31.12.09

Tradução: «education»

Já vimos isto


      «— Apenas quatro por cento das pessoas que entram as nossas portas [sic] têm menos de doze anos de escola, — disse-me ela — e isso iclui pessoas mais velhas, minorias, imigrantes, mulheres. Tivemos que abrir um gabinete satélite noutro bairro para recrutar pessoas com menos educação» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, p. 75). «Educação» e «instrução» não são sinónimos perfeitos. Aqui, o tradutor deveria ter vertido education por «instrução».

[Post 2962]

Revisão

Mais Cerebrum


      «Uma mesa como secretária, um par de cadeiras cromadas idênticas, que pareciam ter sido encomendadas através de um catálogo de muse, pilhas de CD, uma aguda ausência de livros» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, pp. 17-18). «Havia dois monitores de vídeo a funcionar, cada um deles com o Dr. Amen na imagem e um mostruário com os livros, as cassetes áudio, os cartazes informativos e os DVDs do Dr. Amen para serem vendidos» (p. 47). «“Um dos subtestes que usei para estudar os efeitos do MindSpa foi para a memória e os resultados subiram significativamente”, disse-me Ruth Olmstead, uma psicóloga que ajudou a desenvolver a máquina e que a usa na sua prática com crianças e, cada vez mais, com adultos com problemas de atenção, depois de eu ter passado cerca de quarenta minutos por dia, durante um mês, deitada no escuro com os olhos fechados por detrás dos “óculos” emissores de luz e ouvindo o que pareciam ser martelos pneumáticos e comboios do metropolitano, interrogando-me, não sobre se a minha memória estaria a melhorar, mas sobre se iria sofrer um ataque epiléptico, que, segundo li, era o que me poderia acontecer» (p. 22). «Não olhamos para o QI global, mas para um perfil de desempenho ao longo de sub-testes — explicou-me o Dr. Yaakov Stern, no dia em que eu o apanhei, depois de ter dado magníficas conferências no Instituto Neurológico de Columbia acerca da razão pela qual algumas pessoas têm longas vidas sem sinal de demência» (p. 68). «O Dr. Scott Small, com uma camisa verde-escura e uma gravata verde ainda mais escura — sem casaco — apressava-se ao longo da Rua 168, na alta de Manhattan, empurrando depois as portas de vidro do Instituto Neurológico da Universidade de Columbia» (p. 17). «Os resultados dos testes seriam mais reveladores, decidi, caminhando ao longo da Rua Trinta e Quatro, de este para oeste» (p. 84). «Quando tinha vinte e tal anos, passei alguns anos na Universidade de Oxford a ler romances do séc. XIX e a fazer tentativas aleatórias para escrever uma dissertação na área da teoria política» (p. 75). «De acordo com os investigadores da Duke University, dirigidos por um neurocientista com um nome maravilhosamente epónimo de Roberto Cabeza, os adultos mais velhos que têm tão bons desempenhos como os mais novos tendem “a recrutar a metade esquerda, de outro forma inútil, do córtex pré-frontal do seu cérebro de modo a manterem o seu desempenho”» (pp. 92-93).
      Os tradutores podem ser assim incoerentes, o trabalho principal deles é outro — mas não os revisores.

[Post 2961]

Ordinais e cardinais

Seis páginas depois


      «— Bem vinda [sic] ao meu consultório — disse, um pouco ironicamente, uma vez que acabáramos de sair do seu consultório, um soalheiro ninho de águia no décimo oitavo piso do velho edíficio do Hospital Presbiteriano, onde me relatara o seu trabalho de despiste das moléculas do cérebro que controlam a memória» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, p. 17). «Estávamos sentados no seu gabinete do 18.º andar e ele deu um salto e pegou num pau de giz e começou a desenhar uma linha ascendente no quadro» (p. 24). E a coerência? A regra?

[Post 2960]

30.12.09

Ortografia: «distractibilidade»

Défice de revisão


      «Interroguei-me se manter a porta aberta, as conversas a ouvirem-se e o Mike a entrar e a sair fariam parte do objectivo de medir a minha distratibilidade, que percebi nessa altura ser grave» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, p. 49). A ser algo parecido, será distractibilidade. É um termo muito usado quando se fala do distúrbio do défice da atenção (DDA), tradução do inglês distractibility. Se formado a partir do adjectivo português, nunca chegaríamos ao mesmo termo.
      Esta obra também revela algumas «distracções»: «— Bem vinda ao meu consultório — disse, um pouco ironicamente, uma vez que acabáramos de sair do seu consultório, um soalheiro ninho de águia no décimo oitavo piso do velho edíficio do Hospital Presbiteriano, onde me relatara o seu trabalho de despiste das moléculas do cérebro que controlam a memória» (p. 17). «Acho que ele estava a brincar acerca do livre arbítrio» (p. 43). «Disse que tomava aquilo tudo, juntamente com uma dose profilática do remédio para o Alzheimer, o Aricept, embora não houvesse evidência clínica de que o Aricept fosse benéfico para as pessoas que não tinham a doença» (p. 45)...

[Post 2959]

Acordo Ortográfico

Público não segue


      Sob um título errado, «Por que rejeitamos o acordo», o editorial do jornal Público de hoje explica porque é que não vai aplicar as regras do Acordo Ortográfico de 1990, e assegura: «Vamos continuar a escrever a nossa língua como a escrevemos hoje. Os nossos colunistas terão total liberdade de escolha, mas a redacção escreverá notícias baseadas em “factos”, sem “espectáculo” mas com “acção”.» Bem, o espectáculo e a acção dos jornais que vão adoptar as regras do acordo serão diferentes, mas os factos são de certeza os mesmos. Mas têm razão numa afirmação: «há ainda uma última e fatal fragilidade neste acordo — as regras definidas são facultativas. Para que serve então um acordo global se, afinal, é indiferente escrevermos António ou Antônio?» Ecoa aqui, até nos exemplos, a opinião do linguista António Emiliano: «Para o linguista, porém, o mais grave, sobretudo para o ensino, é o facto de “o acordo falar repetidamente de facultatividade”. Um exemplo: “Posso passar a escrever o meu nome como António ou Antônio, as duas formas passam a ser oficiais. Posso até escrever António numa linha e Antônio na seguinte e ninguém pode dizer que está errado.” («Aplicar a nova ortografia em 2010 é uma precipitação?», Alexandra Prado Coelho, Público, 30.12.2009, p. 3).

[Post 2958]

«Sino-luso»?

Não brinque



      «O cidadão de dupla nacionalidade chinesa e portuguesa Lau Fat Wai, 49 anos, condenado à morte em Cantão por tráfico de droga e posse de arma proibida, continua a aguardar a decisão do Supremo Tribunal chinês sobre a possibilidade de ser avaliado um seu recurso. “Não sei qual será a resposta, nem quando haverá resposta”, afirmou o advogado do sino-luso em declarações à agência Lusa, precisando apenas que o pedido foi apresentado à máxima instância chinesa em Março passado» («Sino-luso aguarda recurso em Cantão», Dulce Furtado, Público, 30.12.2009, p. 10).
      Juntar duas formas reduzidas de adjectivos pátrios? Está a brincar, senhora jornalista? Escreva sino-português ou luso-chinês.


[Post 2957]

Tradução: «based»

Varie, por favor


      «O debate foi sempre marcado pela questão das cedências: seria Portugal que estava a fazer cedências ao Brasil ou vice-versa? Alguns artigos que saíram recentemente na imprensa estrangeira sobre o acordo fazem uma leitura simples. “O império contra-ataca”, descreve a Associated Press; e Eric Hewett, um linguista baseado em Roma citado pelo Times online, considera “extraordinário que uma potência colonial europeia mude a sua ortografia para se aproximar da de uma colónia”. Mas, conclui o mesmo artigo, foram a globalização e a Internet que tornaram a decisão “incontornável”» («Aplicar a nova ortografia em 2010 é uma precipitação?», Alexandra Prado Coelho, Público, 30.12.2009, p. 3).
      Essa é uma perspectiva muito... inglesa. Também pouco portuguesa é a tendência desta jornalista para escrever sempre «baseado em» querendo significar «estabelecido em». O inglês a impor-se: «“It is really remarkable that a European colonial power changes its spelling to match that of a colony,” Eric Hewett, a Rome-based linguistics expert whose field of study focuses on the Basque language, says. “Normally, a European power insists that their version is correct, that the colonial speaker has an inferior grasp of their language.”»

[Post 2956]

Pronúncia de Lisboa

O lisboês é padrão


      «Margarita Correia é a responsável, no ILTEC, pelo projecto a que foi dado o nome de Vocabulário Ortográfico do Português. Faz parte do grupo restrito de pessoas que até agora pensaram na aplicação prática do Acordo Ortográfico. Como o fizeram? Em primeiro lugar definindo uma série de critérios que serão também tornados públicos. “O acordo remete muitas vezes para uma tradição, mas em lugar nenhum define qual é essa tradição. Por isso optámos por regularizar bastante a ortografia”. Em muitos casos isto significou tirar os hífens (de “cor-de-rosa”, por exemplo, que o acordo admitia com hífens referindo a “tradição”, ao mesmo tempo que deixava sem hífen “cor de vinho”). Quando a referência é a pronúncia optou-se por seguir a da região de Lisboa» («Aplicar a nova ortografia em 2010 é uma precipitação?», Alexandra Prado Coelho, Público, 30.12.2009, p. 3).

