ninguém, nem sequer os entes mais queridos, conseguiam persuadi-lo a abandonar a seita.» Com tantos «nem», podemos ficar obnubilados, mas, passado um bocado, indagamos que faz ali aquele plural, «conseguiam». Parece muita coisa e muita gente, mas talvez o verbo no singular seja o mais adequado. As gramáticas que consultei não contemplam este tipo de construção com pronomes indefinidos. Para já, esqueçamos o segmento «nem sequer os entes mais queridos», que, mais do que não adiantar, atrasa a análise. Sobra isto: «Nada nem ninguém conseguiam persuadi-lo a abandonar a seita.» Se tivermos uma enumeração quilométrica cujo último termo seja «nada», o verbo vai para o singular. Se tivermos uma enumeração quilométrica cujo último termo seja «ninguém», o verbo vai para o singular. Sendo assim, porque é que a construção «nada nem ninguém» levaria o verbo para o plural? É que não são substantivos, lembrem-se.

«Pegada de carbono»

Imagem: http://bioplasticnews.blogspot.com/

Pensem bem

Poucas vezes se adoptou, traduzindo, tão rapidamente uma palavra ou expressão do inglês como aconteceu com carbon footprint. Sem contestação nem estranheza. O pior, e o que motiva este texto, é que muitos jornalistas a usam sem a explicarem. Isso é um erro. A pegada de carbono, deviam esclarecer, é a medida do impacto das actividades humanas sobre as emissões de gases com efeito de estufa, ou seja, representa a quantidade de dióxido de carbono equivalente libertada na realização de cada actividade do nosso dia-a-dia.

20.3.09

Porquê «Serra algarvia»?

Alto conceito

Se se aceitasse, à luz das regras que nos regem, que se escrevesse Planície alentejana, Lezíria ribatejana, Sertão brasileiro e Tundra siberiana, por exemplo, então sim, também teria de se aceitar Serra algarvia. O que acho é que é mais um caso de uso arbitrário da inicial maiúscula (a «letra grelada» a que se referia o poeta António Feliciano de Castilho). Juizinho.

Actualização em 22.05.2009

Nos jornais, por vezes escrevem correctamente: «Para os mais experientes ou determinados, os 240 quilómetros da Via Algarviana, que faz a ligação pedestre entre Alcoutim e o cabo de São Vicente, serão o desafio a não perder, sobretudo se estão interessados em conhecer melhor a serra algarvia» («Caminhando pelos trilhos de Portugal», Liliana Duarte, Público, 22.05.2009, p. 42).

Principal Sousa, de novo

Populares?




      Afinal, D. José António de Meneses e Sousa Coutinho é mais parecido ao inspector Varatojo, por exemplo, do que a Che Guevara — principal Sousa se deveria ter escrito. Pus-me a reler Felizmente Há Luar! e leio esta fala de Beresford: «Sim, também aqui se pode sair a cavalo, mas os prados são secos, Excelência, e as árvores tão entisicadas que parecem ter sido todas plantadas pelo principal Sousa…» (Porto: Areal Editores, 2003, Acto I, p. 57). E vejo coisas curiosas. Manuel, uma personagem popular, pergunta: «Que é isto?» Talvez por ser «o mais consciente dos populares». Mas também Vicente, «um provocador em vias de promoção», pergunta: «Que me quer ele?» E Beresford: «Excelências: não vim aqui para perder tempo com conversas filosóficas. Venho falar-lhes de coisas mais sérias» (p. 41). Sttau Monteiro sabia escrever. Demasiado bem, talvez.


O valor de ex-

Xelente actor

Há muito sei que a noção de que ex- vale eis se vem perdendo, mas ainda vou ficando surpreendido. Ontem, o Pascoal (João Didelet) da Floribella servia, no seu Chá de Letras, uma chávena de leite com mel à mãe do seu futuro filho, argumentando que o café que ela queria lhe faria mal, porque «toda a gente sabe que o café é /xitante/». Ainda se para a composição da personagem fosse necessário falar deste modo, vá lá. No blogue da série, a personagem é apresentada como tratando «os livros como se fossem seus filhos e faz questão de vigiar de perto quem os compra, recusando-se mesmo a vender livros a certas pessoas, se não lhe agradam». De alguém assim, esperava-se que não atropelasse a língua. E o actor, não teve lições de dicção?

Novas regras ortográficas

Depois do Acordo Ortográfico

Vai ter de chegar lá por analogia, como em inúmeras situações, cara Luísa Pinto. Se antes escrevia (espero!) «anti-semita» e com o Acordo Ortográfico de 1990 vai passar a escrever «antissemita», da mesma forma passará a escrever «antissalazarista», porque antes escrevia «anti-salazarista» (espero!). Anti- só se ligará por meio de hífen ao segundo elemento quando este começa por h (anti-higiénico), por r ou s (antirreligioso, antissemita) ou por i (anti-ibérico).

19.3.09

Conversão de unidades de medida


Não se convertem


      «Espremeu uma delas e saiu uma libra de sumo; o sabor era de mel.» É assim, sob o signo de S. Brandão, na Navigatio Sancti Brendani, que começo este texto para manifestar mais uma vez a minha estranheza por alguns tradutores deixarem para alguém — já adivinharam quem — a tarefa de converter unidades de medida que nos são estranhas. Que sentido faz, por exemplo, não converter graus Fahrenheit? Acho que até já vi a indicação em graus Réaumur! É claro que há técnicas de conversão facílimas, mas hoje em dia até alguns telemóveis têm conversores. A Internet tem conversores. Usem-nos.

