31.10.09

Elementos compositivos -géneo/-génio

Imagem: http://www.indymedia.org/

De ir às lágrimas


      O tradutor verteu «tear-gas canisters» por «granadas de gás lacrimogénio». (Sim, canisters e não grenades. Reparem na imagem: são mesmo latas.) O problema não é de tradução, mas de português. Ora, o elemento de composição pospositivo usado nos adjectivos, ainda que substantivados, é -géneo, como em lacrimogéneo, homogéneo, halogéneo… O elemento -génio, por sua vez, postula substantivos: aglutinogénio, mitogénio… Ainda que a distinção, é verdade, tenha surgido já no português, se o tradutor soubesse latim, quase de certeza não teria dado semelhante erro. Pior ainda, apesar de tudo, é ver professores de Português que nunca tiveram o Latim como língua obrigatória em toda a sua formação. Que país. Ainda estão, está o Governo, a tempo de corrigir este erro, tornando obrigatória a frequência de acções de formação nesta língua.

[Post 2780]

30.10.09

Léxico: «monociclo»

  

Habilidades


      «Vamos todos aprender a pintar a cara, andar de monociclo e a equilibrar-nos ora sobre uma perna ora sobre outra, como um cavalo a galopar — muito melhor do que fracções, testes de ortografia e ser a última a ser escolhida para a equipa de basquetebol» (Azul Mar, Cathy Cassidy. Tradução de Cristina Queiroz. Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2009, p. 8). Quase sempre nos esquecemos do nome do velocípede de uma só roda, muito usado por acrobatas, e, no entanto, se nos ocorresse que o elemento de formação de palavras que exprime a ideia de um só, unidade é mono-, facilmente lá chegaríamos. Mas há equívocos evidentes: também uni- é o elemento de formação de palavras que exprime a ideia de um, um só, e numa das acepções de unissexo significa «para os dois sexos».


[Post 2779]

29.10.09

«Geografia», uma acepção

Outras latitudes

      Dizia o provedor do ouvinte da RDP, Adelino Gomes, na emissão da semana passada, a 54.ª, do programa Em Nome do Ouvinte: «Ficámos a perceber — e tem lógica — que a RDP África se dirige ao mesmo tempo a dois grandes públicos-alvo, situados em geografias e ambientes culturais muito diferentes — os africanos residentes nas regiões de Lisboa, Coimbra e Faro; e os africanos residentes nas diferentes ex-colónias portuguesas do continente africano. Assim como também, evidentemente, os portugueses ali residentes.»
      Fez de imediato lembrar-me um conhecido meu que, português embora, «vive em francês», e, em vez de contactos, nos pede «coordenadas». Sou o primeiro a dizer que a língua não se resume aos dicionários — nem a um só nem a todos juntos. Este sentido figurado de «geografia» soa-me estranho, mas talvez se possa estabelecer analogia com o vocábulo «latitude», de que os dicionários registam o sentido figurado «região». Claro que o provedor poderia ter dito «espaços geográficos». Este programa, já viram?, é disponibilizado em áudio e num guião, caminho que deveria ser seguido por outros.

[Post 2778]

Actualização em 20.2.2010

      Talvez se vá tornando uma acepção comum: «As restantes etnias da geografia russa vão dos cossacos aos tártaros, dos povos da Tuva aos evens e aos tungus, dos povos do Cáucaso aos mordovos, dos Qoriaques, de origem mongol, aos vepsios — todos integram aquele que é o maior país do mundo em área, com os seus 17 075 200 quilómetros quadrados» («Do Ducado de Moscovo a grande potência», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 20.2.2010, p. 18).