[Post 2955]

«VOLP»

Falta pouco para o sabermos


      «Em Portugal há o risco de confusão, dado que tudo indica que possa haver três VOLP. Um já está editado, pela Porto Editora, e foi coordenado por Malaca Casteleiro. Outro está em preparação pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), será gratuito (foi apoiado pelo Fundo da Língua Portuguesa) e deverá estar disponível on-line no Portal da Língua Portuguesa a partir de 4 de Janeiro (150 mil palavras para já, enquanto um dicionário de nomes próprios, outro de gentílicos e topónimos e um conversor, e mais 50 mil palavras serão acrescentadas até Março). E um terceiro está a ser elaborado pela Academia das Ciências» («Aplicar a nova ortografia em 2010 é uma precipitação?», Alexandra Prado Coelho, Público, 30.12.2009, p. 3). E algo (a experiência?, o preconceito?) me diz que o gratuito será o melhor...

[Post 2954]

Disruptor, disrupção

Desliga


      É verdade que disruption vem do vocábulo latino disruptio,onis, mas isso pouco importa, pois mais de metade do léxico do inglês tem origem no latim. A verdade é que, como afirma Fernando Navarro, e a afirmação aplica-se inteiramente ao falante de português, «buena parte de los anglicismos que utilizamos ofrecen amplia información al lector u oyente de habla inglesa, pero escasa o nula al de habla española» («La terminología médica en español: ¿está enfermo el lenguaje médico?», in E. Ortega Arjonilla, M. A. García Peinado y otros (eds.), IV Simposio Internacional Traducción, Texto e Interferencias. El español, lengua de cultura, lengua de traducción, Almagro, 2005). O falante de espanhol estranha que o Diccionario de la Real Academia Española (DRAE) não registe disrupción mas registe disruptivo. O falante de português estranhará que os nossos dicionários (sim, mesmo o Houaiss) registem disrupção mas não disruptivo. E mais: o DRAE regista como étimo de disruptivo o vocábulo inglês disruptive; os nossos dicionários apontam como étimo de disrupção o vocábulo latino disruptio,onis. E ainda que haja quem a disruptor endócrino (do inglês endocrine disrupter) prefira desregulador endócrino, a generalidade dos médicos usa e aconselharia, se alguém perguntasse, o desaconselhável anglicismo.

[Post 2953]

29.12.09

Maiúscula inicial

Maiusculiza-me, por favor!


      «Small convidou-a a voltar a entrar e falaram acerca da condução, mas apenas durante um minuto, porque Sharon se mostrou irredutível e petulante, para além de ter a sanção do estado» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, p. 38). Li a frase uma vez e voltei a lê-la. O segmento «para além de ter a sanção do estado» escapava à minha compreensão. Sharon sofre de Alzheimer e o marido, Randall, queixava-se da condução dela, que ele considerava perigosa, mas «ela passara recentemente o seu exame de condução, havia pouco a fazer». Ainda pensei que o «estado» se referisse à doença, e só depois compreendi que se referia à nação organizada politicamente: ao Estado.

[Post 2952]

Tradução: «lab-dab»

Irreconhecível

Coração bom-bom
Nunca faz tum-tum
como qualquer um.
Prefere outro tom:
— Fon-fon
e em toda esquina
mais alto que a rima
coração buzina.

ALMIR CORREIA. Poemas Sapecas, Rimas Traquinas (Belo Horizonte: Formato, 1997)


      «Segui-a até uma sala permeada por um alto e constante lab-dab, o pulsar do coração da grande máquina [aparelho de ressonância magnética] bege que estava à minha frente e na qual em breve seria enfiada» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, p. 29). A narradora enfiou depois um par de tampões de espuma nos ouvidos e pôs um par de protectores auditivos por cima, mas: «Mesmo assim, o lab-dab prevalecia.» Que diabo é isto, «lab-dab»? Talvez o coração dos Americanos bata assim, mas o meu faz (pelo menos a maior parte do tempo, pois já sofri de arritmias graves) tum-tum. Tum-tum! Pelos vistos, o coração (mesmo que o não partilhem...) do tradutor e da revisora não é português. E ainda dizem que somos todos iguais.

[Post 2951]

Remédio, medicamento e mezinha

Confusão


      «O único remédio eficaz para evitar a ressaca é não beber de todo ou beber moderadamente. O conselho, dado com humor, é do médico Martins Baptista, que todos os anos recebe vários casos de intoxicação nas urgências do hospital Pulido Valente, em Lisboa, devido aos excessos de fim de ano. É que os outros remédios, medicamentos ou tradicionais, têm pouco efeito e muitos são apenas mitos, garante» («Remédios não são capazes de evitar nem curar ressaca», Patrícia Jesus, Diário de Notícias, 28.12.2009, p. 13).
      Sim, senhor: remédio é hiperónimo de medicamento, ou seja, o seu significado é mais abrangente do que o do vocábulo «medicamento», seu hipónimo. Vale a pena demorarmo-nos nesta questão, porque há muita gente a afirmar o contrário. Já Fr. Domingos Vieira, no seu Grande Dicionário Português ou Tesouro da Língua Portuguesa, escreveu que «remédio tem um sentido mais amplo que medicamento. O remédio compreende tudo que é empregado para a cura de uma doença. […] O exercício pode ser um remédio, porém nunca é um medicamento». O problema no artigo do Diário de Notícias é que usa a mesma palavra (elidida!) para o hiperónimo e para o hipónimo: «remédio» e «(remédio) tradicional». Como ao remédio caseiro (mais que tradicional) se dá o nome de mezinha, era de todo conveniente que a jornalista tivesse escrito da seguinte forma: «É que os outros remédios, medicamentos ou mezinhas, têm pouco efeito e muitos são apenas mitos, garante.»

[Post 2950]

Tradução: «answerer»

Malcriados


      «De acordo com um inquérito, conduzido em 2002 para a Associação do Alzheimer, 95% dos respondedorespraticamente toda a gente — disseram que consideravam a doença de Alzheimer um problema sério e bem mais de metade — 64% — daqueles com idades entre os trinta e cinco e os quarenta e nove, os baby boomers, a minha geração, observaram que estavam preocupados em eles próprios virem a padecer de Alzheimer» (Já não Me Lembro do Que Esqueci, Sue Halpern. Tradução de Pedro Vidal da Silva e revisão de Lídia Freitas. Lisboa: Estrela Polar, 2009, p. 20). Em inglês já sabemos como é: answerer. E em português? Estamos habituados a ver nos dicionários que respondedor é aquele que costuma responder grosseiramente. O respingão. O respondão. Respondente é que é aquele que responde. O Dicionário Houaiss, porém, regista, para «respondedor», a acepção de aquele que responde. Uma solução é traduzirmos por inquirido. De contrário, temos esta coisa abstrusa: «De modo semelhante, quando a Fundação MetLife, em 2006, perguntou aos respondendores qual era a doença que tinham mais receio de vir a contrair, o cancro foi a primeira e a doença de Alzheimer, a segunda» (pp. 20-21).

[Post 2949]


Actualização em 24.1.2010

      «Contudo, em 7 de Abril último o Jornal de Negócios noticiava que 44% dos respondentes a um inquérito do IEFP dirigido aos utentes deste Instituto, [sic] declarou que a formação recebida “não contribuiu em nada para a obtenção do seu emprego”» (Conjunturas & Tendências, Glória Rebelo. Lisboa: Edições Sílabo, 2009, p. 89).

Pronúncia: «exogamia»

Mais uma silabada académica


      Mário Crespo, no Jornal das 9 da Sic Notícias, entrevistou longamente Duarte Santos, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Macau e autor, e por este motivo foi entrevistado, da obra Mudam-se os Tempos, Mudam-se os Casamentos?, publicado pela Coimbra Editora, que é a versão publicada de uma tese de mestrado. A determinada altura, usou, por duas vezes, a palavra «exogamia» (casamento entre membros de diferentes grupos), pronunciando /egzogamia/. Errado. Tão errado como vimos, aqui, em relação a «exógeno».

[Post 2948]

28.12.09

Homófonas

Mais uma acha


      As autoridades norte-americanas contam que Abdul Mutallab tinha aparentemente um pacote de 15 centímetros de pó explosivo e uma seringa cozidos às cuecas, quando entrou no avião em Amesterdão, aonde chegara em trânsito a partir de Lagos» («Barack Obama vai rever regras para identificar suspeitos», Jorge Heitor, Público, 28.12.2009, p. 12). O pó, pentaeritritol ou outro qualquer, decerto que se pode cozer, já sobre a seringa tenho sérias dúvidas. Das cuecas não digo nada. Agora a sério: não parece uma gralha, é mais um erro muito comum. Homófonas, cozer e coser, podem deslustrar o melhor texto. Distracção? Nem sempre.