Ortografia: «microespaço»

Os pseudoprefixos


      O leitor A. M. L. pergunta-me como se deve escrever: «micro-espaço» ou «microespaço». Bem, não o escreveu, mas quem sabe se não ponderou também a hipótese de se escrever «microspaço». Sim? O Acordo Ortográfico de 1945, agora na pré-reforma, estabelece que com o elemento micro- nunca se usa o hífen. O problema, contudo, é que a par de «microempresa», por exemplo, temos também dicionarizado e vai-se usando «microsfera»…
      Esta parte da língua não é propriamente um locus amoenus, um lugar ameno. A Base XVI, 1.º, b) do Acordo Ortográfico de 1990 estabelece que apenas se usa hífen «nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento: anti-ibérico, contra-almirante, infra-axilar, supra-auricular; arqui-irmandade, auto-observação, eletro-ótica, micro-onda, semi-interno». Assim, inequivocamente, microespaço.

Frases negativas

Partículas desconsagradas

Cruzei-me ontem na rua com duas mulheres, e uma delas ia contando: «Dizia ela: “Eu já não disse que eu é que sou a professora?”» Se a citação era fiel, estamos mal — ou estão mal os alunos da referida professora. Esta é mais uma área problemática da língua portuguesa. Em frases negativas, alguns, muitos, falantes (que o meu preconceito [se fosse sociolinguista, certeza científica] logo estabelece como pertencendo a certo estrato social) não sabem onde encaixar certas partículas. E por ali ficam elas, ao deus-dará.

«Volp»


Ei-lo


      O Assim Mesmo esteve ontem presente, por interposta pessoa, na palestra de Evanildo Bechara na Academia Brasileira de Letras. O leitor Paulo Araujo assistiu e pôde comprovar como aquele filólogo, responsável pela equipa que reviu o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, garantiu, «com muita ênfase, que todo o trabalho foi feito no estrito cumprimento da letra do Acordo e mais, onde ficou margem a dúvida, ou não está especificamente citado, ou não se enquadra nas regras, ainda assim valeu a tradição do Acordo de 1945, que o Brasil não adotou na época, mas agora, ironicamente, rende-se ao que ali foi estatuído. Portanto, ao que me parece, será aceito em Portugal, sem objeções».
      Como podemos ler no artigo do Estadão, enviado por Paulo Araujo, para o professor de Português e lexicógrafo da Academia Brasileira de Letras Sérgio Pachá, o vocabulário está a ser visto como um Messias. Para nós, será, suspeito, um D. Sebastião.

18.3.09

Principal Sousa

Próxima paragem

      Não ouvi, como sucedeu com Santo Agostinho, uma voz dizer-me «tolle, lege, tolle, lege!», mas foi o que fiz. Apanhei a folha A4 e pus-me a lê-la. Não tinha cabeçalho, mas era parte de um teste de Língua Portuguesa (12.º ano?). Uma das perguntas era porque se dava a D. José António de Meneses e Sousa Coutinho o nome de Principal Sousa. (Tão importante, suponho, do que saber porque a Ernesto Guevara se chamava Che…) O nome estava adormecido na memória e lera-o, decerto, no Felizmente Há Luar! de Sttau Monteiro. Mas porquê Principal Sousa foi uma pergunta que só não me deixou emudecido porque eu estava calado, como normalmente estão calados dois desconhecidos numa paragem de autocarro.
      A personagem pertencia, isso é certo, ao clero, que representava na Regência. E o termo eclesiástico «principal» designa o superior de uma comunidade religiosa. Será por isto? É o que se me afigura plausível. No caso, não só era principal, como estava entre os principais (outra acepção, esta no plural): pessoas importantes ou influentes numa dada sociedade. Sendo irmão de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, 1.º conde de Linhares e ministro de D. João VI, e do conde do Funchal, Domingos de Sousa Coutinho, embaixador em Londres, que negociou a ajuda inglesa contra os Franceses, pertencia ao escol.


«Continente Negro»

Sem desculpa

      No dia 14 de Fevereiro de 2008, às 9.30, um locutor da NPR, um operador público de rádio nos Estados Unidos, afirmou que o presidente Bush estava no «dark continent». Uma hora mais tarde, o locutor pedia desculpa por ter usado a expressão. Dois dias depois, o próprio sítio da rádio na Internet referia-se ao caso, concluindo: «This was totally inappropriate and offensive, and we apologize for allowing such an antiquated and pejorative term to air.» Bem, inadequada ou não, usa-se. Ainda ontem, no Diário de Notícias, num texto assinado por Helena Tecedeiro sobre a visita do papa a África, se podia ler: «Bento XVI no continente negro». A meu ver, o Diário de Notícias devia era pedir desculpa por escrever incorrectamente. Tratando-se de um prosónimo, tem de se grafar com maiúscula inicial: Continente Negro.

17.3.09

«Sorte de gaiola»

Imagem: http://forcadosdemontemor.com/

Azar da sorte




      Pelo menos uma vez já aqui abordei o léxico da tauromaquia. Hoje é a vez de assinalar o uso da locução «sorte de gaiola», usada hoje na imprensa. Um elemento do Grupo de Forcados de Portalegre foi violentamente colhido por uma vaca, durante o treino do grupo no fim-de-semana, em Arronches, e faleceu ontem. «O jovem encontrava-se em estado muito grave desde que no sábado foi colhido por um touro. Francisco, há quatro anos naquele grupo de forcados, ensaiava uma pega em “sorte de gaiola” (tentativa de pegar a vaca mal esta saísse dos curros), quando sofreu o acidente e foi violentamente projectado contra a parede da Praça de Toiros» («Forcado de 25 anos morre depois de colhida», Diário de Notícias, 17.03.2009, p. 14).