Hyphenated words. Uma achega

Safra

      I have a dream. Escrevo-o em inglês, porque tem que ver com tradução. Seria bom que existisse um sítio na Internet onde se reunissem palavras inglesas hifenizadas, e só estas, que quase nunca figuram nos dicionários bilingues, e a respectiva tradução. Como ninguém o fez até agora, faço-o eu. Estará, como outros textos, em permanente construção. Nesta parte do blogue, estarei aberto à colaboração de outros revisores e tradutores, embora não conte, à partida, muito com isso (mais uma self-fulfilling prophecy, uma profecia auto-realizável…), porque, de uma maneira geral, as pessoas gostam de receber e não gostam de dar. Querem somente colher, alguém semeará. Não se trata, atenção, de um dicionário, mas de palavras que foram traduzidas em função do contexto em que se inseriam. Muitas vezes, é óbvio, só têm uma acepção, e nesses casos aproximar-se-á de um dicionário bilingue. Em todo o caso, constituirão sempre, espero, pistas para os leitores. De fora ficaram os compostos de self, porque estão aqui.
[Post 2777]
about-turn: reviravolta
across-the-board [desegregation]: [dessegregação] geral
African-American: afro-americano; negro
aid-worker: cooperante
air-raid: raide aéreo
all-knowing: omnisciente
all-night [sessions]: [sessões] que duram toda a noite
all-out [racial clash]: [confronto racial] geral
*all-out [support]: [apoio] total
*all-out [war]: [guerra] total
all-powerful: todo-poderoso
anti-boycott: antiboicote
anti-business [conspiracy]: [conspiração] antiempresa
anti-poverty: antipobreza
arch-segregationist: arquissegregacionista
ass-kissing: lambe-botas
azure-blue: azul-celeste
back-lit: contraluz
back-stabbing: refalsado, traidor, desleal, que apunhala pelas costas
back-up [tactic]: [táctica] de resguardo; [táctica] de recuo
bay-fronted: de/com janelas salientes
beer-garden: jardim de cerveja
behind-the-scenes: bastidores
big-shot: manda-chuva
black-hole: buraco negro
black-marketeer: candongueiro
bloody-minded: corajoso
blow-up: broche
blue-green: azul-esverdeado
blue-helmeted: com capacete azul
blue-uniformed [troopers]: [soldados] de uniforme azul
bombed-out: destruído por bomba
bone-racking: torturante
bow-tied: engravatado
breath-taking: impressionante, surpreendente
breech-loading [rifle]: [espingarda] de retrocarga
bride-to-be: futura noiva
broken-down: acabado
brown-out: apagão
build-up: acúmulo
built-up [boots]: [botas] de tacão alto
buzz-kill: desmancha-prazeres
by-election: eleição intercalar
by-product: subproduto
cabinet-maker: marcenaria
capacity-building: desenvolvimento de capacidades; capacitação
cap-and-ball [pistol]: [pistola] de cartuchos
carpet-bagger: arrivista
cat-like: felino
cease-fire: cessar-fogo
cement-mixer: betoneira
chit-chat: conversa informal
chock-full: abarrotado; a abarrotar
clean-cut: atinadinho
cloth-spinning [ascetic]: [asceta] de roupas fiadas por si
coal-heaver: estivador do carvão
coat-hanger: cabide
cock-sucker: chupa-piças
cold-blooded [murder]: [assassínio] a sangue-frio
cold-cocked: coronhada
command-post: posto de commando
cordon-bleu [restaurant]: [restaurante] de alta cozinha
counter-example: contra-exemplo
co-worker: colaborador
crack-up: colapso; fracasso
cross-cultural: transcultural
cross-examination: interrogatório
C-sharp: dó sustenido
cup­marks: fossettes, covinhas ou cazoletas
curly-toed [shoe]: [sapato] de biqueira enrolada
cut-out: derivação
day-to-day: quotidiano
decision-making: tomada de decisões
deep-cushioned [couch]: [sofá] profundamente almofadado
de-worm: desparasitar
die-hard [segregationists]: [segregacionistas] mais obstinados
direct-action: acção directa
double-barreled [shotgun]: [espingarda] de dois canos
double-stranded: bicatenário
double-towered: de/com dupla torre
dressing-table: toucador
dried-out: sem vida
drop-off: queda
dusk-to-dawn [curfew]: [recolher obrigatório] entre o crepúsculo e a alvorada
dyed-in-the-wool: disfarçado
east-north-east: és-noroeste
easy-going: descontraído
fade-out: desvanecimento gradual
far-flung: remoto
far-reaching [victory]: [vitória] de longo alcance
father-in-law: sogro
fault-line: linha de fractura
fear-drenched [communities]: [comunidades] encharcadas de medo
field-worker: operacional
fire-gutted [store]: [armazém] esventrado pelo fogo
first-class [team of lawyers]: [equipa de advogados] de primeira classe
first-rate [mathematician]: [matemático] de primeira água
five-and-ten: estabelecimento barato
flame-out: fracasso
flare-up: recrudescência [de uma doença]
flesh-and-blood: de carne e osso
flip-flop: inversão
flower-basket: floreira
follow-up: complemento
food-on-the-go: refeições rápidas
foot-dragging: indeciso
forget-me-not: lírio-do-vale
fortune-teller: vidente
foul-mouthed: linguarudo
four-eighths: quatro oitavos
front-page: primeira página dos jornais
front-party: partido-frente
fuddy-duddiness: caretice
full-bodied:
bem encorpado
full-fledged [minister]:
[ministro] autónomo
fund-raiser: angariador
fund-raising:
angariação de fundos
fun-loving: amigo de se divertir
gas-light: lampião
gas-masked [patrolmen]: [polícias] com máscaras de gás
gate-keeper: porteiro
general-purpose: de uso geral
gene-splicing: excisão génica
genial-looking: bem-humorado
get-together: encontro
gin-bud:
copofonista
give-and-take:
toma-lá-dá-cá
go-between: mensageiro
gold-digger:
garimpeiro
good-faith:
boa-fé
good-looking: bem-parecido
good-naturedly [endured]: [suportaram] com bonomia
grave-digger: coveiro
great-grandfather: bisavô
grief-stricken: despedaçado pelo desgosto
ground-breaking: fantástico
gun-handler:
pistoleiro
hair-trigger [temper]:
explosivo [temperamento]
half-pint: meia-leca
half-way [effort]: [esforço] intermédio
half-words: meias-palavras
hand-crank [radio]: [rádio] de manivela
hands-off [policy]: [política de] não interferência
hanger-on: pendura; sabujo
hard-core [segregationist]: [segregacionista] incondicional
hard-eyed [boys]: [rapazes] de olhar duro
hard-on: tesão
hard-to-grasp: difíceis de compreender
hard-won: arduamente conquistado
hate-filled [policemen]: [polícias] cheios de ódio
heart-monitor: monitor cardíaco
heavy-lidded [eyes]: [olhos] pestanudos
hell-bent: fortemente determinado
hiding-place: esconderijo
high-ceilinged:
[tecto] de/com alto pé-direito
high-level: de alto nível
high-pressure [hoses]: [mangueiras de] alta pressão
high-spirited: bem-disposto
high-velocity [rifle]: [espingarda] de alta velocidade
ho-go [area]: [área] interdita
holding-on: controlo
home-cooked:
comida caseira
honky-tonk: bar
hoo-haa:
burburinho
horse-drawn [wagons]: [carroças] puxadas por cavalos
hot-shoe: sapata
Huxley-esque:
huxleyesco
hymn-like:
hínico
ill-bred:
de má formação
ill-defined: mal definido
ill-disposed: maldisposto
ill-informed:
mal fundado
ill-shapened: malfeito
ill-tempered:
mal-humorado
ill-timed: inoportuno
Jo-burg:
Joanesburgo
Judeo-Christian: judaico-cristão
labor-union [movement]: [movimento] sindical
lance-corporal: cabo lanceiro
last-ditch [effort]: último [esforço]
late-Romanticism: tardo-romantismo
law-abiding: cumpridor da lei
law-enforcement officers: agentes da lei
left-liberals: liberais de esquerda
left-winger: da extrema-esquerda
lesser-ranking [functionary]: [funcionário] de categoria inferior
life-giving: vivificante
light-headed:
tonto
light-skinned:
de pele clara
like-minded: da mesma opinião
lily-white [delegations]: [delegações] brancas como a neve
live-in [cook]: [cozinheira] interna
lock-in: impasse
long-held [belief]:
[crença] persistente
long-liner: palangreiro
long-running [quarrels]: constantes [desavenças]
long-shooting [rifle]: [espingarda] de longo alcance
long-standing [rivalries]: [rivalidades] de longa data
low-paying [job]: [emprego] mal pago
lower-class: classe baixa
lowest-paying: menos bem pago
L-shaped: em forma de L
major-domo: mestre-de-cerimónias
male-bonding [humor]: [humor de] companheirismo masculino
many-worlds: mundos paralelos
[mass-action] campaign: [campanha de] acção de massas
master-builder: mestre-de-obras
matter-of-fact: terra-a-terra
mean-spirited [person]: [pessoa] de mau carácter
middle-aged: de meia-idade
middle-class: classe média
mid-tone: semitom
mind-blowing [experience]:
[experiência] estonteante
mind-boggling: estonteante
mind-numbing:
embrutecedor
mittel-European:
centro-europeu
money-lender: prestamista
mood-swings:
oscilações de humor
much-abused: maltratado
muzzle-loader:
espingarda de carregar pelo cano; espingarda de antecarga
myth-maker: fabricante de mitos
narrow-minded: de mente estreita
neo-Kantian: neokantiano
new-money: novo-rico
nit-picking: ninharias
neo-pragmatism: neopragmatismo
non-liability: desresponsabilização
off-kilter:
despropositado
off-the-wall:
disparatado
off-white:
branco-sujo
oft-times: várias vezes
old-fashioned: à moda antiga; antigo
old-time [preachers]: antigos [pregadores]
olive-green: verde-azeitona
one-billionth: milésimo milionésimo
one-fortieth: um quarenta avos
one-time: de antanho
op-ed [piece]: [artigo] de opinião
open-mouthed: siderado
ouija-board:
mesa de pé-de-galo
out-breath: expiração
out-of-date:
desactualizado
out-of-work:
desempregado
over-curious:
metediço
over-loaded:
sobrecarregado
party-piece:
façanha
passer-by:
transeunte
peek-a-boo:
melena
pell-mell [retreat]:
[retirada] desordenada, atabalhoada
pent-up [emotions]: [emoções] reprimidas
petro-chimical: petroquímico
pig-baby:
porquinho
pillar-box:
marco de correio
pipe-smoking: fumador de cachimbo
political-military: político-militar
port-hole: vigia [num navio]
pray-in [on the sidewalk]: serviços religiosos espontâneos [nos passeios]
preach-in: sessão de pregação
pre-arranged [agreement]: [acordo] prévio
pre-established: preeestabelecido
public-house: taberna
pure-bred:
puro-sangue
push-up: contracção
pussy-footed:
brando
quarter-master:
contramestre
raw-boned:
muito magro
razor-sharp: afiado como uma navalha
razor-thin [margin of victory]: escassíssima [margem de vitória]
real-world: mundo real
reddish-haired: de/com cabelo avermelhado
red-haired: ruivo
right-hand: braço-direito
right-wing [conservatives]: [conservadores] de direita
rolled-up: enrolado
rotten-looking:
de aspecto miserável [pessoa]
round-the-clock [protests]: [protestos] 24 horas seguidas
rubber-necker: papalvo curioso
run-down [rooming house]: [hospedaria] delapidada
run-in: desagrado; diferendo
run-up: escalada
school-ship:
navio-escola
scissor-grinder: amolador
[self-seeking] rabble-rouser: agitador [egoísta]
semi-skilled: semiespecializado
set-to:
combate
set-up:
arranjinho
sharp-edged:
aguçado
sharp-tongued: de língua afiada
shit-faced: com cara de cu
shit-kicker: merdas [aquele merdas]
shit-kicking: borra-botas
short-lived [dispute]: [disputa] de curta duração
show-business: mundo do espectáculo
shuck-and-jive: aldrabice
silk-stocking:
elegante
sickle-shaped: em forma de foice
single-minded: determinado
single-shot:
monotiro
single-stranded:
monocatenária
sit-in:
ocupação
sit-up:
trejeito
snake-handlers:
vendedores de banha da cobra
so-called: chamado
soft-nosed [bullet]:
[bala] de ponta mole
soft-porn: pornografia suave
soft-spoken: voz suave
south-facing: virado a sul
spiky-haired: de cabelos espetados
stained-glass window: vitral
stand-off: braço-de-ferro
state-mandated: por ordem do Estado
stepped-up [vendetta]: reforçada [vingança]
stern-wheel [boat]: [barco a vapor] com uma roda de pás na popa
strectcher-bearer: maqueiro
suck-up:
lambe-botas
sugar-cane: cana-de-açúcar
sun-stone: aventurina
teach-in:
sessão de esclarecimento
team-mate: colega
tear-gas [canisters]: [granadas de] gás lacrimogéneo
thick-lipped: de/com lábios grossos
tick-tock: tiquetaque
tin-eared:
apático
to-do:
tarefas
too-prissy:
empertigado
top-heavy:
sempre-em-pé
top-of-the-range: topo de gama
tough-minded [approach]: [atitude] determinada
trade-off: negociação
trumped-up:
burla
tug-of-war:
braço-de-ferro
twelve-berth: de doze beliches [barco]
two-toned [shoes]: [sapatos] de duas cores
U-boat: submarino
ultra-far-right [city government]: [governo municipal] de ultradireita
undersecretary-general: subsecretário-geral
up-to-date: moderno
upper-income:
de rendimento elevado
vice-chair: vice-presidente
washed-out: deslavado
wash-stand:
lavatório
water-stressed [area]:
[zona] de stress hídrico
weak-mindedness: debilidade de espírito
well-being: bem-estar
well-built: bem-feito
well-confirmed: bem confirmado
well-considered: bem-intencionado
well-digger: poceiro
well-groomed:
impecável
well-heeled:
bem calçado
well-known: bem conhecido
well-mannered: bem-educado
well-meaning: bem-intencionado
well-oiled: bem oleado
well-orchestrated: bem orquestrado
well-publicized: bem publicitado
well-tailored: bem talhada [roupa]
well-to-do: abastado
well-trained:
bem preparado
wet-nurse: acalentar
wham-bam: queca apressada
wide-gabled: de/com larga empena
wide-open: escancarado; aberto
windbag-columnists:
colunistas de pacotilha
wine-taster: provador de vinhos
word-shy: parco de palavras
working-class: classe trabalhadora
world-shaking [decree]: [decreto] que abanou o mundo
would-be [novelist]: futuro [romancista]
wrong-foot: contrapé
wrought-iron:
ferro forjado
yea-sayer: positivo
[Em construção: 372 entradas.]