[Post 2947]

Ortografia: «bem-vestido»

Comparando


      «Antero Flores admite que, após as conversas com os três funcionários — “bem-vestidos e bem-falantes” — aceitou comprar acções do BCP. O que ficou registado na sua cabeça, e que é corroborado por familiares presentes no encontro, é que ele entrava com algum dinheiro (165 mil euros em saldo na sua conta à altura) e o banco entrava com outra parte» («Emigrante na África do Sul enfrenta BCP na justiça e ganha», Rosa Soares, Público, 28.12.2009, p. 14). Que eu saiba, só o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras regista bem-vestido. Também me parecer constituir uma unidade, daí o uso do hífen.


[Post 2946]

Sobre o Oeste

É menos vasto


     «Cinco dias depois do temporal que assolou o Oeste, a EDP ainda não tinha conseguido restabelecer a energia eléctrica em toda a região» («Cinco dias depois do temporal ainda havia casas sem electricidade no Oeste», A. H./T. N. com Lusa, Público, 28.12.2009, p. 19). Na Antena 1, já ouvi mais do que uma vez «no Oeste do País» querendo o jornalista referir-se ao Oeste. Ora, aquele é mais vasto do que este. Oeste é a designação que se costuma dar à região a poucos quilómetros da Grande Lisboa, constituída por doze municípios situados entre o oceano Atlântico e o maciço que se estende para norte a partir da serra de Montejunto. Quando ouço «no Oeste do País», não penso em Alcobaça, Alenquer, Arruda dos Vinhos, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Lourinhã, Nazaré, Óbidos, Peniche, Sobral de Monte Agraço ou Torres Vedras — penso em toda a costa ocidental.


[Post 2945]

«Ítalo-»

Vejam lá isso


      «A italo-suíça Susana Maiolo, de 25 anos, que saltara uma barreira e se precipitara sobre Bento XVI, esteve num estabelecimento hospitalar, a ser submetida a exames psicológicos, e depois foi transferida para uma “estrutura protegida”, fora de Roma. Maiolo disse que “não queria fazer mal ao Santo Padre nem a ninguém”» («Segurança do Vaticano revista depois de incidente», Público, 27.12.2009, p. 13). Em quase toda a imprensa portuguesa, é isso que se lê, mas está mal: ítalo-suíça se deveria ter escrito. No Dicionário Houaiss lê-se: «ítalo-: antepositivo (seguido de hífen, donde a acentuação gráfica), do top. Itália, em compostos de tipo afro- (ver), cuja lógica lhe é totalmente aplicável; há ainda as alternativas ou var. itálico- e italiano-.» É esdrúxulo em português e era esdrúxulo em latim: itălus,a,um. Uma das grandes fontes do erro há-de ser o Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, pois que regista italo- como «elemento de formação de palavras que exprime a ideia de itálico e italiano», e ítalo como adjectivo e substantivo, sem deixar de recomendar que se escreva ítalo-etíope. No Departamento de Dicionários desta editora, ainda ninguém deu pela contradição — ou acham que não há contradição.


[Post 2944]

Espanholismo

Com licença


      «Um dos seus livros levou o título A Igreja com Rosto Humano. Esta pode ser uma ideia-síntese da sua vida, actividade e obra publicada. Foi um dos teólogos que mais influenciaram a doutrina de abertura do Concílio Vaticano II (1962-65), que procurou dessacralizar a estrutura da Igreja e se envolveu no seu aggiornamento. Edward Schillebeeckx, padre da Ordem dos Pregadores (dominicanos) e teólogo, morreu dia 23, antevéspera de Natal, em Nimega (Holanda), aos 95 anos» («O teólogo best-seller que quis pôr o catolicismo a falar com o mundo», António Marujo, Público, 27.12.2009, p. 13). «Levou o título»? Pode não ser, mas cheira-me a espanholismo. Parece-me o llevar na acepção tener, estar provisto de. A propósito, o étimo, é claro, é o mesmo, o latino levāre, que significava «levantar».
      Neste mesmo texto de António Marujo, também se lê: «No Vaticano II, o teólogo deixou a sua marca de água em dois documentos fundamentais: as constituições Dei Verbum, sobre a revelação divina, e Lumen Gentium.» Não seria melhor ter escrito somente «marca»? É que o vocábulo, nesta acepção, já é um sentido derivado: traço distintivo por que se reconhece alguém ou algo; estilo ou maneira pessoal. Para que é preciso a locução?

[Post 2943]

Elemento de composição «recém» (IV)

Por aí vamos


      Alguma vez saberemos quanta da evolução de uma língua se deve à simples ignorância? Não me parece. «E, no entanto, é entre estes jovens idênticos aos jovens de Barcelona, de Amesterdão ou Berlim — que não usam véu mas piercing, que bebem cerveja e falam inglês — que estão os maiores desiludidos com a União Europeia. “Vocês não nos querem”, diz Zeynab, uma recém-economista, “e inventam motivos para não entrarmos. Pessoalmente, acho que não vale a pena tentar mais.”» («Na terra de Jano», Rui Tavares, Público, 28.12.2009, p. 32).

[Post 2942]

Estado: uso da maiúscula

Por exemplo


      Mesmo que eu concordasse — e não concordo — que se escreva «Estado» com inicial minúscula quando seguido de «complemento toponímico»*, como se defende no Livro de Estilo do Público, o que vejo na prática do dia-a-dia é que nem sequer o próprio jornal segue a regra. Por outro lado, argumentemos, e se entre a palavra «Estado» e o «complemento toponímico» se intromete outra palavrinha? «Americano», por exemplo. A regra mantém-se? Aliás, todos conseguimos imaginar frases em que a palavra «Estado» está tão distante do «complemento toponímico» quanto nos apetecer. E, nesses casos, já não estarão seguidas.
      «O objectivo seria apelar ao nacionalismo mexicano — recordando tempos em que partes dos territórios que constituem os actuais estados americanos da Califórnia, do Oregon, do Novo México, do Texas, do Arizona, do Utah, do Colorado e do Wyoming pertenciam ao México» («Vodka Absolut retira anúncio com mapa da América do Norte em que o México ocupava o Sudoeste dos EUA», Pedro Ribeiro, Público, 10.4.2008, p. 23).
      «O jornal nigeriano This Day contou ontem que o velho banqueiro se iria reunir dentro de algumas horas com aqueles mesmos serviços. Enquanto isso, no Estado norte-americano do Michigan o suspeito terá de se explicar sobre a razão do seu acto, com o qual pouco mais conseguiu do que queimar-se a si próprio» («Nigeriano tentou deflagrar uma bomba em voo para Detroit», Jorge Heitor, Público, 27.12.2009, p. 10).
      Que a regra anda por aí, como tantas outras, mal interpretada, salta à vista, pois mesmo quando se não segue o complemento patronímico, continua a ser grafada com minúscula. Como no Diário de Notícias: «Eva Mendes manteve relações em todos os estados americanos» (Davide Pinheiro, Diário de Notícias, 23.08.2008, p. 59).





* «3. Os substantivos que designam organização política ou social, como: condado, ducado, grão-ducado, principado, império, monarquia, nação, país, reino, república; ou que designam organização administrativa ou político-administrativa, como: aldeia, cantão, cidade, concelho, departamento, distrito, estado, freguesia, lugar, província, território, vila, etc., quando seguidos de complementos toponímicos: condado de Barcelona, estado de Nova Iorque, província do Ribatejo, concelho da Maia


[Post 2941]

27.12.09

Décadas e gerações

Incertezas


      Na imprensa, não se tem bem a certeza: nuns jornais, lê-se que «a década ainda nem chegou ao fim», ao passo que noutros se faz o «balanço da década». No Aspirina B, Valupi pergunta, talvez com hipercorrecção: «Que leva pessoas supostamente dotadas de um mínimo de cultura geral a considerarem que 2009 conclui uma década?» E ainda pergunta: «Nunca tropeçaram na palavra novena ou a ela são alérgicas por anticlericalismo primário?» Os dicionários, porém, apenas registam, além da acepção concernente à religião, as acepções de «série de nove dias» e «grupo de nove coisas». Mas é uma dúvida que persiste.
      No Viva a Música, de Armando Carvalhêda, Miguel Ângelo, dos Delfins, afirmou que «duas ou três gerações» conhecem de cor os temas daquela banda pop, mas é claro que não usou o vocábulo no sentido demográfico, de resto uma extensão de sentido.

[Post 2940]

26.12.09

Neologismos

De pasmar     


      Os tradutores são, a par dos jornalistas, os grandes criadores de neologismos. Alguns, é certo, não terão grande fortuna, mas funcionam bem na obra em que foram usados. De salto em salto, fui parar ao sítio de Lia Wyler, reputada tradutora brasileira, conhecida sobretudo por ter traduzido a saga de Harry Potter, e a uma entrevista que deu à revista Época, em que a tradutora lembra que inventou o verbo boquiabrir-se para traduzir o verbo inglês to gape. Também Isabel Fraga, uma das tradutoras portuguesas da mesma saga, fala, aqui, das palavras que teve de inventar quando fez a tradução: «espreitoscópio», «pungentos», «pensatório»...