Ensino de Português

Regresso ao trivium


      Portugal é o país da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) com menos horas de língua materna (três horas por semana) segundo o presidente da Associação de Professores de Português, Paulo Feytor Pinto. Isto explica muita coisa. Explica quase tudo, na verdade. Acabo de ler no Diário de Notícias que esta associação «vai pedir hoje no Parlamento mais horas para o ensino da língua materna, sugerindo também o desdobramento das turmas nas aulas de gramática e produção escrita» («Mais português», Diário de Notícias, 17.03.2009, p. 14). Ainda regressamos ao trivium, o sistema medieval da organização dos conhecimentos, e não ficaríamos mal servidos: na Gramática estudavam-se os mecanismos da língua; na Dialéctica, os mecanismos do pensamento, da análise e da mensagem; na Retórica, estudava-se a arte de usar a linguagem para persuadir e instruir. É inacreditável, por exemplo, como as licenciaturas em Direito não têm uma cadeira de Retórica. Não sabem escrever, não sabem falar… «Peço justiça.»


Plural de «córtex»

Cérebro dividido

aqui referi o plural de palavras como «tórax» e a solução dada pelo Acordo Ortográfico de 1990. Contudo, depois ter abordado aqui a questão do plural da palavra «dúplex» (e aludi mesmo à palavra «córtex»), fiquei ainda mais convencido de que o desentendimento dos linguistas é insanável. Ontem revi um texto em que se falava de alguém «a quem se cortaram as conexões entre os córtex esquerdo e direito». Neste caso, a solução não podia ser outra: a forma culta do plural de córtex seria córtices. O texto do novo acordo ortográfico não veio, infelizmente, preconizar soluções mais lógicas neste campo.
Os anglo-saxónicos também não se entendem completamente: uns, talvez a maioria, afirmam que «the plural of cortex is cortices»; outros, que é cortices ou cortexes. Só nos resta tomar uns ataraxes ou uns xanaxes e esperar que nem os componentes nem os plurais nos façam mal.

Léxico: «mecatrónica»


Esta aparece

«Frederico “tropeçou” por acaso no curso profissional de mecatrónica, mas o colega Bruno assume ter escolhido a área porque lhe garante emprego. Juntos, formam uma das duas equipas que disputam no Campeonato Nacional das Profissões a prova de mecatrónica — profissão pluritecnológica que implica o domínio de áreas como electricidade, pneumática, electrónica e mecânica — que, num modelo também pouco habitual nos campeonatos, será disputada em equipa» («Prova de mecatrónica é novidade», Diário de Notícias, 9.03.2009, p. 34). A definição é ilustrada pela imagem acima, que pertence ao sítio da Universidade de Évora e que, concretamente, aparece na área da licenciatura em Engenharia Mecatrónica. O termo «mecatrónica» vem do inglês mechatronics (de Mechanical and Electronics [Engineering]). Já aparece registado em alguns dicionários.

16.3.09

«Mundividência» ‘vs.’ «mundivivência»

Dicionários mundificados


   Quantas palavras não se usam diariamente sem estarem registadas em dicionários! «Mundivivência» é uma delas. Tanto quanto sei, nenhum dicionário a regista. Há quem creia mesmo, ignorando os elementos de composição de ambos os vocábulos, que está em vez de «mundividência». A mundividência ou mundivisão (e em espanhol também se diz mundivisión) é a visão, a concepção, que uma determinada pessoa tem do mundo. A mundivivência é a vivência do mundo, a experiência que se tem do mundo.



Léxico: «chancas»

Imagem: in Público/P2, 6.03.2009, p. 2

Muito teológico

Pouca gente já conhecerá o termo (o significado) «chancas», principalmente porque o próprio objecto (o referente) só se encontra actualmente em museus. Eu próprio nunca vi umas chancas na minha vida, excepto em imagens. Lembro-me é de a minha mãe usar a expressão «entrar de chancas». As chancas são uma espécie de calçado com base de madeira, pelo que quem andar assim calçado não entrará de mansinho onde quer que seja. O vocábulo «chanca» vem do latim planca, «tábua», que também originou «prancha». A tábua de salvação teológica de Tertuliano era uma planca: planca post naufragium. O naufrágio, entenda-se, que é a perda da graça. Há duas tábuas de salvação: a primeira é o baptismo e a segunda, a penitência.

15.3.09

«Pessoa humana»

Qual pleonasmo! Asno

      Não faltam, por essa lusofonia afora, ignorantes que achincalham quem usa a expressão «pessoa humana». Trata-se de um conceito técnico-jurídico largamente usado noutras áreas, como na religião e na filosofia. Qualquer participante dos cursilhos de Cristandade a conhece. No fundo, o conceito serve para distinguir entre pessoa física (eu, o leitor) e pessoa jurídica (uma empresa), ambas sujeitos de direito. Não faltam exemplos de formas de dizer peculiares de certas áreas do saber que extravasam do seu âmbito original de uso.