28.10.09

Língua e ortografia

Ainda hoje

      Há cem anos, dizia Saussure: «Hoje, ainda, alguns homens ilustres confundem a língua com a ortografia; não dizia Gaston Deschamps [1861–1931] que Berthelot [1827–1907] “tinha preservado o francês da ruína” só porque ele se opusera à reforma da escrita?» (Curso de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure. Lisboa: Edições Dom Quixote, 3.ª ed., 1977, p. 59. Tradução de José Victor Adragão).

[Post 2776]

27.10.09

Tradução: «marcher»

Marcha

      Podia ler-se, imaginem, isto: «Few could accept the hollow rhetoric that the marchers had made their point.» Está em causa, adivinharam, a tradução de «marchers». «Marchantes»? Tem mais acepções, é verdade, mas a principal é a de «aquele que negoceia em gado para os açougues ou talhos». Então, que nome tem aquele que participa numa marcha («manifestação destinada a atrair a atenção das autoridades para determinados problemas de interesse geral, ou para alguma reivindicação particular», como se lê no Dicionário Houaiss)? É isso mesmo: participante na marcha ou manifestante.

[Post 2775]

Ortografia: «supercuecas»


Supercivilizado

      Parece que Lourenço, o super-herói, partiu pelo mundo fora à procura das suas cuecas vermelhas. Não sei se as encontrou, mas decerto que sim. Quem não encontrou as regras sobre o uso do hífen com o elemento de formação de palavras super- foi o editor. Super só se liga por hífen ao elemento seguinte quando este começa por h ou r. É difícil? Deve ter sido uma opção estética…

Ortografia: «antipobreza»


É raro


      «Estes são os resultados preliminares do inquérito realizado pela Amnistia Internacional Portugal, em parceria com a Rede Europeia Antipobreza e o Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa» («Maioria dos portugueses diz que pobreza veio para ficar», Público, 21.10.2009, p. 9).
      É isto que eu defendo: seja lá qual for a forma como, oficialmente, nos aparece a grafia, temos obrigação de escrever correctamente. No caso, em inglês é European Anti-Poverty Network (EAPN). Claro que as sumidades nacionais tinham de copiar: Rede Europeia Anti-Pobreza/Portugal (REAPN).

26.10.09

Ortografia: «alter ego»

O outro eu


      Há duas ou três semanas, um editor telefonou-me para saber como se escreve a locução substantiva «alter ego», que não encontrava em nenhum dicionário. Consulto dois, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e o Dicionário Houaiss, e em ambos encontro alter ego. Mas compreendo a dúvida, pois não é raro ver-se grafado com hífen: «Mas não se esperava que elas [as mulheres], subitamente, dominassem um disco do alter-ego de Paulo Furtado, relegando o cantor para segundo plano» («Um ‘homem tigre’ no mundo das mulheres», Luís Filipe Rodrigues, Diário de Notícias, 29.09.2009, p. 52).

25.10.09

Léxico: «censório»

Meu amigo


      Na emissão de anteontem do programa Contraditório, da Antena 1, Carlos Magno, provavelmente a pessoa em Portugal que mais vezes usa em vão a palavra «amigo», embalado na facilidade de discurso, de vez em quando inventa palavras: «[…] e acho que todos nós temos direito a ser o que somos sem que máquinas inquisitoriais ou censoriais venham agora aqui […]». Não existem todos os pares de homófonas que nos passam pela cabeça: censual/sensual, censorial/sensorial… Não, não: o adjectivo é censório. Que formará, com «sensório», outro par: censório/sensório.

24.10.09

Citações imperfeitas

Momento alto


      O padre Carreira das Neves tem, viu-se ontem no debate com José Saramago, uma perigosa propensão para resumir o que está a dizer com um «e tal», mas desta vez as coisas correram-lhe manifestamente mal. «Quando José Saramago diz que a Bíblia não sei quê e tal é um… é um…» Atalhou, agastado, prontamente Saramago: «Eu nunca disse: “A Bíblia não sei quê e tal.” Ou reproduz as minhas palavras, ou então...» «Tem toda a razão, meu caro amigo.»

Sobre «ruptura»

Rotura, ruptura, rutura…


      Prefiro «ruptura» a «rotura», e nunca pronuncio o p. E o leitor? Vem esta reflexão a propósito de ontem, no frente-a-frente, na SIC Notícias, entre Saldanha Sanches e Paulo Rangel (logo depois do debate alienante entre Carreira das Neves e José Saramago), o fiscalista ter articulado claramente o p de «ruptura». Fui ver o que dizem as obras relativas ao Acordo Ortográfico de 1990. Pelo que vejo, são consensuais sobre a queda do p neste vocábulo, excepto na variante brasileira do português (o que confirmo na 5.ª edição do VOLP). Quem sabe se não se deve à esperança que alguns falantes acalentam de, se agora articularem sonoramente cada c e cada p, depois da entrada em vigor do acordo não terem de prescindir deles…

Ortografia: «hidropisia»

Um erro lamentável


      «Já li, não sei onde, que as palavras “autopsia”, “necropsia” e “biopsia” não devem levar acento — embora muitos os usem...», escreve-me um leitor. «Há dias surgiu-me, numa leitura, a frase «a chamada hidrópsia fetal (que pode ser fatal)...». Procurei no Dicionário Médico de Manuila et al. e nos dicionários on-line Infopédia e Priberam, assim como no Portal da Língua Portuguesa e não encontro “hidropsia” nem “hidrópsia” — só aparece “hidropisia”. Nos meus dicionários em papel (Houaiss, da Academia, da SLP) é o mesmo. Mesmo o velho Faria (1855-57) só tem “hydropesia ou hydropisia” (aliás, das outras, só tem “autopsia”).» O leitor conclui escrevendo que no Google encontra tanto «hidropsia» como «hidrópsia».
      Ainda bem que não encontrou em nenhum dicionário: essas grafias, apesar de muito usadas, estão erradas. É mais um erro médico — mas deste não podemos pedir indemnização. Hidropisia é o termo médico para o derramamento de líquido seroso em tecidos ou em cavidade do corpo. (Ao que padece de hidropisia chama-se hidrópico.) Ora, o elemento de composição pospositivo -opsia (e a variante -ópsia) é usado em compostos eruditos da terminologia científica e está relacionado com «visão» e «exame»: acianopsia, acromatopsia, anopsia, biopsia, diacromatopsia, dictiopsia, discromatopsia, discromopsia, eritropsia, fonopsia, fotopsia, hemianopsia, irisopsia, macropsia, micropsia, miopsia, necropsia, oxiopsia, paropsia, protanopsia, teopsia, xantopsia, zoopsia… Temos então que os falantes não apenas fazem a língua, também a desfazem.