[Post 2939]

Como citar o «Diário da República»

Pormenores

      «O Tribunal Constitucional (TC) entende que as concessionárias das auto-estradas têm a obrigação de provar que a presença de animais na faixa de rodagem não lhe é de todo imputável. Esta posição foi expressa em dois acórdãos publicados esta semana em Diário da República e aprovados pelos conselheiros do TC, no passado 18 de Novembro, e que negaram provimento a dois recursos da Brisa, que se não conformou com as indemnizações a que foi condenada pelo atravessamento de uma das faixas da A4 por uma raposa e um cão de grande porte» («Brisa vai mesmo ter de indemnizar donos de viaturas que chocaram com animais na A4», António Arnaldo Mesquita, Público, 26.12.2009, p. 8). Oportunidade para dizer, caro Luís M., que a tal professora de Técnicas de Revisão estava enganada, pois a própria Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro (o que não é, bem sei, determinante, mas apenas mais uma fonte de esclarecimento), que regula a publicação, identificação e formulário dos diplomas legais, estabelece que aquele jornal oficial deve ser referido em itálico, e, já agora, que a numeração das séries se faz com numeração árabe (1.ª e 2.ª séries) e não romana, como todos os dias se lê por aí.

[Post 2938]

«Ribeira das casas»?

Como?

      «Isabel Magalhães nem queria acreditar quando chegou à ribeira das casas, numa tarde de passeio com a filha e uma amiga, e viu que a pintura rupestre com mais de cinco mil anos, que tinha descoberto sem querer há sete anos, estava destruída. “Deu-me vontade de chorar”, lembra» («Pela primeira vez, um caso de destruição de arte rupestre pode chegar a tribunal», Ana Machado, Público, 26.12.2009, p. 7). «Ribeira das casas»? Primeiro pensei que fosse lapso e estivesse em vez de «beira das casas». Mas outras duas ocorrências convenceram-me de que estava enganado: «Um breve carreiro separa a casa daquele lugar da ribeira das casas, onde, passadas as poldras, uma espécie de ponte ancestral, as enormes lajes graníticas alinhadas em anfiteatro abrigam um tesouro raro: um conjunto de pinturas rupestres.» «Nuno Neto, arqueólogo e natural de Malhada Sorda, diz que a descoberta desta gravura na ribeira das casas, junto a um leito de ribeira, não surpreende.» Não é, obviamente, um topónimo. A pista pode estar numa das acepções do vocábulo «ribeira»: porção de terreno banhado por um rio. Que algum leitor nos ajude.


[Post 2937]

Léxico: «apodíctico»

Ateus, intelectuais

      «“Surpreendem-me as certezas apodícticas com que alguns proclamam o seu ateísmo. As próprias certezas da fé, sendo firmes, são humildes”, declarou o cardeal» («Cardeal Patriarca de Lisboa critica certezas dos ateus mas não vê razões para conflitos», José Bento Amaro, Público, 26.12.2009, p. 6). E a mim surpreende-me que a Igreja, habituada, ao longo dos séculos, a lidar com ignorantes, analfabetos, os mais humildes, use esta linguagem. «Apodícticas»? Apodíctico é o que é necessariamente verdadeiro, quer por evidência, quer por demonstração. Demasiado filosófico. Ateus serão, porventura, apenas os intelectuais?

[Post 2936]

Ortografia: «cardeal-patriarca»

Tem dias

      No Público, ora escrevem cardeal patriarca ora cardeal-patriarca. Parece que ninguém dá pela incoerência. «Foi em torno da tolerância e compreensão, apesar de vivências diferenciadas, que o cardeal patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, urdiu, na noite de quarta-feira, a tradicional mensagem de Natal» («Cardeal Patriarca de Lisboa critica certezas dos ateus mas não vê razões para conflitos», José Bento Amaro, Público, 26.12.2009, p. 6). «O presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), o cardeal-patriarca e o presidente da Comunidade Israelita inauguram hoje, às 11h00, no Largo de São Domingos, um conjunto escultórico que pretende fazer memória do massacre de judeus em 1506, iniciado precisamente naquele lugar» («Memorial judaico e católico evoca a partir de hoje em Lisboa o massacre de judeus de 1506», António Marujo, Público, 22.4.2008, p. 13). Se querem saber, escrevo sempre com hífen: cardeal-patriarca. Aplica-se a Base XXVIII do Acordo Ortográfico de 1945, que manda usar hífen nos compostos em que entram, foneticamente distintos, dois ou mais substantivos ligados ou não por preposição.


[Post 2935]

Ortografia: «quibla»

Menos itálico

      «Acrescenta, ao PÚBLICO, Clinton Bennett: “A Mesquita de Maomé em Medina não tem minarete. Tecnicamente, só a qiblah [que aponta a direcção para Meca] é essencial numa mesquita. Os minaretes só começaram a aparecer há cerca de 100 anos, tal como as cúpulas» («Quando o apartheid religioso critica a islamofobia», Margarida Santos Lopes, Público, 26.12.2009, p. 2). Porque não aportuguesar, como se vê até noutros jornais? «Corresponde [Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção ou de Entrevinhas ou Entre-Ambas-as-Águas] a um espaço quadrangular de cinco naves perpendiculares à quibla, sendo a central mais larga» («A vergonha de Mértola», D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, Correio da Manhã, 25.09.2009).


[Post 2934]

25.12.09

Sobre «recambiar»

Tudo recambiado

      «Um tribunal da cidade holandesa de Utreque permitiu ontem que a adolescente Laura Dekker fique ao cuidado do pai, Dick, depois de ter sido recambiada para o país, na sequência da sua fuga, na semana passada, para as Antilhas, onde tencionava comprar um novo barco e partir para uma volta ao mundo sozinha» («Jovem velejadora holandesa fica ao cuidado do pai», Jorge Heitor, Público, 24.12.2009, p. 13). Bom verbo este, recambiar. Registado na língua, pela primeira vez, no início do século XVII, significava, originalmente, apenas devolver letra de câmbio por falta de pagamento ou de aceite. Por extensão de sentido, passou depois a significar também devolver ao lugar de origem, fazer regressar, acepção em que é usado no artigo.


[Post 2933]

24.12.09

Réu/arguido

Pobres leitores...

      Como é possível que um jornalista não domine os conceitos de «réu» e de «arguido»? «Pouco depois do meio-dia local de ontem (4h em Lisboa), um funcionário do tribunal contou que a audiência terminara; e o advogado do réu afirmou depois que a sentença deverá ser lida amanhã» («Dissidente chinês está a ser julgado em Pequim», Público, 24.12.2009, p. 13). Arguido em matéria penal, réu em matéria cível. No caso, tratava-se do julgamento do dissidente chinês Liu Xiaobo, acusado de incitamento à subversão do poder do Estado. Isto é matéria cível, senhor jornalista?


[Post 2932]

Tradução: «to release»

Soltar, desprender, largar

      «E há muito que se espera que o FBI liberte parte da investigação que foi feita à morte de Michael Jackson. Esse documento foi libertado esta manhã» (Eduarda Maio, noticiário da Antena 1 das 10 da manhã de ontem). Má tradução de to release. Leio no The Wall Street Journal: «The Federal Bureau of Investigation yesterday released its files on pop singer Michael Jackson in response to Freedom of Information Act requests.» No Público, por exemplo, lia-se: «O FBI revelou ontem vários documentos secretos relacionados com o cantor Michael Jackson, muitos deles acerca de uma investigação, em 1992, de um indivíduo que ameaçou matar a estrela do pop e o ex-presidente dos Estados Unidos, George H. W. Bush.»

[Post 2931]

Pontuação e adjuntos adverbiais

Esperança vã

      «Há, isso sim, cargos especialmente difíceis e é verdade que poucos estarão à altura do seu exercício. Além disso, sabemos que, na Procuradoria, mesmo quem disponha das condições técnicas e intelectuais necessárias pode ver-se impedido de o exercer com sucesso, devido a pressões internas ou externas» («A maldição da Procuradoria», Pedro Lomba, Público, 24.12.2009, p. 32).
      Os adjuntos adverbiais e equivalentes só têm vírgula obrigatória se precederem o termo a que se referem: «Por causa do mau tempo, resolvi não sair de casa.»/« Resolvi não sair de casa por causa do mau tempo.» Claro que não devemos esperar que um simples cronista, que conhecerá a língua por «intuição», pontue correctamente, se nem os revisores sabem o que está em causa. Bom Natal.

[Post 2930]

23.12.09

Advérbio interrogativo

Porquê?     