Plural de «duplex»

Zona pantanosa

«Há duplexes por 15 mil euros, T3 por dez mil» («Venda de casa sem papéis na origem de confrontos», Licínio Lima, Diário de Notícias, 10.03.2009, p. 19). Ora cá está um caso de dupla grafia: dúplex e duplex. Qual dupla. Tripla grafia! Duplex, dúplex, dúplice. Claro que esta última não se usa para referir o apartamento de dois pisos. Já aqui abordei uma vez o plural das palavras terminadas em -x. Não é uma questão pacífica. Celso Cunha e Lindley Cintra asseveram: «Como os paroxítonos terminados em -s, os poucos substantivos terminados em -x são invariáveis: o tórax — os tórax, o ónix — os ónix» (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 3.ª edição, 1986, p. 185). Os dicionários, porém, seja para as formas paroxítonas (córtex, clímax…), seja para as formas oxítonas (telex, fax…), apresentam uma lição diferente. A forma culta do plural de duplex seria dúplices, mas ninguém a usa.

«Meio», advérbio

E a gramática?

Há muita gente (com os tradutores à cabeça), na ignorância, a seguir a lição camoniana: «Huns caem meios mortos…» (Os Lusíadas, III, 50). Ontem foi a vez da tradutora Mafalda Abreu, num trabalho para a Moviola: «Caso não tenhas reparado, estes tipos são meios doidos» (O Resgate do Papá, Disney Channel). É claro que muitos professores também ignoram as regras da gramática — e ninguém pode dar o que não tem.

14.3.09

«Offshore» e «paraíso fiscal»

Porque não?

«O Parlamento Europeu (PE) aprovou ontem, em Estrasburgo, um relatório da deputada socialista Elisa Ferreira sobre o plano de relançamento da economia europeia, com uma referência à necessidade de combater os offshores, ou paraísos fiscais» («PE aprova relatório de Elisa Ferreira sobre ‘offshores’», Diário de Notícias, 12.03.2009, p. 15). Essa é que era uma boa solução: os jornalistas passarem a escrever «paraíso fiscal» em vez de offshore. Tanto mais que alguns escrevem a palavra incorrectamente, com hífen. Espantoso mesmo é o Livro de Estilo do Público sugerir esta grafia.

Festa de Purim


Perguntem a Mardoqueu

«O Festival do Purim relembra a perseguição aos judeus na antiga Pérsia» («Dia de festa em Israel», Diário de Notícias, 12.03.2009, p. 56). Um festival é uma grande manifestação musical ou então um espectáculo ou série de espectáculos artísticos ou desportivos. Será o caso? Vêem Festival of Purim em inglês e vá de copiar. O Livro de Ester, que faz parte do Antigo Testamento, fala na festa de Purim (ou das sortes): «Os judeus comprometeram-se a fazer aquilo que já tinham começado e que Mardoqueu lhes escrevera: que Haman, filho de Hamedata, o agagita, opressor dos judeus, resolvera exterminá-los e lançar-lhes o “pur”, isto é, a sorte, para os exterminar e destruir; mas, quando Ester se apresentou diante do rei, este ordenou, por escrito, que o maligno projecto tramado contra os judeus recaísse sobre a cabeça do seu autor e que este e seus filhos fossem suspensos na forca. É por isso que eles chamam a esses dias Purim, da palavra “pur”» (Est 9, 23-25).

Uso do hífen

Qual a diferença?


      «Outras compotas, sem corantes nem conservantes, têm como base a pêra rocha, o limão ou os frutos silvestres, entre mais de vinte variações» («O sabor da maçã reineta», Carla Maia de Almeida, Notícias Magazine, 8.03.2009, p. 14). O que me pergunto é o que falta à pêra rocha (ou à maçã reineta, naturalmente) para se poder considerar que constitui uma unidade semântica ou uma aderência de sentidos, requisito exigido pela Base XXVIII do Acordo Ortográfico de 1945 para se usar o hífen. (No texto do Acordo Ortográfico de 1990, a regra ainda é mais clara, como já aqui referi.) É que na página 16 do suplemento «Terra do Nunca» da mesma revista lê-se foca-comum e leões-marinhos.

Léxico: «charango»

Imagem: http://chezmojo.com/

Quase certo


«No dia 11 de Março de 2006, precisamente há três anos, Evo Morales ofereceu a Condoleezza Rice um charango andino com folhas de coca imbutidas, no final de uma reunião de 25 minutos» («Guitarra de coca oferecida a rice», Patrícia Viegas, Diário de Notícias, 12.03.2009, p. 25). Já conhecíamos a charanga, agora ficámos a conhecer o charango. O inestimável Houaiss regista o verbete: «charango s. m. MÚS instrumento andino de cordas dedilhadas.» Percebemos logo o deslize da jornalista: se há charangos somente nos Andes, não é necessário escrever «charango andino». É redundante.
A definição do Diccionario de Lengua Española da Real Academia Espanhola é, naturalmente, muito mais completa: «charango m. Instrumento musical de cuerda, usado especialmente en la zona andina, parecido a una pequeña guitarra de cinco cuerdas dobles y cuya caja de resonancia está hecha con caparazón de armadillo.»
Quanto a «imbutidas», deve dizer-se que, de facto, para muitos vocábulos existe a variante im/em, mas não é o caso. Apenas se regista a grafia «embutido», de «embutir».

13.3.09

«Assimptota» ou «assímptota»?

Haverá escolha?

Caro F. F: o mais razoável será porventura admitir, como fazem alguns autores, que estamos perante uma dupla grafia: assimptota/assímptota. Como, por exemplo, álcali/alcali. Temos é de proceder em conformidade: se escrevermos assimptota, não podemos lê-la como sendo esdrúxula; se escrevermos assímptota, não podemos lê-la como grave. Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa, lembro, regista-a como grave.