23.10.09

Derivação imprópria


Uma chiclete portuguesa


      «Top of mind é como a gíria publicitária classifica as marcas que se associam directamente ao produto. À semelhança de fenómenos como a Gillette, muitos referem-se à pastilha elástica como simplesmente chiclet» («Chiclets comemora 75 anos em Portugal», Renato Duarte, Público, 22.10.2009, p. 9). Em gramática damos-lhe o nome de derivação imprópria, assunto já aqui abordado mais do que uma vez. E para ser inteiramente correcto, o jornalista deveria ter escrito «chiclete», pois o termo é usado e já está dicionarizado.

Selecção vocabular

Digo o mesmo

«Pena foi que Edite Estrela, num estilo que não a deslustra, entendesse prosseguir na mesma senda de disparate-puxa-disparate e tratasse de ser mais saramaguista do que Saramago, e passou ao ataque a Mário David, acusando-o de ter tido uma “atitude inquisitorial”. A frase soa bem, apesar de nada ter a ver com a boutade do seu colega no Parlamento Europeu, pelo que se espera que o disparate fique por aqui, já que a cereja até já está colocada no bolo» («De novo o problema da liberdade de expressão», José Manuel Fernandes, Público, 22.10.2009, p. 38). A frase do director do Público também soa bem, e especialmente aquele «boutade», que duvido, todavia, que se aplique com inteira propriedade no contexto. Não escrever português complica sempre um pouco…

Textualidade bíblica

A Bíblia de Saramago

Da polémica (e publicidade) em torno da mais recente obra de Saramago, retive pelo menos duas coisas. Uma foi ter falado ao telefone (mas era engano) com uma senhora idosa que me disse (fui, é uma fraqueza recorrente, demasiado simpático) que Saramago escreveu a Bíblia. Tentei desconvencê-la, mas foi impossível. Outra foi a crónica de Miguel Gaspar no Público, de que cito esta frase: «“Eu leio apenas aquilo que lá está”, escreve Saramago, como se Saramago não soubesse que a Bíblia, como todos os textos, é aberto à pluralidade de leituras» («O Deus de Saramago», Miguel Gaspar, Público, 22.10.2009, p. 40). Não é preciso ter cursado Linguística para se saber que é um disparate, por ser um argumento reducionista, a afirmação do «nosso» Nobel da Literatura.

Sistão-Baluchistão

Imprevisível

Também é de saudar vivamente esta forma de grafar um topónimo que nos é estranho. Do Público, devo dizê-lo, esperava que grafasse, sei lá, Sistan-Baluchistão, a macaquear o inglês Sistan-Baluchistan. Mas não. «O Paquistão prometeu ontem ajudar o Irão a capturar os responsáveis por um ataque suicida que, no domingo, matou dezenas de pessoas na província do Sistão-Baluchistão» («Os pasdaran pedem licença para entrar no Paquistão», Público, 22.10.2009, p. 14).

«Pasdar/pasdaran»

Muito bem

«O general pasdar Mohammad Pakpour, cuja força foi directamente visada no ataque dos “Soldados de Deus”, não especifica, na sua declaração à televisão estatal iraniana, se pretende autorização do Governo de Islamabad ou das autoridades iranianas para perseguir os rebeldes além fronteira» («Os pasdaran pedem licença para entrar no Paquistão», Público, 22.10.2009, p. 14). Não é todos os dias que se vê tal respeito pelos plurais de termos estrangeiros. Em língua persa, pasdar significa «guarda», e pasdaran é a designação informal dos Guardas da Revolução, uma força paramilitar iraniana. (Só é pena o advérbio além-fronteiras estar duplamente mal grafado.)

Ortografia: «macarthismo»

Caça às incoerências

Numa tradução, leio «McCarthysmo». Na Infopédia, no verbete «Cornelius Lanczos», lê-se «maccartismo». No verbete «Frentes da Guerra Fria: 1946−1962», lê-se «macartista». No verbete «Joseph McCarthy», já se lê «McCarthismo». Como diria a minha avó materna, quantos mais são (nos departamentos das editoras), menos fazem. O Dicionário Houaiss regista macarthismo e a variante mccarthismo. O vocábulo refere uma época histórica? Não. Na definição deste dicionário, é a «prática política que se caracteriza pelo sectarismo, notadamente anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy (1909−1957), durante os anos 1950, nos E.U.A.». Logo, deverá grafar-se com minúscula inicial. O th deve-se ao facto de «os termos derivados de palavras estrangeiras com grafias estranhas ao português preservarem, neste dicionário, as características da grafia original, de acordo com praticamente todas as convenções ortográficas do português estabelecidas entre o Brasil e Portugal».

Major/minor II

Será «especialização»?


      Decerto que ainda se recordam da questão relativa à tradução de major/minor. Foi suficientemente controversa, e com comentários de académicos, à primeira vista os que teriam uma opinião mais abalizada, para se poder concluir que não é evidente. Hoje trago mais uma frase e a respectiva tradução. «In his junior year, X elected to become a prelaw sociology major.» As especificidades de cada realidade trazem sempre dificuldades ao tradutor, que desta vez verteu: «No seu primeiro ano, X escolheu especializar-se em Sociologia das Leis.»

22.10.09

Conceitos


Trocas

Rui Zink, escritor e professor universitário, escreveu recentemente: «“Estou cansada, não me chateies, dói-me a cabeça” ou a tirada mais cruel de todas: “Cheiras a álcool”, por isso pus-me a fazer zapping, agora já nem zapping é, perdeu um p, porque se tornou uma palavra aceite pelas gramáticas da língua portuguesa, a malta diz mal do acordo ortográfico como se aqui fôssemos todos lordes da língua, não somos, e agora é zaping que se diz, como pisa, já não é pizza, é piza, nem sei se tem z ou se tem s, só sei é que já nem sabe à mesma coisa, olhe quero uma piza (ou pisa) de cogumelos com fiambre, até parece que tem menos cogumelos e menos fiambre […]» («É muito triste ser homem», Metro, 14.10.2009, p. 9). «Aceite pelas gramáticas»? Troca de conceitos: os dicionários é que acolhem os vocábulos da língua — as gramáticas são obras que contêm os princípios e as normas da organização e funcionamento da língua. Se tivesse sido um cronista social a confundir os conceitos, ainda se aceitava.

Léxico: «pediculose»

Fazem comichão

«É preciso estar atento às cabeças que, vá lá saber-se porquê, dão mais comichão e apertar a vigilância em tempo de aulas: “Logo que se suspeite de pediculose [infestação por piolhos], deve iniciar-se o tratamento e avisar a escola”, sugere Álvaro Birne, pediatra» («Regresso às aulas», Andreia Pereira, Notícias Magazine, 6.09.2009, p. 71). Está explicado o termo: infestação por piolhos. Em latim, «piolho» dizia-se pēdis, is, e o adjectivo relativo era pĕdĭcŭlāris, e. Se tem algo que ver com pés? Semelhança, apenas: em latim, «pé» dizia-se pēs, pĕdis. Ah, sim, e «pezinho» era pĕdĭcŭlus, i.

Pontuação

Gramática inata

Todos os dias aprendo, e não o digo por humildade, algo sobre a língua. Não apenas leio, estudo. Tudo razões para ficar perplexo quando me dizem, e tantos já o fizeram, que pontuam por intuição. Lembrei-me agora disto quando reli a entrevista que o investigador e especialista em sintaxe teórica João Costa deu à revista Notícias Magazine (6.09.2009), em que lembra que os alunos que terminam o 1.º Ciclo «vão ter de aprender a pontuar (ninguém pontua bem por intuição) e como se estrutura um texto (o que também tem de ser aprendido explicitamente). Algumas pessoas dizem: “Eu escrevo muito bem e nunca tive de aprender a pontuar.” Pois, teve sorte. Inferiu a partir das leituras que fez as regras de pontuação». Apesar de, segundo este especialista, haver «uma parte da nossa gramática que é inata, nascemos com ela, tal como nascemos com outras competências cognitivas. Ou seja, nem todo o nosso conhecimento linguístico decorre de uma interacção com o input».

21.10.09

Léxico: «loden»

Imagem: http://www.born-for-loden.co.uk/

Símbolo do grande capital



      Se bem me lembro, o dele era verde-azeitona. Ou não seria? De qualquer modo, quem se lembra, porque fala nisso, é Clara Ferreira Alves: «Freitas do Amaral foi ridicularizado como um símbolo do grande capital porque usava um loden» («Eu, quando há calistos, não posso!», Clara Ferreira Alves, Expresso/Única, 25.09.2009, p. 96). Loden é vocábulo inglês com étimo no alto-alemão e os dicionários ingleses dão-lhe esta definição: «A durable, water-repellent, coarse woolen fabric used chiefly for coats and jackets.»