      «Foi o gosto de mostrar as suas peças que a fez criar um blogue em 2001. Nessa altura, não tinha a intenção de começar a fazer este tipo de trabalho profissionalmente. “Mostrava as coisas naturalmente na Internet. As pessoas que viam o meu blogue é que começaram a dizer: ‘Ah, tão giro! Porque é que não vendes?’”» («Bonecos que começaram por ser desenhos de um blogue», Sara Picareta, Público, 23.12.2009, p. 20). «O que fica para reflexão é saber como interpretar o bailado mais ou menos caótico protagonizado pelos grandes actores mundiais, que está na base deste relativo fracasso político. Prevaleceu o G20 ou o G2? Por que é que a União Europeia pesou tão pouco?» («Depois de Copenhaga», editorial, Público, 23.12.2009, p. 30). Só acertam quando julgam errar.

[Post 2929]

22.12.09

Discurso dos futebolistas

Autenticidade controlada    


      Na cerimónia de entrega do Prémio Puskas, atribuído pela FIFA, Cristiano Ronaldo declarou: «Na verdade, eu não estava à espera de ganhar nada hoje, para ser sincero. Mas, para mim, é um orgulho receber este prémio. A meu ver, foi um grande golo, e no qual adorei ter marcado, como já referi muitas vezes. E, bom, estou muito feliz.» Sem o filtro da imprensa, o discurso de Cristiano Ronaldo é assim e não de uma limpidez e ultracorrecção invulgares, como vimos numa entrevista que deu ao jornal Público e que aqui referi (desmascarei). Há-de haver, e só é pena que os jornalistas ainda o não tenham encontrado, um meio-termo entre a forma atabalhoada, agramatical, como a maioria dos futebolistas se exprime e o discurso fluido, perfeito, concatenado que, por vezes, os jornais atribuem aos ídolos contemporâneos.


[Post 2928]

Acordo Ortográfico

Ortografia e elites

      Escreve Miguel Esteves Cardoso na sua crónica de hoje no Público: «Até que ponto é obrigatório o acordo ortográfico? Poderão multar ou prender quem não obedecer? A escritora e ministra Isabel Alçada já teve a coragem de dizer que não há pressa. Outros atropelam-se para adoptar a nova ortografia como se fartos da antiga. Regra geral, o acordo ortográfico é defendido por quem escreve mal, por muito que saiba de ortografia, mas desprezado por quem escreve bem e saiba alguma coisa de linguística. Vai haver uma ASAE para a ortografia? Palavra de honra, se alguma vez fez sentido a desobediência civil, na sua versão mais serena — pífia até — é com o acordo ortográfico. O que virá a seguir neste plano totalitário de unificação?» («Acordo, a tua avó», Público, 22.12.2009, p. 31).
      Miguel Esteves Cardoso não estará esquecido — decerto que é somente por imperativos humorísticos que o omite — de que escreve, e escrevemos, segundo as regras de um acordo ortográfico, tão obrigatório como não deseja que este agora seja mas é (ou irá ser, se entrar em vigor). Como já nascemos em plena vigência do Acordo Ortográfico de 1945, tendemos a esquecê-lo. Se o acordo entrar em vigor em 2012, em 2022 já ninguém apelará à desobediência civil. Mesmo a brincar. Por outro lado, ainda que o processo para se alcançar um acordo ortográfico fosse mais democrático, nunca o seria plenamente. Imaginemos que era constituída uma nova comissão, para a qual eram convidados ilustres contestatários, entre os quais Miguel Esteves Cardoso. Nunca a cozinheira do Restaurante Ribeirinha de Colares, que Miguel Esteves Cardoso talvez frequente, seria ouvida, e ela também é falante do português.

[Post 2927]

Pontuação

Antes que seja tarde

      «Parece-me por isso exemplar o caso relatado pelo PÚBLICO no domingo passado em que o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu não levar a julgamento o jornalista do Açoreano Oriental, Estêvão Gago da Câmara, processado por difamação pelo deputado socialista Ricardo» («Uma imprensa robusta e desinibida», Pedro Lomba, Público, 22.12.2009, p. 32).
      Este cronista precisa de rever urgentemente as regras da pontuação. A pontuação que usou só estaria correcta se Estêvão Gago da Câmara fosse o único jornalista do Açoreano Oriental. Não é. Ainda ontem Fernando Mora Ramos, no artigo que aqui citei, escreveu: «E às perguntas “Como nasce um analfabeto?”, “Quando é que começa a sê-lo?”, Tullio di [sic] Mauro, o pai dos estudos linguísticos italianos, diz: “O facilitismo dos docentes provocou danos enormes, promovendo todos e não barrando o caminho a quem não está à altura. Mas o desprezo da língua italiana está também em certos romances de novos autores, cheios de palavrões e abreviaturas, e na linguagem cada vez mais desleixada dos jornais, de onde quase desapareceu a riqueza da pontuação”.»

[Post 2926]

21.12.09

Iliteracia

E cá?

      «Segundo dados do Centro Europeu de Educação [CEE]», escreve hoje no Público o encenador Fernando Mora Ramos, «oito por cento dos licenciados não consegue na Itália usar a escrita convenientemente. Em Portugal, qual será a percentagem? Será sequer possível vir a saber? Mais grave do que isso, 21 licenciados em 100 não atingem o nível mínimo de decifração de um texto. O mais longe que vão, lendo instruções de uma bula, é intuir as contra-indicações da aspirina. Mas não mais. E acrescenta o estudo: um licenciado em cinco não é capaz de resolver uma ambiguidade lexical e os cem livros que tem em casa serviram-lhe apenas para tirar o diploma» («Por que é que não tenho aulas de Português?», Público, 21.12.2009, p. 31).

[Post 2925]

Ortografia: «siquismo»

Mais um pouco     


      Ainda não há muita gente a escrever sique e siquismo, mas nas traduções vai sendo habitual: «Os líderes que vieram depois, como o guru Nanek, fundador do siquismo, e o Mahatma Gandhi, ressuscitaram o ideal da concórdia e unidade das oposições sectárias e sociais» (Grandes Tradições Religiosas, Karen Armstrong. Tradução de Maria Eduarda Correia e revisão de Pedro Ernesto Ferreira. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 356). Digam lá o que disserem, aportuguesamentos pela metade não me convencem: sikhismo?

[Post 2924]

Léxico: «transcurar»

Não transcurem as obrigações

      Sem falsas modéstias: muito raramente aprendo um novo termo. Uma vez que conheço largos milhares, só quer dizer uma coisa: já houve um tempo em que os aprendia diariamente às catadupas. Sempre que isso acontece, porém, a alegria é a mesma. Hoje, na tradução de um texto de Bento XVI, encontrei o termo «transcurado». Os dicionários registam o verbo transcurar, «não curar de; descurar; não cuidar de», e «esquecer-se de; preterir». Parece um verbo camiliano. O Dicionário Houaiss data a sua entrada na língua em 1817―1819.

[Post 2923]

20.12.09

Religiões e crentes

Vamos ver

      «Os Judeus estavam proibidos de pronunciar o nome de Deus, numa forte chamada de atenção de que qualquer tentativa de exprimir o divino era tão inadequada que era potencialmente blasfema» (Grandes Tradições Religiosas, Karen Armstrong. Tradução de Maria Eduarda Correia e revisão de Pedro Ernesto Ferreira. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 378). «Servindo de ponte entre dois mundos, estava convencido de que tinha uma missão junto dos goyim, as nações estrangeiras: Jesus fora o messias para os Gentios, tanto quanto para os judeus» (idem, ibidem).
      Incoerência, sem qualquer dúvida, mas como deve ser? Carmo Vaz, no Código de Escrita: Linguística Portuguesa 1 (2.ª edição revista e aumentada. Lisboa: Editora Portuguesa de Livros Técnicos e Científicos, 1983), escreve que se deve usar maiúscula inicial: Judeus, Cristãos, Muçulmanos, etc. Já as religiões, como também se lê em Rebelo Gonçalves, não merecem tal distinção: cristianismo, judaísmo, islamismo, etc. Qual é, contudo, o uso? O mais desvairado. Ainda assim, diria, caricaturando um pouco, que os ateus, os jornalistas, os cronistas e os tradutores preferem grafar com maiúscula inicial, ao passo que os clérigos preferem grafar com minúscula inicial. Uma amostra: «E o senhor Arcebispo, vindo propositadamente para cerimónia de tanto fausto, falava sa fidelidade que os esposos se devem, de como fora o Cristianismo a definir que também as mulheres tinham alma, o que só a filósofos palpitara» (Procissão dos Defuntos, Tomaz de Figueiredo. 2.ª edição. Lisboa: Editorial Verbo, 1967, p. 228). «Por vezes, pensa-se que o género autobiográfico sempre existiu. Mas a primeira obra a, como tal, ser concebida data do século IV, tendo sido escrita por um convertido ao Cristianismo, Santo Agostinho, o qual tão obcecado andava com a salvação da sua alma que teve necessidade de registar o seu percurso» (Bilhete de Identidade, Maria Filomena Mónica. Alêtheia Editores, Lisboa, 4.ª edição, 2006, p. 12). «Existem variadíssimas religiões nas nossas vidas, não apenas as que começam por R maiúsculo como o Zoroastrismo ou o Judaísmo» (Tribos, Seth Godin. Tradução de Rosário Nunes. Lisboa: Lua de Papel, 2008, p. 76). «Afegão convertido ao Cristianismo apontado como exemplo de coragem» («D. José Policarpo critica intolerância», Público, 15.4.2006, p. 19). «Com a guerra que se tem vivido nos últimos anos, também o turismo, o comércio e as peregrinações aos lugares santos do Cristianismo ficaram estrangulados» («Cristãos podem desaparecer da Terra Santa», António Marujo, Público, 28.06.2006, p. 22). «Já nos primeiros séculos do cristianismo, alguns pensadores vincaram certas e perigosas correspondências: assim como Israel é um único povo mediante a fé num único Deus, também a humanidade dividida, agora, em muitas nações e línguas, voltará a ser uma única humanidade sob o império de um único senhor na terra: como existe um único Deus, também deve imperar uma única realeza e uma única monarquia» («Trindade: mística de olhos abertos e mística de olhos fechados», frei Bento Domingues, Público, 7.06.2009, p. 38). «João Paulo II observou que só há choque quando Islão e Cristianismo são manipulados para fins políticos ou religiosos» («Samuel Huntington», José Cutileiro, Expresso, 24.01.2009, p. 39). «Além de deixarem claro que “desaprovam” e “reprovam” a cantora enquanto pessoa, os líderes da Igreja Ortodoxa da Bulgária não poupam críticas à diva da pop: “Madonna mantém uma atitude de desrespeito e intolerância pelos símbolos sagrados da fé cristã e de todo o Cristianismo”» («Madonna também irrita ortodoxos», Dina Gusmão, Correio da Manhã, 26.08.2009, p. 37).