Apelidos compostos

Todo compostinho

Se quisermos saber o que é um apelido composto, é escusado visitar fóruns de genealogia na Internet. Os frequentadores também não sabem. O pouco que é referido, mesmo em prontuários, sobre a matéria diz respeito às citações bibliográficas, e a informação é escassa: limita-se a dizer que se o autor se chamar Camilo Castelo Branco, por exemplo, se deverá escrever Castelo Branco, Camilo. É pouco.
Há, contudo, uma carta do director-geral dos Registos e do Notariado, datada de 2001, elucidativa. Lê-se nela: «Somente quando uma família adoptou por seu apelido um nome de lugar, de santo ou um cognome que já eram vocábulos compostos antes da denominação eles podem ser contados como uma unidade.» Assim, se um homem chamado António Sá se matrimoniar com uma senhora chamada Leonor de Mello, por exemplo, os descendentes não podem reivindicar ter um apelido composto: Mello Sá, ou Mello e Sá ou Mello-Sá. Nada disso. Mas também isto diz a carta do director-geral: «Não é processo legítimo, equiparável a estes, a classificação como vocábulo gramatical composto de grupos de apelidos que se encontraram por via de casamento e que não constituíam vocábulo composto no momento da denominação inicial.» A carta também tem listas exemplificativas. Assim, há apelidos compostos originados de topónimos, como Vilas Boas, Vila Nova (ou Vilanova), Castelo Branco (ou Castelbranco), Vila Real, Vila Verde (ou Vilaverde), Vila Franca, Vila Lobos (ou Vilalobos), Rio Tinto (ou Rio-Tinto), Rio Torto, Val-Flores, etc. E também há apelidos compostos originados de nomes religiosos, como Espírito Santo, San Payo (ou Sampaio), São-Bento, Santa-Ana (ou Sant’Ana ou Santana), Santa-Clara, etc. Como também há apelidos compostos originados de alcunhas, como Alva-Rosa, Boa Morte, Pé-Curto (ou Pécurto), Todo-Bom, Sim-Sim, Boa-Alma, etc.
Diz ainda a carta: «Ao falar em “vocábulo gramatical [composto]”, “nome próprio” e “apelido”, a lei recorre a terminologias e conceitos da gramática. Assim, a apreciação do nome do cidadão português tem de ser feita de uma perspectiva linguística, e não cultural, religiosa, histórica ou genealógica (embora a possibilidade de ser escolhido um apelido que os pais não usam, mas a que têm direito, careça de demonstração de tipo genealógico).» Termina a carta: «Poderá contrapor-se que certas personagens históricas têm a capacidade de soldar os seus apelidos numa única unidade lexical, transmissível aos descendentes. Assim será numa perspectiva histórica ou cultural. Mas a linguística, que fundamenta a lei, encara o problema diferentemente, como se viu. E se, por hipótese, o debate fosse penetrado por considerações de natureza aristocratizante, não poderiam ser cerradas a portas a contra-argumentações de proveniência mais democratizante, umas e outras exorbitando do enquadramento que está dado ao nome de família em Portugal.»
Recapitulando: o conceito de apelido composto, embora tenha interesse para a ordem social, decorre unicamente da gramática; os apelidos compostos podem ter apenas um nome (Sanpayo) ou dois, ligados (Santa-Clara) ou não (Corte Real) por hífen.
Agora quanto às regras portuguesas de catalogação. Imaginemos que temos de referir o nome de Mário de Sá Carneiro. Trata-se de um apelido simples, logo: a palavra de ordem é Carneiro; no cabeçalho ficará Carneiro, Mário de Sá — mas na entrada remissiva ficará Sá Carneiro, Mário de. Ou seja, a entrada remissiva de nomes do tipo referido é igual à dos nomes com apelidos compostos. E estas são regras que podemos usar nos índices onomásticos.

«Nos antípodas»

Assim é que é

O astrólogo (ou «astrofilósofo»?) José Prudêncio foi ontem entrevistado por Isabel Angelino no programa Há Conversa, na RTP Memória. A determinada altura, disse que qualquer coisa estava «nas antípodas» de outra coisa. Disse mal. A designar, em sentido real ou figurado, dois pontos opostos, «antípodas» é um nome masculino plural: nos antípodas. Como adjectivo, é uniforme; como nome para designar o habitante que, relativamente a outro, se encontra num lugar diametralmente oposto do planeta, tem os dois géneros.

12.3.09

Ortografia: «hidrolisado»


Polivalência

Já com o vocábulo «catalisador» se passa o mesmo: vejo-o quase sempre escrito, até por pessoas cuidadosas quanto ao resto, com z. Mesmo em textos revistos o vejo grafado com z. Falta de reflexão sobre a língua: se deriva de uma palavra com s, «catálise», os derivados não podem ter z. Assim, de «catálise», «catalisador», e de «hidrólise», «hidrolisado». Difícil?
Todavia, sabe Deus quem escreve estas coisas, em especial nestas empresas como a que comercializa a farinha láctea (Jerónimo Martins). Com o império da polivalência, poderá ser mesmo um segurança ou uma telefonista (que muitas vezes acumula as funções de recepcionista, especialista nas revistas Maria e Ana e bisbilhoteira) que «têm jeito para a escrita». O resultado está à vista. Sim, é mais grave do que com as leis, porque estas só são conhecidas de umas escassas centenas de pessoas, ao passo que os rótulos de produtos são lidos por muito mais gente.
Ah, sim, escreve-se betacaroteno ou β-caroteno, que a Infopédia afirma que «é um percursor da vitamina A».