Ortografia: «Caim»

Ora essa

Um leitor escreveu-me a dizer que é urgente que eu esclareça qual a «forma de escrever o nome do irmão de Abel!... Caim, Caím ou Caín (como está na capa do livro de Saramago)?». Não sabia que havia estas dúvidas tão excruciantes. Comecemos pelo último. Caín existe — mas em espanhol. (Em latim, é Cain, como se lê na Vulgata: «Adam vero cognovit Evam uxo rem suam, quae concepit et peperit Cain dicens: “Acquisivi virum per Dominum”» [Gn 4, 1]). Temos então Caim e Caím. Ora, esta última forma é espúria, pois, como sabemos, as vogais tónicas i e u não levam acento agudo quando, precedidas de vogal que com elas não formarem ditongo, se encontrem em sílaba terminada em l, m, n, r, z, ou forem seguidas do digrama nh: adail, Saul, Caim, ruim, constituir, juiz, moinho.

20.10.09

«Quartel militar»?

Redundâncias ibéricas

Alguns jornais espanhóis referiram ultimamente que tinham sido detectados casos de gripe A num «cuartel militar» («quartel militar»). Agora, a Fundéu, Fundación del Español Urgente, vem recomendar que se deve evitar a redundância, dizendo: «[…] basta con decir cuartel, pues ante esa palabra cualquier hispanohablante piensa en los militares. Se trata de una redundancia innecesaria, si bien es cierto que hay también cuarteles de bomberos, de policía… Pero cuando se habla de estos últimos siempre se menciona específicamente de qué se trata, precisamente porque si se dice solo cuartel de inmediato se piensa en el militar». E em português? É o mesmo: quartel é, na definição do Dicionário Houaiss, a «construção, edifício destinado a abrigar tropas 2 p.ext. MIL qualquer edifício onde esteja alojado um regimento, batalhão, destacamento etc.». E também por cá se diz e escreve, redundantemente, «quartel militar», como nesta notícia da RTP: «A Universidade Junior [sic], no Porto, contou este ano com a participação de cinco mil jovens, mil dos quais em regime de internato com alojamento num quartel militar» («Jovens no quartel militar», 23.07.2009, aqui).

«Comuna/commie»

Sem preconceitos


      É uma boa surpresa ver que os dicionários, ou pelo menos alguns, como o muito difundido Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, não cederam a preconceitos e registam o vocábulo «comuna» na acepção, depreciativa, de «comunista». A língua inglesa também tem o termo correspondente, commie, e também está dicionarizado.

Tradução: «eulogy»


Espera aí!

«In his eulogy at the funeral for the girls…» E o tradutor: «Na sua eulogia feita durante o funeral das quatro raparigas…» Espera aí! O mais próximo que os dicionários da língua portuguesa registam é «eulógias», que são fragmentos de pão que os primeiros cristãos levavam para a consagração, na Missa. O termo inglês terá vindo do grego, mas através do latim medieval eulogium. Não, não é o étimo do nosso «elogio». Este vem do vocábulo latino ēlŏgĭum, ĭī, «inscrição; epitáfio; indicação, notícia breve, relatório, registo». O tradutor deveria ter optado, por exemplo, por elogio fúnebre.

19.10.09

Léxico: «bardo»

Outra poesia

«Neste dia o trabalho é mais duro, já que a Renova, sendo uma quinta velha, tem os bardos — fiadas de videiras — plantados mais juntos, impedindo a mecanização» («Um país nas vinhas», Susana Torrão, Notícias Sábado, 26.09.2009, p. 27). Quando ouvimos a palavra «bardo», normalmente é referida a Camões, e então, por antonomásia, o Bardo. (O étimo é o latim bardus, i, através do francês barde, que se referia ao cantor e poeta entre os Gauleses.) Mas este é outro bardo: vem de barda, na acepção de «tapume, formado por sebe, ramos, espinheiros ou silvas» e significa a fila de videiras ligadas a estacas e arames que formam um suporte vertical.

18.10.09

Regência verbal: «confrontar-se»

A pergunta essencial

«E é claro que, qualquer que seja o media, os seus responsáveis estão permanentemente confrontados à impossibilidade de os tratar e publicar todos» («A pergunta essencial», J.-M. Nobre-Correia, Diário de Notícias, 5.09.2009, p. 57). A pergunta essencial, no caso, é: conformamo-nos com a gramática ou inventamo-la? A regência do verbo confrontar na acepção de «ver-se diante», «deparar-se com» é feita com a preposição com, e fácil seria confutar a construção do autor aduzindo citações, mas não o farei. Quanto a media, o Livro de Estilo do Público recomenda, já que ninguém escreveria medium*, que se use, no singular, «órgão de comunicação (social)».

* Actualização em 23.10.2009

Bem, com algumas excepções: «Os blogues surgiram em massa, como um “medium rebelde”, sem regras e ao alcance de qualquer um» («Criada agência de blogues para fornecer conteúdos para jornais», Catarina Homem Marques, Público, 11.4.2006, p. 47).

17.10.09

Deep South/Sul Profundo


Assim mesmo

      «[Aiken] É uma cidade enriquecida por as suas centrais nucleares fornecerem a energia para a Carolina do Sul e o plutónio para as bombas de hidrogénio, mas guardando as mansões do Sul profundo, com varandas, balaustradas e colunas gregas» («Bill Clinton pinta Carolina do Sul às cores», Ferreira Fernandes, Diário de Notícias, 26.01.2008). Embora seja um conceito mais do que geográfico, Deep South é essencialmente um topónimo — pelo que se terá de grafar em português com iniciais maiúsculas: Sul Profundo.

Sobre «reformatório»

Voltou

«Mas, na sala do primeiro ano, Zachary é conhecido como o rapaz que levou um castigo e está a caminho do reformatório» («Criança arrisca reformatório por levar faca de almoço para escola», H. C., Diário de Notícias, 13.10.2009, p. 49). Ainda pensei que o facto de nas notícias dos jornais norte-americanos se ler a expressão reform school tinha sido determinante para a opção do jornalista por «reformatório», vocábulo muito menos usado actualmente, pois que agora se fala de institutos de reinserção social. Mas não. Já em Abril, e referindo-se a um adolescente díscolo e valdevinos do Sátão, distrito de Viseu, um jornalista usara o vocábulo: «Saiu do reformatório e aterroriza os pais» (Amadeu Araújo, Diário de Notícias, 7.04.2009). Antigamente, ao estabelecimento de educação para menores delinquentes ou em perigo de delinquência chamava-se, consoante o escopo legal, casa de correcção ou escola correccional.

Jargão médico III

Imperfeito

«Segundo o médico oncologista [Lourenço Marques, do Serviço de Medicina Paliativa do Hospital do Fundão], 91% dos 126 pacientes daquele serviço de saúde que morreram no ano passado fizeram opiáceos fortes da última vez que foram internados, e, destes, 60% receberam morfina injectável» («Portugueses são dos maiores consumidores de morfina do mundo», Catarina Cristão, Diário de Notícias, 11.10.2009, p. 14). Eu disse que era culpa dos médicos falar-se assim? Enganei-me: é culpa dos jornalistas, que não pensam duas vezes e vão atrás.

Léxico: «viciação»

Perfeito

«O mesmo garante Lourenço Marques, da unidade [Serviço de Medicina Paliativa do Hospital] do Fundão: “Não temos casos de viciação”» («Portugueses são dos maiores consumidores de morfina do mundo», Catarina Cristão, Diário de Notícias, 11.10.2009, p. 14). Não é muito comum ver-se este vocábulo usado nesta acepção (acto ou efeito de viciar-se; estado do que está viciado), mas está correcto. Provém do latim vītĭātĭo, ōnis, «corrupção, acção de corromper; violação, desonra».