[Post 2922]

Infinitivo, sim, mas qual?

É igual

      «Esforçamo-nos sempre por melhorarmos a nossa natureza e aproximarmo-nos de um ideal» (Grandes Tradições Religiosas, Karen Armstrong. Tradução de Maria Eduarda Correia e revisão de Pedro Ernesto Ferreira. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 14). Nesta frase, em vez de se ter usado o infinitivo pessoal, não era obrigatório usar o infinitivo impessoal, pois a marca da pessoa já está no primeiro verbo? Não, não era: se for regido de preposição (por, na sua frase) o infinitivo pode ser flexionado ou não. Ambas as construções estariam correctas.

[Post 2921]

«Fazer filhos» e «caderno de encargos»

Insensibilidade e seguidismo

      «Eu não acredito que tenha desaparecido entre os Portugueses o entusiasmo por trazer novas vidas ao mundo», disse Cavaco Silva, que falou em «inverno demográfico», mas a jornalista Natália Carvalho, no noticiário das 2 da tarde de ontem na Antena 1, disse, à bruta: «Os Portugueses fazem cada vez menos filhos. Este ano nasceram pouco mais de cem mil crianças.»
      No mesmo noticiário, o jornalista Jorge Correia disse: «Cavaco Silva apresentou um caderno de encargos ao Governo para apoiar o nascimento de mais crianças no País.» É a expressão da moda, «caderno de encargos». Os jornalistas apenas vão atrás dos políticos. Creio que foi nas últimas eleições legislativas que começou a ser usada recorrentemente. E é claro que não é naquele sentido que os dicionários a registam: «articulado com regras técnicas, jurídicas e administrativas que devem ser respeitadas na elaboração de um estudo ou na execução de qualquer obra» (in Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).

[Post 2920]

19.12.09

Incoerências onomásticas

Falta de memória?

      «Luís Inácio Lula da Silva também terá arrancado sorrisos à audiência ao anunciar estar disposto a apoiar financeiramente os países mais pobres» («Líderes garantem saber o que tem de ser feito para chegar a um acordo global... mas pelos outros», Helena Geraldes, Público, 19.12.2009, p. 4). Todos sabemos, porém, que o nome é Luiz. A verdade é que todos os jornais, uns mais, outros menos, são pródigos em incoerências. No Público, ora escrevem Raul Castro, ora Raúl Castro. «Durante mais de três décadas, Juanita Castro geria discretamente uma farmácia em Miami, e poucos já tinham ouvido falar dela. Mas a sua história tinha tudo para dar nas vistas. E deu, agora que foi publicada numa autobiografia: a irmã de Fidel e Raúl Castro foi agente da CIA em Havana de 1961 a 1964, anos de alta tensão entre Cuba e os Estados Unidos» («Irmã de Fidel Castro colaborou com a CIA», Francisca Gorjão Henriques, Público, 27.10.2009, p. 6). «O Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o líder cubano Raul Castro estarão ausentes, e há chefes de Estado que faltarão à cimeira por estarem a decorrer processos eleitorais nos seus países. São os caso do boliviano Evo Morales, e do Presidente uruguaio Tabaré Vasquez, cujo sucessor é escolhido hoje» («Chefes de Estado são hoje recebidos na Torre de Belém», Isabel Gorjão Santos, Público, 29.11.2009, p. 5).
[Post 2919]

18.12.09

Tradução: «tutor dative»

Demasiado fácil

      No episódio de hoje, o 424 (desculpem não ter falado dos outros 423) de A Juíza, no canal Sony, Amy, que é juíza no Tribunal de Família de Hartford, Connecticut, ameaça um casal que se está a divorciar de atribuir um tutor dative à filha de ambos. O tradutor entendeu que deveria verter por tutor dativo. Fácil. Mas estará correcto? Nunca vi que o nosso Direito da Família tivesse esta figura do «tutor dativo». A expressão sim, está correcta. Está registada em alguns dicionários modernos, como o estava, por exemplo, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva: «Dativo, adj. Dado pelo magistrado: v. g. tutela dativa, oposta à legítima, que é instituída pela lei, ou a testamentária, por testamento. Orden. 3. 43. 5. tutor dativo.» Exactamente, nas Ordenações Filipinas, por exemplo, vamos encontrar o tutor dativo, também chamado tutor atiliano, pois provinha já do Direito romano e, concretamente, da Lei Atília (186 a. C.). Solução: eu traduziria apenas por tutor.

[Post 2918]

Ortografia: «Transara»


Muita areia

      Todas as (poucas) vezes que vi referências à Trans-Sahara Contraterrorism Initiative (TSCTI), a tentativa de aportuguesamento era sempre incorrecta: Iniciativa Contraterrorista para o Trans-Sara. Ó inteligências supremas, como é que é *Trans-Sara se se escreve, por exemplo, «transiberiano», não me explicam? Se trans-+siberiano dá «transiberiano», trans-+Sara só pode dar Transara.


[Post 2917]

Ortografia: «Crixna»

Tudo português

      Já estávamos habituados a ver Vixnu e Xiva, mas não Crixna. Abaixo Vishnu, Shiva e Krishna! «Os irmãos Pandava escaparam ao ataque, porque Crixna os aconselhara a dormirem fora do acampamento nessa noite, mas a maior parte da sua família — incluindo as crianças — foi chacinada» (Grandes Tradições Religiosas, Karen Armstrong. Tradução de Maria Eduarda Correia e revisão de Pedro Ernesto Ferreira. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 309).

[Post 2916]

Ortografia: «preexistente»

Falha ortográfica

      «Falhas tectónicas activas não faltam naquela zona — como a Ferradura, a sul do epicentro do sismo, ou a do Marquês de Pombal, a noroeste. Mas é prematuro associar uma destas falhas ao sismo, que teve uma certa profundidade. “Pode haver uma falha pré-existente em profundidade e não haver vestígios à superfície. Esta zona é de grande complexidade tectónica”, diz Fernando Carrilho» («E se o sismo de ontem tivesse sido em terra?», Teresa Firmino, Público, 18.12.2009, p. 6). Preexistente já vem do latim, e é assim que se deve escrever este vocábulo, tal como preexistência, preexistencialismo e preexistir.

[Post 2915]

17.12.09

Tradução: «judgment»

In my judgement     


      «Não se trata obviamente de poder absoluto ou prepotência, mas de outras qualidades “morais” como espírito de decisão, clareza e uma palavra que penso existir em inglês mas não em português: judgment, que pode significar uma forma distintiva de juízo e bom-senso» («Governar e influenciar», Pedro Lomba, Público, 17.12.2009, p. 40). Ou judgement. Sim, significa discernimento; espírito crítico; bom senso. Mas a frase está mal redigida. O cronista deveria ter escrito: «Não se trata obviamente de poder absoluto ou prepotência, mas de outras qualidades “morais” como espírito de decisão, clareza e uma palavra que existe em inglês mas não, ao que julgo, em português: judgment, que pode significar uma forma distintiva de juízo e bom-senso.» Tal como escreveu, o significado é outro. E mais: por mais intraduzível que lhe pareça, nunca fica por traduzir em nenhuma tradução. Pode ser, consoante o contexto, traduzido por juízo, diagnóstico, julgamento, sentença, critério, parecer, opinião, e um largo etc., incluindo essa «forma distintiva de juízo e bom-senso».
      *Bom-senso, com hífen, só o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras regista.