Redacção das leis

A redacção final

Boa notícia, esta de o procurador-geral da República criticar abertamente a redacção das leis. Perdão: das propostas de lei. «O PGR apontou também falhas na redacção da lei, uso indevido de siglas (que geram confusão) e até de neologismos, como “empoderamento”, uma importação do inglês “empowerment”. Pinto Monteiro criticou a má técnica legislativa. Opiniões não contrariadas pelos deputados que, entre dentes, fizeram questão de dizer que se trata de uma “proposta de lei”. Ora, da autoria do governo, sendo que a redacção final será mais cuidada» («“Tirem lá a vírgula entre o sujeito e o predicado”», Diário de Notícias, Carlos Rodrigues Lima, 11.03.2009, p. 15). O argumento de que se trata de uma proposta de lei e não de uma lei é revoltantemente risível.

«Quarentão» e «quadragenário»

Parece mais velho

«Ontem, no tribunal de Munique, o quadragenário de fato negro e óculos de massa levantou-se para pedir publicamente desculpa às vítimas, que não estavam presentes na sala» («Casanova suíço confessa extorsão a ‘Senhora BMW’», Hugo Coelho, Diário de Notícias, 10.03.2009, p. 29). Está certíssimo: quadragenário é aquele que tem idade na casa dos 40 anos. A verdade, porém, é que a palavra «quarentão» é muito, mas muito mais usada. Até hoje, nunca ouvi ninguém proferir a palavra e na escrita só em traduções. Trintão, quarentão, cinquentão, sexagenário…

Groenlândia ou Gronelândia?


Jamais

      Sabe qual é a capital da Gronelândia? Bem me parecia… Ah, sim, este blogue é sobre língua.
«Desta água fria (parece que vinda do degelo da Groenlândia) tenho medo» («Água a mais para um gato escaldado», Ferreira Fernandes, Diário de Notícias, 12.03.2009, p. 56). Se vem do dinamarquês Grønland, até se afigura mais correcto, e é mesmo a grafia preferida dos Brasileiros. Contudo, no Grande Vocabulário da Língua Portuguesa, José Pedro Machado afirma que Gronelândia é preferível a Groenlândia. O que me parece é que Groenlândia é mais difícil de pronunciar, e nunca a pronunciei.

Verbo «tratar-se», de novo


Só vi 5 minutos

Em Sintonia do Amor (Sleepless in Seattle, no original), que ontem à noite passou no canal Hollywood, Sam Baldwin (Tom Hank) diz ao filho, Jonah (Ross Malinger): «Tratam-se de coisas que quero descobrir, e por isso é que saio com ela.» A tradutora foi Susana Bénard (Ideias & Letras). Alguns tradutores serão proficientíssimos na língua de partida — mas na língua de chegada?

11.3.09

Ortografia: «termossolar»

Imagem: http://www.aquasol.com.br/TSnovo.htm

Mais brio


Estão a ver a palavra «termossifão» na imagem? Parabéns, vêem. Agora a sério. Na edição de hoje do jornal económico Oje lia-se o seguinte título: «ACS totaliza investimentos de 2.200 milhões em eólica e termosolar». O que me pergunto é se esta gente — jornalistas, editores, revisor, paginador — não tem pelo menos curiosidade em saber como se escrevem as palavras. Acaso não aprenderam, como eu, na escola primária que um s isolado vale por z? Lidam com as palavras como se se tratasse de pedras. Termorresistente, termossifão, termossolar…

«Porque» e «por que»

Também dormita

O leitor M. C. pergunta-me se a seguinte frase de Ferreira Fernandes está correcta: «Um das razões porque gosto de futebol é que chuta a semântica para ela ser discutida em lugares impensáveis» («Mais uma discussão da treta», Diário de Notícias, 10.03.2009, p. 52). «E não me refiro», acrescenta o leitor, «à falta de concordância.» Bem me parecia que não iria incomodar-me pela falta de concordância… Tem, contudo, razão: Ferreira Fernandes deveria ter escrito «uma das razões por que», o que equivale a «uma das razões pelas quais». Que, na frase, é um pronome relativo. Substitui o nome antecedente «razões». Este continua a ser um erro bastante frequente.

Iliteracia


Não lhes falta chá

Reparem na apresentação do produto: «Infusão de plantas em saquetas individuais de 1,5 g gravadas a 1 cor. Embalagem individual de 10 saquetas.» Vamos fingir que infusão não é a operação que consiste em deixar macerar plantas ou outra substância num líquido a ferver, de forma a extrair-lhe os princípios alimentícios ou medicamentosos. No modo de preparação, lê-se: «Para garantir uma boa extracção dos activos e assim obter uma infusão de aroma intenso e paladar agradável, deve prepará-la sempre com água fervente.» Espera lá: mas a infusão não estava já preparada na saqueta?
Quem é que escreve estas parvoíces? Na Coutinho & Alexandre fariam bem em consultar um dicionário que lhes infundisse algo de bom.

10.3.09

Nova edição do «Volp»


Dia de São José

O leitor Paulo Araujo, a quem fico muito grato, acabou de me enviar o texto acima, publicado hoje no jornal O Estado de S. Paulo. As notícias, como podem ver, não podiam ser melhores: dia 19 a 5.ª edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) será lançado. O volume terá 349 737 palavras com as respectivas classificações gramaticais. Em relação a certos vocábulos, a Comissão de Lexicografia da Academia Brasileira de Letras e principal responsável do Volp teve de estabelecer critérios no vazio deixado pelo Acordo Ortográfico de 1990. «Outro caso omisso no acordo foi a utilização de “não” e “quase” como prefixos — como não fumante ou quase irmão. Preferiu-se a forma sem hífen», escreve o autor do texto, Alexandre Gonçalves, que termina o texto afirmando: «A reacção portuguesa será conhecida na primeira quinzena de Abril, quando o Volp chegará ao país.» Este Volp será, não há qualquer dúvida, a base do futuro e tão necessário vocabulário ortográfico comum exigido pelo acordo.