16.10.09

Numerais: por extenso e em algarismos

Como calha

      Lembram-se, decerto, desta questão. A jornalista escrevera: «Partilha [Elinor Ostrom] as 10 milhões de coroas suecas (980 mil euros) com Oliver Williamson» («A primeira mulher Nobel da Economia», Ilídia Pinto, Diário de Notícias, 13.10.2009, p. 51). Dois dias antes, contudo, outra jornalista tinha escrito: «As instituições que irão receber os dez milhões de coroas suecas (980 mil euros) entregues ao Presidente dos EUA em Oslo a 10 de Dezembro ainda não estão definidas, mas ao tomar esta decisão, Obama veio seguir uma tradição dos chefes de Estado americanos que venceram o galardão» («Quando ganha um presidente ganham os pobres», Helena Tecedeiro, Diário de Notícias, 11.10.2009, p. 30). Sim, nesta frase o especificador já está correcto, mas reparem: no primeiro texto, «10 milhões»; no segundo, «dez milhões». Os numerais cardinais e ordinais escrevem-se por extenso até dez e décimo, respectivamente, e em algarismos a partir de 11 e 11.º No caso, contudo, estamos perante uma excepção: com quantias monetárias, usam-se os algarismos árabes.

Selecção vocabular

4.ª classe adiantada

      «A tragédia sucedeu num pequeno imóvel de três andares numa pequena rua da zona residencial de Raincy, considerada afluente, onde o criminoso habitava com seu pai, um antigo elemento das forças de segurança» («Discussão de vizinhos acaba num massacre em França», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 11.10.2009, p. 31). Sim, entre as acepções de «afluente» está a de «rico», mas tem de se adequar o vocabulário aos destinatários. Mesmo os portugueses com a sólida 4.ª classe de antigamente («que valia mais», não se cansam os próprios de nos lembrarem, «do que o 12.º ano de agora»), e são muitos, de afluentes só sabem que são rios que vão desaguar noutros rios. Sólida 4.ª classe… Vendo bem, mais do que sólida, era monolítica, pois, num igualitarismo bruto e cego, um aluno negro na Guiné, um «indígena», tinha de decorar os mesmíssimos afluentes e linhas ferroviárias da «Metrópole». A Linha do Vale do Vouga, a Linha do Dão, do Douro, do Minho, os reis de Portugal, mas também os portos da Índia Portuguesa, os portos de Angola, etc. Era o «Império».

Ortografia: «Évora Monte»


Variedade e erro

      «Quando D. Miguel I partiu para o exílio em 1834, deixou tudo em Portugal, excepto o prestígio que lhe abriu as portas das casas reais europeias. Em plena baía de Cascais, o rei denunciou a Concessão, afirmando que esta lhe fora imposta: ao fazê-lo perdeu automaticamente o direito a uma pensão vitalícia que Portugal ficara obrigado a pagar-lhe por esse acordo» («As ligações incríveis dos Bragança», Rita Roby Gonçalves, Diário de Notícias, 11.10.2009, p. 65). Mais conhecida como Convenção de Évora Monte, também é conhecida por Concessão de Évora Monte ou Capitulação de Évora Monte. E o nome da localidade ora aparece como o escrevi, que é considerada a forma correcta, ora como Évora-Monte, ora como Evoramonte, ora, num delírio antigramatical, como Évoramonte.

15.10.09

Plural de «manda-chuva»

Funciona… se pensarmos
O original falava em «many big-shot professionals», e o tradutor achou que seriam «demasiados profissionais manda-chuva». Pode ter consultado um dicionário (e não encontrou resposta para a sua dúvida), mas, se se tivesse posto a pensar, teria lá chegado com facilidade. Vamos lá ver: ele diz ou escreve «em toda a minha vida, só tive três guarda-chuva»? Pois claro que não! Nas palavras compostas formadas por verbo+substantivo, o segundo elemento pluraliza: guarda-chuvas, manda-chuvas.Com o Acordo Ortográfico de 1990, este vocábulo composto passará a escrever-se mandachuva.

Léxico: «autarca-modelo»

Funciona

Ora cá está a analogia a funcionar: «[Rui Rio] É actualmente o autarca-modelo do PSD, mas poderá, querendo, ocupar outras responsabilidades» («Conquistas e desilusões autárquicas do PSD», Diário de Notícias, 13.10.2009, p. 4). Se se escreve, e até está dicionarizado, andar-modelo, também se escreverá autarca-modelo.

Translineação no latim

Facílimo

Se era, em vários aspectos, como a conjugação verbal e as declinações, mais complexo do que a língua portuguesa, o latim apresentava, comparativamente, particularidades gramaticais mais fáceis, como as regras da translineação, que se resumem nisto: duas consoantes no interior da palavra dividem-se, ficando uma em cada sílaba: fes-sus; pau-xil-lis-per; pas-ti-na-tum; ap-pa-ra-tus. A excepção a esta regra é o grupo consoante + l, r: lo-cu-ple-ta-tor; fi-bra. Havendo três consoantes, as duas primeiras pertencem à sílaba anterior e a terceira à seguinte, sanc-tus; sump-si; respeitando, porém, sempre o grupo indivisível surda/líquida, as-pri-tu-do; fic-trix; Zan-clei-us. Por outro lado, uma vogal separa-se da vogal seguinte, excepto, naturalmente, se se tratar de um ditongo: ae, au, oe, eu, ui.

14.10.09

Lacunas lexicográficas


Canté!



      «As memórias de Vitorino são embaladas pelo canto alentejano e pelo tango. No Redondo, quando era ainda pequeno, sabia sempre que era dia de cinema quando pelo altifalante instalado no telhado do cine-teatro saíam os sons de Adios pampa mia, de Carlos Gardel» («Vitorino canta o tango argentino com sotaque alentejano», Maria João Caetano, Diário de Notícias, 13.10.2009, p. 66). Canto ou cante alentejano. Não conheço nenhum dicionário que registe o termo cante, e bem podiam. O Dicionário Houaiss, por exemplo, regista cante hondo. É provável que o étimo do nosso vocábulo esteja no espanhol cante («Acción y efecto de cantar cualquier canto popular andaluz o próximo», in DRAE). Vitorino, tanguista? Não, o cantor «tinha um pé duro». Na língua portuguesa, tanguista é somente aquele que dança tangos, ao passo que em espanhol o vocábulo designa também o autor ou intérprete de tangos. (Cara Maria João Caetano: à casa de espectáculos com capacidade para a representação de peças de teatro e para a projecção de filmes dá-se o nome de cineteatro — sem hífen. Ah, e o título é Adiós, pampa mía!...)

Disparates na televisão

Imagem: http://www.canalpanda.pt/

Três metades de nada


O cozinheiro do Panda Cozinha, Tito Coelho (que deveria falar menos e evitar os «prontos»), anda há uma semana a preparar pratos com arepas. No final do episódio de hoje, propôs que metade das arepas fosse para ele, metade para o Panda e… metade para o Lobo Mau. Seria possível, sim, se dispusessem de várias doses e cada um comesse metade.

13.10.09

Léxico: «preceptorado»

De mal a pior

Catarina Guerreiro, jornalista do Diário de Notícias, foi visitar o Colégio Mira Rio, a escola mais bem classificada na tabela das escolas com melhores resultados nos exames deste ano (o chamado «ranking das escolas»). Todas as alunas, afirma, estavam nas aulas. Excepto uma. E onde estava esta? Pois «numa cadeira, no meio da relva, num jardim que existe à entrada da escola». Sozinha? Não. «À sua frente, uma professora conversava calmamente com ela.» Que amena conversa seria esta? «Tratava-se de uma ‘reunião de percepturado’», garante a jornalista, que escreve mais duas vezes «percepturado». Está-se logo a ver: de «preceptor», «percepturado»… Não era preciso, parece-me, saber latim: praeceptor, praecipio+-tor, praecipio, prae+capio… Afinal, até o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, por exemplo, regista o vocábulo: preceptorado: «influência, orientação. Direcção pedagógica». (Não, não fui seminarii alumnus — é assim que se diz, caro Fernando? —, mas tenho pena.)

Especificador de «milhão»

Vícios de linguagem

      «Partilha [Elinor Ostrom] as 10 milhões de coroas suecas (980 mil euros) com Oliver Williamson» («A primeira mulher Nobel da Economia», Ilídia Pinto, Diário de Notícias, 13.10.2009, p. 51). Acontece que «milhão» é um substantivo masculino (ao passo que «mil», por exemplo, é um numeral), pelo que deve ser antecedido de um especificador (artigo definido, artigo indefinido, pronomes, etc.) do género masculino.
      Fiquei a saber, por um texto de apoio («Um prémio ainda polémico») àquele que cito acima, que, afinal, o prémio não tem a designação que lhe é habitualmente dada: «Incorrectamente referido como Nobel da Economia, o galardão foi, na verdade, instituído em 1968 pelo Sveriges Riksbank, o Banco Central da Suécia, e atribuído pela primeira vez no ano seguinte. A confusão resulta da designação oficial — Prémio Sveriges Riksbank de Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel —, mas o prémio é pago com dinheiro público.»