[Post 2914]

16.12.09

Pronúncia: «exógeno»

Uma consulta gratuita

      «As diferenças [Sócrates maioritário vs. Sócrates minoritário] podem acontecer por duas vias: pela via endógena e pela via exógena» (Carlos Amaral Dias, Alma Nostra, Antena 1, 8.12.2009). São ambos, exógeno e endógeno, vocábulos do léxico do psicanalista Carlos Amaral Dias, o que não é de estranhar. O que já é de estranhar, parece ser particularidade do seu idiolecto, é a forma como pronuncia o vocábulo «exógeno»: realiza o x como um dífono, /cs/, coisa que aquele grafema não vale aqui. Uma vez que o programa é apresentado como «uma conversa solta que faz um voo rasante sobre o Mundo com um olhar português e explora as subtilezas da nossa língua», não se importarão que eu, ouvinte, as explore, às subtilezas.

[Post 2913]

15.12.09

Léxico: «deve-haver»

Deve haver um erro

      «No balanço do “deve e haver” climático ditado pelo Protocolo de Quioto, Portugal deverá terminar 2009 com um excesso de 4,12 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (CO2e) em relação às metas estabelecidas para o período de cumprimento de 2008-2012. Esta derrapagem representa um desvio de 5,4 por cento, cujos responsáveis principais são a indústria da energia e os transportes» («Portugal ultrapassou metas de Quioto em 5,4 por cento», Helena Geraldes, Público, 15.12.2009, p. 3). Tenho lido e ouvido vezes sem conta desta forma, *deve e haver. Bem, mas os dicionários registam deve-haver há muito tempo. É a minha prenda de Natal para a jornalista Helena Geraldes.

[Post 2912]

Pluralização dos antropónimos

Cinco estrelas

      Há dias, um leitor, também ele revisor e tradutor, escreveu-me a lamentar-se por ver que se está a abandonar a pluralização de antropónimos estrangeiros. Confessou que um dos últimos casos lhe estragou o almoço. Bem, não só antropónimos estrangeiros, também com portugueses se deve observar a mesma regra. Mas há bons exemplos. Na última Pública, foi publicada uma entrevista a José Avillez, chefe do Tavares a quem foi atribuída uma estrela Michelin. À pergunta sobre se o apelido Avillez era do pai ou da mãe, respondeu: «Da mãe. Eu sou Ereira. Tenho 20 primos direitos Avillezes. No râguebi, nos escuteiros, nem me tratavam por Zé. Era o Avillez. Fiquei o Avillez. Agora, o meu filho vai nascer e vou ressuscitar um José Ereira. Do lado do meu pai morreu toda a gente. Os tios, os avós; só tenho dois primos. O meu filho vai ser Zezinho Ereira» («No dia seguinte, a minha ideia era: “Vamos trabalhar para a segunda estrela Michelin”», Anabela Mota Ribeiro, 13.12.2009, p. 33). Vejam se ele disse *os Avillez. É o disse.

[Post 2911]

Ortografia: «patoá»

Desleixo

      «É por isso que o seu grupo de teatro Dóci Papiaçám di Macau — algo como “Doce língua (ou conversa) de Macau” — é uma espécie de reservatório de uma herança. Dos cerca de dez mil macaenses, apenas um milhar fala patuá, “mas não o tradicional”, ressalva [Miguel Senna Fernandes]» («Esta terra é nossa», Francisca Gorjão Henriques, Pública, 13.12.2009, p. 26). É uma precaução mínima que vou aconselhando: quando usamos palavras que não são de todos os dias (e mesmo estas, depende), convém consultar um dicionário. Patuá existe, sim senhor, mas é uma palavra que vem do tupi e com que se designa o cesto onde os índios, no Brasil, guardam as redes. É isto que queria dizer, Francisca Gorjão Henriques? É que o escreveu cinco vezes. Claro que não: é patoá, um parónimo. Patoá é o nome que se dá ao dialecto de qualquer idioma, e especificamente ao crioulo de Macau. É o aportuguesamento da palavra francesa patois. Segundo Rafael Ávila de Azevedo (A Influência da Cultura Portuguesa em Macau. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Colecção «Biblioteca Breve», 1984, p. 39), a mais antiga referência que existe sobre o patoá de Macau deve-se a um autor chinês, Tcheng Ulam, no século XVIII.

[Post 2910]

Actualização em 18.04.2010

      Erro que, espantosamente, também aparece em livros: «Mas eu insisti e então voltaram os batimentos ritmados e metálicos e, sobre eles, um canto de barítono em patuá das Caraíbas, com uma letra de canção infantil ou uma lengalenga para saltar à corda num recreio» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 47).

Ortografia: «pinha-mansa»

GNR, obrigado

      «A GNR apreendeu, domingo, em Marinhais, Salvaterra de Magos, cinco mil quilos de pinhas-mansas que se destinavam a comercialização, disse ontem fonte da GNR. Aquela força policial refere que os militares do posto de Marinhais identificaram um homem por armazenamento de pinhas-mansas fora do período permitido por lei. A colheita, transporte e armazenamento de pinhas da espécie Pinus pinea (pinheiro-manso) é interdita entre 1 de Abril e 15 de Dezembro» («Cinco mil quilos de pinhas-mansas apreendidas», Público, 15.12.2009, p. 26). Embora ainda de forma inconsistente, a grafia dos nomes das espécies botânicas e zoológicas na imprensa vai sendo esta, o que só tem fundamento no uso.

[Post 2909]

Léxico: «visgo»

Obrigado, GNR

      «A GNR de Vila Franca de Xira deteve, no domingo, dois indivíduos, de 16 e 46 anos, que se dedicavam à captura de aves de espécies cuja caça é proibida, com o auxílio de cola colocada num ramo (feita à base de visgo) e de um chamariz montado com outro pássaro preso dentro de uma gaiola. Esta actividade é proibida por lei e pode ser punida com pena de prisão até seis meses ou multa até 100 dias. Em poder dos detidos estavam 33 aves, mais de metade das quais pintassilgos» («GNR detém dupla que capturava aves com recurso a cola», J. T., Público, 15.12.2009, p. 26). No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, o verbete «visgo» remete para «visco», supomos (não há nenhuma indicação) que por visgo ter surgido na língua por via popular, a partir do vocábulo latino viscum, i. Os Romanos tinham o adágio Viscum fugiens avis in laqueos incidit, isto é, O pássaro, ao fugir do visgo, caiu no laço.

[Post 2908]

«Crise doméstica»?

Mais uma tacada

      «Quando sobre Obama já pesavam expectativas excessivas de resolver a crise doméstica num ápice, só lhe faltava mesmo era receber do comité Nobel um prémio de incentivo, não tanto por aquilo que ele realizou na sua política externa, mas por ter rompido com a diplomacia unilateral do antecessor» («Ideais imperfeitos», Pedro Lomba, Público, 15.12.2009, p. 40). Eu pensava que o golfista Tiger Woods é que tinha uma crise doméstica, e não Barack Obama.

[Post 2907]

Tradução: «blackout»

Sem comentários

      «Ontem vi», escreve-me um leitor, «uma série televisiva no canal AXN em que, sistematicamente, a tradução optou por usar a palavra “desmaio” quando os actores pronunciavam blackout. Sim, pode acreditar! Sempre que falavam do apagão global que uma determinada experiência científica provocara no mundo inteiro, as legendas insistiam em “desmaio global”... Queria mandar-lhe esta denúncia logo em cima do acontecimento mas não tinha acesso ao correio electrónico na hora. Os termos brasileiros [este com etimologia no espanhol platense apagón, com o mesmo significado], tão expressivos, são evitados por estes tradutores por serem brasileiros? Até podiam optar por “escuridão”!»

[Post 2906
]

14.12.09

Ortografia: «sociopolítico»