«Stande»?

Não me convence

Até já me esquecia que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, regista e recomenda «stande». ‘Stá bem, mas, já agora, não era melhor «estande»? «Não se trata de nenhuma espécie de adoração de um novo carro, nem nenhum sinal de espanto perante a sua beleza. Trata-se, apenas, de dois vendedores que fazem exercício físico antes da abertura do stande, em Banguecoque. Com a crise, é preciso muita força para vender...» («Tailândia», Global Notícias, 10.03.2009, p. 2).

9.3.09

Estrangeirismos e moda

Imagem: http://www.plan59.com/images/

Enfia este




      Se lermos uma peça jornalística sobre moda, tropeçamos em cada linha com inúmeros estrangeirismos. Valha este exemplo: «Os vestidos de cocktail expõem a pele nos sítios certos devido ao efeito de cut-out. Sapatos de salto alto, pumps, loafers (sapato clássico raso masculino) e botas sem fecho» («Peças-‘top’ de Hilfiger inspiram moda acessível», Catarina Vasques Rito, Diário de Notícias, 7.03.2009, p. 58). Contudo, antes de chegarmos a esta frase ainda topámos pelo caminho com passerelles, designer (mas a jornalista não o acha insubstituível, pois também usa «estilista»), camelhair e top, e depois desta frase ainda lemos bomber, trench-coats e pied-de-poule. Mas não nos podemos fiar: podem surgir termos que não estão em itálico e deviam estar. Não acontece no texto que estou a citar, mas noutros. Por exemplo, neste: «Ciente de que as calças chino permanecem um símbolo histórico do design americano, com lugar marcado no guarda-roupa dos fãs, o criador Tommy Hilfiger reinventou-as para a sua nova colecção Hilfiger Denim Chino, numa aposta de simplicidade e conforto» («Calças em exclusivo», Notícias Sábado, 12.02.2009, p. 59). Por parecer uma palavra portuguesa, passou a ser uma palavra portuguesa: não há itálico nem aspas. Outro exemplo: «Por essa altura, já havia contra-anúncios em que um cowboy, chapéu Stetson na cabeça, dizia para outro cowboy: “Bob, tenho um enfisema”» («Drogados em dívidas», Ferreira Fernandes, Notícias Sábado, 12.02.2009, p. 4). O termo stetson designa um tipo de chapéu, popularizado pelos cowboys, que é fabricado tanto pela empresa Stetson, agora com sede em Nova Iorque, mas no tempo de John B. Stetson, o inventor do chapéu, com sede no Missuri, como por qualquer chapelaria em S. João da Madeira. Não é, pois, uma marca.

Grafia dos antropónimos

In nomine status…

É só a mais recente intromissão do Estado, cada vez mais omnipotente, pese embora a aparência do contrário, na vida privada dos cidadãos: ao requerer o cartão de cidadão, uma pessoa pode ter a desagradável surpresa de ver que passou, por exemplo, de «Manuel» para «Manoel» ou de «Lurdes» para «Lourdes» — «para retomarem a grafia utilizada no ano de nascimento, disse, esta manhã [ontem], fonte ligada à emissão do novo documento», segundo o Jornal de Notícias. A provar que o Estado não é autoritário, há duas hipóteses para os cidadãos que não concordam: «“Ou aceitam a nova grafia do nome e o caso está resolvido ou tem que pedir um novo averbamento do nome e, depois de averbado, têm que solicitar a emissão de uma novo cartão, pagando mais 12 euros”, referiu a mesma fonte» («Cartão de Cidadão troca nomes para obedecer à grafia do ano de nascimento», 8.03.2009).

8.3.09

Artigo em nome de países

«Portugal empatado com Chipre»

Olhamos para o título e pensamos: «Finalmente, aprenderam.» Mas não, pois no corpo da notícia lê-se: «Frederico Gil começou o dia a ganhar, mas Rui Machado não conseguiu superar Marcos Baghdatis e a primeira eliminatória do grupo dois da zona Europa/África acabou empatada com uma vitória para Portugal e outra para o Chipre» («Portugal empatado com Chipre», Diário de Notícias, 7.03.2009, p. 15). «O Chipre»? O tanas!
Recentemente, Miguel R. M. lembrou e muito bem no seu Enxuto: «Chipre é um país que sempre foi designado em português sem artigo definido (como Marrocos ou Timor). Há uns anos, mais precisamente por volta de 2004, data da adesão de Chipre à União Europeia, passou a aparecer mais vezes na imprensa portuguesa o nome desse país mediterrânico. Um dia ouvi um locutor de televisão dizer “o Chipre” e pensei “onde é que terão ido buscar este artigo definido?” Pois bem, nestes anos tem-se repetido o aparecimento deste artigo espúrio. Porquê? Por imitação acrítica, como é óbvio. Apareceu uma vez, duas, três e agora está a generalizar-se, sabe-se lá porquê.»