Notas bibliográficas

Há quem leia

      Sinto que se tem por vezes a ideia de que notas bibliográficas, índices e outras partes eventuais de uma obra não são lidas por ninguém. Mas não é assim, e descurar a sua correcção pode ter custos, porque há sempre quem esteja atento: «Contudo, nem sempre deparamos [na obra D. Maria I — A Rainha Louca, de Luísa Paiva Boléo. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009] com uma redacção fluente do texto; e as notas bibliográficas têm erros e repetições, por vezes na mesma página» (António Valdemar, Expresso/Actual, 9.10.2009, p. 31). Que sirva de escarmento.

«Governância» II

Está melhor

      «Foi preciso a crise abater-se sobre a economia mundial para que uma mulher, Elinor Ostrom, 76 anos, da Universidade de Bloomington no Indiana, fosse distinguida com o Nobel da Economia. Quarenta e um anos após o surgimento do galardão, os seus estudos sobre a governação económica das empresas valeram-lhe a maior distinção a que um economista pode aspirar» («Primeira mulher a ser galardoada», Diana Ramos, Correio da Manhã, 13.10.2009, p. 21). Isto foi hoje, porque ontem o Correio da Manhã falava em «governança». A edição de hoje do Diário de Notícias também opta por «governação». Contudo, certa imprensa, talvez receosa de que os leitores não dominem a língua portuguesa, usa o termo inglês, governance. Só faltou ter-se usado «governância», como já li.

Léxico: «Xiistão»

E assim até ao infinito

Acabo de rever um texto em que foi usada a palavra «Xiistão». Foi a segunda vez que a li, a primeira tinha sido há quatro anos. Mesmo da primeira vez, aquilo que pretendia significar saltou logo aos meus olhos ― como terá saltado aos olhos da maioria dos leitores. A produtividade (ou criatividade), que é o nome que na linguística se dá à capacidade de interpretarmos ou produzirmos enunciados que nunca antes ouvimos ou lemos, é uma das mais admiráveis propriedades das línguas naturais. «O pressentimento terá alguma substância, pois receia-se o surgimento de uma espécie de “Xiistão” no Sul do país a ombrear com o Curdistão, no Norte — ambas regiões ricas em petróleo» («Constituição iraquiana põe sunitas em pé de guerra», Cadi Fernandes, Diário de Notícias, 30.08.2005).

12.10.09

Sobre «podar»

Julgue quem puder

Tratava-se de traduzir uma frase latina: «Agricola terras arabat, frumentum seminabat, paruas populos secabat.» Alguém propôs que fosse: «O lavrador lavrava, semeava trigo e podava pequenos choupos.» A questão é se o vocábulo podar não se aplica somente a árvores de fruto. À margem da questão, é interessante verificar como do mesmo termo, putare (putō, āre, āuī, ātum), que inicialmente significava somente podar, se formou, na língua latina, uma outra acepção, a de julgar. E como é que isto aconteceu? Pois porque para podar é preciso avaliar, ponderar — julgar — que ramos devem ser cortados (amputados).

11.10.09

Citações e arroba

Sem queixas

«Parece que o Times», escreve Daniel Okrent, «se porta muito bem na rectificação das citações mal feitas. No início de Dezembro, quando [a] expressão “n’é”, de Sylvester Croom, treinador de râguebi do Estado do Mississipi, foi branqueada como inglês padrão [@], surgiu de imediato uma correcção» (O Provedor. Selecção de crónicas, textos, e até algumas retractações do Provedor dos Leitores do New York Times, de Daniel Okrent. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 65. Tradução de Victor Silva). Cá, os entrevistados não se podem queixar muito da imprensa: não raramente, os jornalistas limitam-se a transcrever as declarações, deixando ficar erros gramaticais de toda a espécie. Fora de contexto, como muito bem explica Okrent, ficam quase todas as citações. Só uma perguntinha: que faz ali aquela arroba? No sítio do NYT, lê-se isto: «The Times seems to be pretty good about rectifying misquotations; in early December, when Mississippi State football coach Sylvester Croom’s spoken “ain’t” was prettified into standard English, a correction appeared swiftly.»

Actualização em 12.10.2009

Não se incomodem, eu respondo. A explicação da arroba está aqui: «Quando o contexto não fornece informação suficiente (título, data e lugar da publicação), inseri [@] para que o leitor possa localizar facilmente uma versão da referência na Internet, o que significa que o artigo mencionado pode ser encontrado no site www.publicaffairsbooks.com/publiceditor#1» (p. 43).

10.10.09

Sobre «crisma»

Não vejo porquê


      Alguns jornalistas já vão sentindo, o que me parece um manifesto exagero, que devem explicar o que é o crisma: «Curiosamente, noutros marcos importantes da vida religiosa dos crentes, como o baptismo, a primeira comunhão ou o crisma (confirmação do baptismo), a descida não é tão acentuada» («Casamentos católicos caem 62% em apenas uma década», Rita Carvalho, Diário de Notícias, 8.10.2009, p. 13). Curiosamente também, vemos que no Dicionário Houaiss o vocábulo «crisma» é dado como pertencendo aos dois géneros, sem distinguir entre o óleo que serve para administrar (masculino) este sacramento e o próprio sacramento (feminino), como fazem alguns dicionários. Para o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, óleo, sacramento e mudança de nome é tudo do género masculino.

Léxico: «business angels»

Uma no cravo…

      «O enquadramento fiscal dos investidores informais em capital de risco, ou business angels, poderá ser incluído já no Orçamento do Estado para 2010, anunciou António Castro Guerra, secretário de Estado-adjunto da Indústria» («‘Business angels’ vão ter regime fiscal específico», Diário de Notícias, 8.10.2009, p. 33). Mais uma locução inglesa bem lançada na imprensa e com a qual vamos ter de viver nos próximos tempos. Desta vez, o jornalista teve o bom senso, que nem sempre nem todos têm, de explicar o que significa em português.
      Por outro lado, vejam: «secretário de Estado-adjunto». No sítio do Governo, lê-se «Secretário de Estado Adjunto». Mesmo no jornal Público, de uma maneira geral pouco propenso a apuros formais, é desta forma que é grafado, em consonância com o recomendado no seu Livro de Estilo, em que se pode ler que director adjunto e ministro adjunto não levam hífen (p. 90), e na página 101, na entrada relativa a cargos, lê-se secretário de Estado adjunto.

Léxico da chapelaria

E por falar nisso…


      Na recensão da obra Indignação, de Philip Roth (Lisboa: Dom Quixote, 2009, tradução de Francisco Agarez), escreveu Paulo Nogueira: «Como sempre, Roth é exímio ao facultar o contexto. Na “Pastoral Americana”, ficamos a saber tudo sobre fabricação de luvas (talvez mais do que o necessário). Aqui, quando acabamos o livro, podemos abrir um talho» (Actual, 3.10.2009, p. 34). Isto porque o pai do protagonista, Markus Messner, é talhante kosher. Sou grande apreciador deste tipo de literatura, e, se bem que o contexto não seja dado apenas pelo recurso a um léxico próprio, quero contribuir para que futuras obras forneçam contextos informativos. Hoje divulgo alguns termos ligados à chapelaria. Poucos, mas outros léxicos, como o relativo ao cavalo, começaram assim e actualmente têm mais de mil entradas.
Cardiço m. Espécie de carda pequena, usada pelos sombreireiros para levantar o pêlo aos chapéus.
Castrorrosa f. Máquina da indústria de chapelaria.
Copa f. A parte do chapéu, boné, etc., que cobre directamente a cabeça.
Formilhão m. Instrumento com que os chapeleiros enformam as abas dos chapéus.
Formilho m. Instrumento de chapeleiro, para enformar a boca da copa dos chapéus.
Fulista m. Oficial de chapelaria encarregado de preparar os feltros.
Potança f. Prov. dur. Peça de madeira ou cepo sobre a qual os chapeleiros amaciam e lustram os chapéus de seda.
Propriagem f. Trabalho que os chapeleiros executam nos chapéus depois de tintos.│Oficina onde se preparam os chapéus.
Secretagem f. Operação que consiste na aplicação de químicos, à base de compostos de mercúrio, destinados a realizar transformações específicas no pêlo.
Sombreireiro m. Fabricante ou vendedor de sombreiros ou chapéus.
Suflagem f. Operação em que o pêlo é afastado e soprado dentro de uma máquina, de tal forma que o mais leve passa à operação seguinte e o mais pesado, com impurezas, é retido e rejeitado.