Algumas incertezas


      Cara Luísa Pinto: como pode ver a seguir, para lá de algumas incertezas (socio- é de natureza adjectival ou substantiva?), a maioria dos estudiosos considera que se deve escrever sociopolítico, sem hífen, como eu faço.
      «Nos vocábulos socioeconômico e sociopolítico faz-se referência, portanto, à sociedade (no sentido de relações sociais), ao mesmo tempo destacando-se, por razões de detalhamento descritivo e analítico, uma de suas dimensões. Não há, por conseguinte, verdadeira individualidade semântico morfológica. Pela lógica conceitual, teórica e epistemológica, justifica-se plenamente a ausência de hífen» («Em torno de um hífen», Marcelo Lopes de Souza, Revista Formação, n.º 15, volume 1, p. 160).
      «Prefiro seguir a lição de meu mestre Celso Pedro Luft, que advogava o uso do hífen em todos esses casos de [adjetivo + adjetivo], em que o primeiro sofre redução. Como eu já tive a oportunidade de explicar no artigo sobre Tele-entrega, a autonomia do primeiro elemento fica comprovada pela ocorrência das vogais abertas /é/ e /ó/, que só podem aparecer, em nossa língua, na posição tônica. Compare-se sociologia (a vogal tônica é o /i/; o /o/ da primeira sílaba é fechado) com sócio-econômico (a vogal tônica é o /o/ aberto); como não existem duas tônicas em um só vocábulo, fica evidente que estamos unindo aqui dois vocábulos independentes, social e econômico, para formar um composto. Além disso, esta opção pelo hífen nos permite escrever sócio-político-geográfico-econômico, por exemplo, que, no modelo do Aurélio XXI, seria sociopoliticogeograficoeconômico — duro de ler, difícil de entender e totalmente contrário à intuição que nós, falantes, fazemos de compostos desse tipo. Essa é a razão por que me parece mais adequado grafar buco-maxilo-facial, cárdio-respiratória, etc. — mas, como espero ter deixado bem claro, percebo que a outra grafia, sem hífen, tem também seus argumentos (e seus ilustres defensores)» («O emprego do hífen: sócio-econômico» Cláudio Moreno, Sua Língua).
      «Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, recomenda: “Nos compostos em que entram, morfologicamente individualizados, um ou mais elementos de natureza adjectiva terminados em o e uma forma adjectiva’, deve-se usar o hífen.” Exemplos da obra: “africano-árabe”, “físico-químico-naturais”. Nesta ideia e considerando sócio um adjectivo, na alternativa aceite pelo Dicionário Houaiss, eu escreveria: sócio-político, e sócio-político-económico. Note, porém, que o léxico já regista sociopolítico e socioeconómico. As justificações de Rebelo Gonçalves são difíceis de sustentar presentemente, pois pouca gente consegue descortinar hoje a origem grega ou latina dos agrupamentos de letras para poder escolher convenientemente, e, além disso, o uso muitas vezes ignorou essas regras» («Hífen em compostos morfológicos, h interior», D'Silvas Filho, Ciberdúvidas, 14.04.2008).
      «Em suma, o uso impôs o elemento de composição socio-, e daí escrever-se socioeconómico, sociopolítico. Seria certamente mais coerente escrever sócio-, com hífen e acento agudo, justamente para mostrar que a forma era originalmente um elemento de natureza adjectiva, uma redução de social. Mas quando sócio- surge associado a outros elementos de natureza adjectival, é legítimo regressar aos preceitos de Rebelo Gonçalves e escrever como D’Silvas Filho sugere: sócio-político-económico» («Hífen em compostos morfológicos, h interior», Carlos Rosa, Ciberdúvidas, 14.04.2008).
      «As palavras compostas, cuja primeira parte é o elemento de composição socio (e não sócio), não têm hífen: sociodemográfico, sociopolítico, sociocultural, sociocracia, sociograma, etc.» («Hífen, de novo», José Neves Henriques, Ciberdúvidas, 23.12.1997).
      «A grafia correcta das palavras que suscitaram a sua dúvida é sociopolítico e económico-político. Porquê a aparente incoerência entre uma forma e outra? Veja-se o que diz Rebelo Gonçalves, no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa: Deve usar-se o hífen «nos compostos em que entram, morfologicamente individualizados e formando uma aderência de sentidos, um ou mais elementos de natureza adjectiva terminados em o e uma forma adjectiva.» Encontra-se neste caso o elemento económico, pois é de natureza adjectiva, termina em o, e ocorre uma aderência de sentidos com a forma adjectiva político. O acento mantém-se porque se trata de um elemento morfologicamente individualizado. Outros exemplos: físico-químico, médico-cirúrgico, etc.
      Por que é diferente o caso de sociopolítico? Porque a forma socio- não é de natureza adjectiva, como era a forma económico, mas, sim, de origem substantiva, e, segundo o mesmo tratado, “É inadmissível o uso do hífen nos compostos em que um elemento de origem substantiva, proveniente do grego ou do latim e terminado em o, se combina com um ou mais elementos substantivos ou adjectivos”. E dá como exemplos aerodinâmico, astrofísica, etc., e podíamos acrescentar sociopolítico» («Sociopolítico/económico-político», Rui Gouveia, Ciberdúvidas, 15.04.2003).
      «Quanto a sociocultural, não se passa precisamente o mesmo: não pronunciamos a primeira sílaba com a intensidade suficiente para individualizarmos o elemento socio-. Normalmente proferimos a primeira sílaba do socio- com a mesma intensidade com que proferimos o final deste elemento. É a falta desta individualização que nos leva a escrever sociocultural, sociolinguística, sociopolítico, sociodrama, sociocracia, sociofilia, etc. […] Ora o elemento socio não é de natureza adjectiva, mas substantiva, do latim “sociu(m)”. Portanto, escreva-se também socioeconómico. Não esquecer: socio é de natureza substantiva e não adjectiva» («Socio-», José Neves Henriques, Ciberdúvidas, 29.04.1998).
      «Quando o elemento SÓCIO for substantivo, devemos escrever com acento agudo e hífen: sócio-fundador, sócio-presidente, sócio-torcedor…
      Quando o elemento SOCIO for adjetivo (redução de SOCIAL), devemos escrever sem acento e sem hífen: sociopolítico, sociolingüístico, sociocultural…
      Assim sendo, o correto seria SOCIOECONÔMICO, mas a forma “sócio-econômico”, devido ao uso consagrado, já aparece registrada em alguns dicionários» («Curiosidades sobre o uso do hífen», Sérgio Nogueira, Globo.com»).

[Post 2905]

Tradução: «preprint»

Aceitam-se propostas

      Nas publicações científicas, é comum ler-se o termo inglês preprint. Nunca, até hoje, o tinha visto traduzido. Hoje, viu-o traduzido por pré-edição. A definição de preprint é «an issue of a technical paper often in preliminary form before its publication in a journal» (Merriam-Webster). É a versão de um artigo antes de ter sido avaliado pelos pares do autor ou autores. É, dito de outra forma, a versão antes de chegar às mãos do editor.

[Post 2904]

North-West Frontier Province

Se fosse em urdu

      «Entretanto, também no Paquistão, nos distritos da North-West Frontier Province (perto do Afeganistão) a violência dos talibãs e a imposição da charia obrigam à fuga as minorias não muçulmanas, entre as quais os cristãos.» Isso queria o jornalista, mas eu não deixei. Traduza-se: Província da Fronteira Noroeste.

[Post 2903]

«Multirreligioso» ou «multi-religioso»?

Estávamos em 1998

      «No aniversário destas violências, a Igreja na Índia promoveu tempos de oração, vigílias e encontros culturais para defender a liberdade dos cristãos e para incitar a Índia a voltar a ser o país multi-religioso e multicultural que foi no passado.»
      O prefixo multi- não foi previsto no Acordo Ortográfico de 1945, logo, só por analogia poderemos dizer como se deve grafar. José Neves Henriques analisou bem a questão quando escreveu, em 1998, que «dos terminados em i, essa reforma menciona [na Base XXIX] anti, arqui, semi, seguidos de hífen, quando o elemento seguinte tem vida à parte e começa por h, i, r ou s, como por exemplo anti-infeccioso, arqui-irmandade, semi-interno. Por analogia com estes, embora não saibamos o que nos dirá uma futura reforma, podemos concluir que os prefixos maxi, bi, midi, mini, multi, poli [e pluri, por exemplo] são seguidos de hífen, quando o elemento seguinte tem vida à parte e começa por h, i, r ou s.» Logo, deveria escrever-se, não se esqueçam, multi-racial, multi-religioso, multi-riscos, multi-sectorial, etc. Infelizmente, em 1999, Neves Henriques já escrevia: «Para soar como o r de rua e de carro, temos de escrever multirracial e multirracionalidade.» O que nem sequer é verdade. O consultor aqui deixou-se enredar na pergunta, que era se se devia escrever «multiracial».
      No Acordo Ortográfico de 1990, contudo, este prefixo é expressamente referido (Base XVI, «Do hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação»), e o vocábulo continuará a escrever-se da forma como agora os dicionários a registam, dobrando a consoante. Até se inventou uma regra a partir do uso: com hífen «quando o segundo elemento possui vida própria e começa por h ou i: mega-híbrido, multi-idiomático» (sim, eu também não percebo o que está ali a fazer aquele «mega-híbrido»). Assim, nunca se erra: fazemos como nos parece e depois inventamos uma regra.

[Post 2902]

Tradução: «pregnant»

Quem é o pai?

      «In a pregnant phrase...», lia-se no original. O tradutor não se deteve em grandes raciocínios e verteu assim: «Numa frase grávida de sentido...» O problema é quase sempre o mesmo: o tradutor julga saber perfeitamente o que a palavra da língua de partida significa, ignorando outras possíveis acepções. Quem sabe se não traduziria também (e não era mais grave) por «grávida» se a frase se referisse a uma vaca... Em sentido figurado, pregnant é «fértil», «fecundo», «sugestivo», «significativo», como se pode ver no Dicionário de Inglês-Português, da Porto Editora, que também regista a locução, usada em Linguística, pregnant construction, «frase densa de significado, frase com mais sentido que aquele que as palavras parecem significar», recomendando a tradução «pleno de sentido», e a locução pregnant events, «acontecimentos de grande alcance».

[Post 2901]