Léxico: «audiodescrição»


Ouça lá

«A RTP aumentou a oferta de conteúdos adaptados para pessoas cegas e amblíopes com a exibição do programa Pai à Força, às sextas-feiras, às 21.00, com audiodescrição» (RTP reforça audiodescrição», Diário de Notícias, 7.03.2009, p. 55). A audiodescrição é uma faixa de áudio em que uma voz descreve pormenores visuais importantes para que espectadores cegos ou com deficiências visuais graves possam compreender um programa ou espectáculo, seja na televisão, no teatro ou no cinema.

Léxico: «perfilista»

Jornalista no divã



      «O perfil psicológico de Bernard Madoff, o autor da maior e mais recente fraude financeira mundial, aproxima-se do de um psicopata, diz Gregg O. McCrary, antigo agente do FBI e especialista na elaboração de perfis criminais, citado pelo New York Times» («Madoff no divã», Notícias Sábado, 7.03.2009, p. 14). E como é que o autor (J. A. Sousa) deste texto acha que se deve chamar a alguém que faz perfis criminais? Está na cara: profiler. Veja-se: «“Ao arruinar tanta gente talvez se julgue uma espécie de deus”, conjectura o profiler.» Para o jornalista, «perfilista» era demasiado terra-a-terra, qualquer badameco podia perceber, e, como se sabe, não é esse o objectivo do jornalismo.

Ortografia: «Tigres Tâmiles»

E isso é singular ou plural?

«Chandrika Kumaratunga estava em campanha para a sua reeleição presidencial, em 2000, quando foi alvo de um atentado da guerrilha dos tigres tâmiles, que lutam pela independência do Norte e Nordeste do Sri Lanka» («A Presidente que escapou por pouco», Diário de Notícias, Abel Coelho de Morais, 7.03.2009, p. 31). Bem, eu também defendo o aportuguesamento integral, e não como faz o Público: «Aviação dos Tigres Tamil atacou o porto de Colombo» (20.02.2009). É claro que se escreve com maiúsculas iniciais: Tigres Tâmiles.

Ortografia: «má-criação»


O DN não usa dicionário

Logo na primeira página. Na verdade, escreve-se «má-criação», pois é um composto em que entram, foneticamente distintos, um adjectivo e um substantivo, como já se lia no Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves. O plural é más-criações. Segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990, escrever-se-á da mesma forma.

À parte e aparte

Cuidadinho

      Na «Varanda de São Bento», a jornalista da TSF Teresa Dias Mendes dá um pontapé na ortografia: «As imagens não mostram o deputado em pé a chamar o deputado socialista para sair do plenário e ajustar contas lá fora. Mas vários testemunharam o desafio. Que deu em nada. Mas, claro, belisca ainda mais a imagem dos políticos. Quantos á-partes, quantas insinuações já não se ouviram naquela sala?» («Os punhos e os palavrões assinalados», Diário de Notícias, 7.03.2009, p. 14). A jornalista deveria ter escrito «aparte», que é um comentário que interrompe um discurso. De qualquer modo, se pretendesse usar a locução adverbial que significa «em separado», deveria ter escrito «à parte», duas palavrinhas. Por isso é que é locução. Mais cuidadinho.

Palavrões

Retórica parlamentar

Metade do editorial da edição de ontem do Diário de Notícias foi para o episódio dos insultos que o deputado José Eduardo Martins, do PSD, dirigiu ao deputado Afonso Candal, do PS. E mais: toda a página 7 foi dedicada aos insultos proferidos no Parlamento. O que mais estranhei foi saber que, segundo os serviços parlamentares, desde finais dos anos 80, os palavrões estão proibidos nas actas das sessões publicadas no Diário da Assembleia da República. Segundo o Diário de Notícias, Francisco Sousa Tavares, personalidade truculenta que se envolveu em vários episódios semelhantes, uma vez, em 1982, até procurou teorizar sobre o que era um insulto: «“Mandar à merda uma pessoa não ofende ninguém. É uma expressão à antiga portuguesa de uma pessoa que está aborrecida.”» Mas não foi o único a fazê-lo, pois também António Lopes Cardoso pediu à Mesa da Assembleia da República critérios objectivos para se avaliar o que são insultos: «“É o peso, pejorativo ou não, que em termos de opinião pública tem a linguagem usada que devem ser os critérios da Mesa e não a interpretação de que cada um se socorre, ou seja, se badameco é mais ou menos insultuoso do que anticomunista primário ou se mandar à merda é mais ou menos insultuoso do que dizer ‘vá àquela parte’”» («Palavrões há muitos (mas fora das actas)», João Pedro Henriques, Diário de Notícias, 7.03.2009, p. 7). Tirando os blogues, em nenhum lado se lê que o deputado Martins mandou o deputado Candal para o caralho. Afinal, não é só nas actas parlamentares que não se podem incluir palavrões.

7.3.09

Necessidade de revisão


E-escolinha e diplomacia

Segundo noticia o Expresso, 200 000 computadores Magalhães têm software cheio de erros de português, «80 erros clamorosos de ortografia, gramática e sintaxe nas instruções dos jogos incluídos no ambiente de trabalho». Lamentável, e sobretudo quando tudo poderia estar correcto se o texto tivesse sido revisto. Noutras paragens, o desleixo e a ignorância também fazem estragos. A secretária de Estado americana, Hillary Clinton, ofereceu ao seu homólogo russo, Serguei Lavrov, um «botão de reinício» (reset) para simbolizar a retomada das relações entre os Estados Unidos e a Rússia. Só que, em vez de perezagruzka, escreveram peregruzka, que significa «sobrecarga». Só não descambou em incidente diplomático porque já não estamos no tempo da Guerra Fria.