Léxico: «desinscrever»

Sim e sopas


      Um leitor consultou-me para saber o que acho do uso do verbo «desinscrever». Usou-o numa «newsletter», diz (e melhor diria se tivesse dito «boletim informativo»), e um leitor «insurgiu-se», escrevendo que o vocábulo não existia, mesmo com o Acordo Ortográfico de 1990, afirmação que revela bem a dimensão da ignorância do leitor. Será melhor, pergunta, usar «cancelar» em vez daquele verbo? Respondi ao consulente que, embora não esteja dicionarizado, nada impede que se forme o verbo desinscrever, mas que seguisse, ainda assim, o conselho do seu leitor. No final da mensagem do consulente, vinha o desabafo de que, tendo consultado o «Ciberdúvidas, também se fica na mesma, nem sim nem sopas». Só depois de ter respondido ao leitor é que fui consultar o Ciberdúvidas. O consultor F. V. P. da Fonseca escreveu em 2006: «De facto, anular a inscrição é que está bem, embora teoricamente pudesse admitir-se o termo desinscrever-se, que não encontrei em lado nenhum, por ninguém se ter lembrado de inventá-lo.» Eu não encontrei dicionarizado o verbo «desinscrever», mas não afirmei que «anular a inscrição» é que está bem. Na Internet, há milhares de ocorrências da palavra, pelo que já alguém se lembrou de inventá-la. (Afinal, o prefixo des- é o mais produtivo da língua portuguesa.) No sítio da Universidade de Coimbra, por exemplo, leio: «Assim, se um outro utilizador se desinscrever numa das turmas, ou se novas vagas/turmas forem criadas para a disciplina, o utilizador receberá essa informação por email.» Fico a pensar se em 2006 o termo não aparecia de facto «em lado nenhum». A intenção de traduzir numa só palavra o verbo inglês unsubscribe poderá estar na origem do uso relativamente frequente do verbo desinscrever.

9.10.09

Ortografia: «ribossoma»


Dois esses


      «Toda a gente já tomou antibióticos pelo menos uma vez na vida, mas a maioria desconhece o que são os ribosomas» («Chave para antibióticos premiada», Carla Aguiar, Diário de Notícias, 8.10.2009, p. 30). Se a jornalista escreve 13 vezes «ribosoma», convicção não lhe faltará. Com um s apenas, só se for em inglês — ribosome. Ainda que uma cabeleireira mande fazer um toldo, cartões-de-visita e publicidade em que se lê «unisexo», vá que não vá, mas uma jornalista tem de dominar as basezinhas da ortografia.

«Cônsul-geral/consulesa-geral»


Trapalhadas

      «O Consulado Geral de Portugal em Caracas vai premiar trabalhos de investigação sobre o associativismo português na Venezuela, realizados por alunos luso-venezuelanos de Comunicação Social, revelou ontem a cônsul-geral Isabel Brilhante Pedrosa» («Consulado de Caracas apoia associativismo», Diário de Notícias, 8.10.2009, p. 12). Compreendo que a titular do cargo se auto-intitule, em documentos legais, cônsul-geral, mas porque não escreveu o jornalista «consulesa-geral»? Até o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora regista, em verbete autónomo, consulesa: «funcionária do ministério dos Negócios Estrangeiros de um país que exerce a sua actividade em país estrangeiro e tem a seu cargo a defesa dos interesses dos seus compatriotas e das boas relações comerciais entre os dois países». (O Dicionário Houaiss, por seu lado, regista «consulesa», mas somente no verbete de «cônsul».) Mais estranho ainda é o jornalista ter grafado, numa discrepância inexplicável, «Consulado Geral» e «cônsul-geral». Apesar de não se colher uma opinião consensual nos dicionários, ou se usa o hífen em ambos os vocábulos ou em nenhum. Prefiro, seguindo o que estabelece o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, cônsul-geral e consulado-geral.

8.10.09

Prefixo re- no novo acordo

Mal pensado


      «Pode também re-endereçar mensagens entre duas contas» («Cem pessoas presas no caso das ‘passwords’», Pedro Fonseca, Diário de Notícias, 8.10.2009, p. 50). Temos de tudo: jornais que adoptaram (mais ou menos, como vimos) as regras do Acordo Ortográfico de 1990, jornais que respeitam estas regras apenas numa (!) coluna e jornais que, de vez em quando, escrevem certos vocábulos em conformidade com o acordo.
      É verdade que a alínea b), n.º 1, da Base XVI do Acordo Ortográfico de 1990 não exemplifica com o prefixo re- (e parece que os redactores do texto se esqueceram dele), mas, por analogia com os que ali são referidos, se o segundo elemento começar por e, deverá ser seguido de hífen. É o caso de re-endereçar. O que sucede é que o VOLP não seguiu a regra. Só verbos, vejam quantos sofreriam esta alteração: reedificar, reeditar, reeducar, reeleger, reembolsar, reencarnar, reencontrar, reentrar, reenviar, reerguer, reescalonar, reescrever, reestruturar, reestudar, reexaminar... Mas como regras são regras, o programa FLIP 7, que os computadores da redacção do Record têm instalado, mandam separar por hífen o prefixo re- quando o segundo elemento se inicia com a vogal e.

Ortografia: «açafrão-da-índia»

Isso era dantes


      «São precisas 100 mil flores da espécie Crocus sativus para obter 500 gramas de açafrão. Não admira que esta seja a especiaria mais cara do mundo e que muitos optem por usar um substituto: o açafrão das índias, extraído da raiz de uma planta da família do gengibre» («Especiaria de luxo», Teresa Resende, Expresso/Única, 18.07.2009, p. 92). Em termos de ortografia, o Expresso e as publicações que o acompanham estão actualmente muito longe dos cuidados de outrora. Ignorando a Crocus sativus, que dizer deste açafrão das índias? Que percebia, neste caso, que grafassem com maiúscula inicial o topónimo. Correcto, contudo, é açafrão-da-índia, tal como açafrão-agreste, açafrão-bastardo, açafrão-bastardo, açafrão-bravo, açafrão-primavera, açafrão da terra, açafrão-de-outono, açafrão-do-campo, açafrão-do-mato, açafrão-palhinha, açafrão-vermelho.

7.10.09

Léxico: «metroviário»

Nova

      «Entrou no sector ferroviário, com a operação da Fertagus, que liga Setúbal a Lisboa, e iniciou-se também no metroviário, com o Metro do Sul do Tejo» («O rei do garrafão», João Palma Ferreira, Expresso/Única, 18.07.2009, p. 40). Não é palavra que apareça todos os dias. Vem assim fazer companhia a ferroviário, rodoviário e rodoferroviário. O Dicionário Houaiss regista-o: «adj.s.m. (c1985) B relativo a ou o funcionário, agente, empregado do metropolitano (‘sistema de transporte’)».

6.10.09

Nado-morto/nado-vivo

Explicação

      Todos os dias deparamos com incoerências e lacunas nos dicionários. O que explica que nem todos os dicionários registem nado-vivo — se todos registam nado-morto? Há-de ser a explicação para, ao lado de nado-morto, sobretudo em estudos estatísticos, aparecer nado vivo.

5.10.09

«Dreadlocks» e «rastas»

Um ano antes


      «Gosto do cabelo dele, que é escuro e espesso e com dreadlocks, chegando-lhe quase aos ombros» (Um Aniversário Inesquecível, de Cathy Cassidy. Tradução de Cristina Queiroz. Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2008, p. 58). Nesta tradução, a tradutora preferiu dreadlocks a «rastas», ao contrário do que vimos aqui.

«Bundle of straw»?

Imagem: http://www.hit-vietnam.com/


Um estágio no campo


      «Saltamos um portão de quinta e avançamos por um caminho íngreme e escorregadio. O lavrador tinha acabado de cortar o feno e tinha-o atado em medas. Cheirava maravilhosamente» (Um Aniversário Inesquecível, de Cathy Cassidy. Tradução de Cristina Queiroz. Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2008, p. 185). Aos meninos das cidades, os pais levam-nos a casa dos avós para verem donde vêm os ovos. Quem leva os tradutores ao campo (já que eles não querem ir aos dicionários) para estes verem o que é uma meda? Acredito que cheirasse maravilhosamente, mas o lavrador não tinha atado o feno em medas.