31.3.11

Como se escreve nos jornais

Mas não sai

      Na redacção. Não são dos piores. Mas uma jornalista escreveu que «Nuno Alves Pereira levou a sua hoste para a Herdade dos Atoleiros, 2,5 km a sul de Fronteira». E, como escreveu duas vezes o nome daquela maneira, decerto que pensará que é assim mesmo. Nun’Álvares Pereira, vamos lá usar até o apóstrofo. Não são dos piores, mas a pontuação? Mais um estágio no Inferno. Ou no Paraíso?

[Post 4638]

«Acto contínuo»

E falhado

      «Talvez por ter ouvido a voz do dono ou por qualquer outra razão seguramente de intervenção divina, o certo é que o cavalo, acto imediato, deu um valente coice numa rocha. Para espanto de toda a comitiva real, a rocha cedeu e dela começou a brotar água» (Mafalda Lopes da Costa, Histórias Assim Mesmo, 29.03.2011).
      Sempre ouvi, li, usei e confirmei agora mesmo — acto contínuo, isto é, em seguida, imediatamente; sem interrupção, continuamente. Só porque «contínuo» e «imediato» são parcialmente sinónimos não vamos agora substituir termos de uma locução fixa, não é? Como? Sim? Estão aqui a dizer-me que Lídia Jorge também usa, e não poucas vezes, esta expressão: «Acto imediato, a porta escancara-se sobre o hall, e a tia Gininha, carregando ao colo a bebé Artemisa, com os dois bracinhos levantados, surgiu do interior das paredes atapetadas» (O Vento Assobiando nas Gruas. Revisão tipográfica: Filipe Rodrigues. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 5.ª ed., 2006, p. 428). Aqui, também faltou um revisor filológico. Para atingir a lábil imortalidade, António Lobo Antunes há muito que se muniu de um.
      O erro talvez tenha origem no cruzamento da expressão acto contínuo (imediatamente) com a expressão de imediato (imediatamente). Para confundir ainda mais, podíamos também falar da locução, agora caída em desuso, de contínuo.

[Post 4637]


«Grosso modo»

Grosserias

      «Daí também que a região onde os Mouros se estabeleceram tenha ficado conhecida como a região saloia. E apesar de não ser muito clara nem bem delimitada, esta zona abarca por tradição, e grosso modo, Mafra, Sintra e Loures» (Mafalda Lopes da Costa, Lugares Comuns, Antena 1, 30.03.2011).
      A pronúncia da expressão latina grosso modo é a peculiar do latim: /gròsso mòdo/. Se Mafalda Lopes da Costa ou quem quer que seja pretender falar em português, usará, para dizer o mesmo, «aproximadamente», «mais coisa, menos coisa», etc. Bem sei que no Prontuário Sonoro se pronuncia como a jornalista o fez. Na desgraça é sempre bom não estarmos sós, dizem os egoístas.

[Post 4636]

30.3.11

Sobre «banal»

Purismo vs. pureza

      Revisão de uma tradução do inglês. Demasiados «banais» por aqui. Hum... O bom Vasco, como diz Montexto, terá dito algo sobre isto? Decerto, pois, ainda que tenha escrito menos do que Enid Blyton, por exemplo, ainda assim não escreveu pouco. «A expressão artística muito ganha com a pureza. Não, porém, com o purismo. Pureza é virtude. Purismo é doença. Se as palavras tiverem artes de hipnotizar a força vernácula, que se há-de fazer?
      Uma vez registei 7 palavras portuguesas para evitar banal. Note-se bem; para “evitar”. Não para expulsar. São elas: frívolo, fútil, correntio, corriqueiro, trivial, vulgar, usual. 7 palavras, 7 virtudes da nossa língua. Mas, se há 7 virtudes, também há 7 pecados, e há quem tenha 7 fôlegos. Por exemplo, o gato, e esta palavrinha banal, que não quer sair do nosso idioma» (Vasco Botelho de Amaral, Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português. Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 423).


[Post 4635]

«Ferida assanhada»

Todos juntos

      É sempre uma surpresa ver que há formas semelhantes de dizer as coisas em línguas diferentes, quase holismos. Seja isto: «There’s just one blister, but it’s very red and angry.» «É só uma bolha, mas é muito vermelha e assanhada.» Não está em todos os dicionários recentes, mas lá o encontramos no venerando Morais: «“Ferida assanhada”, feita peyor, mais dorida.» E no Grande Dicionário de Sinônimos e Antônimos de Osmar Barbosa (Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 70) também está registado no verbete «assanhado»: «Inflamado, agravado, exacerbado: Ferida assanhadaOs diccionarios estam cada vez peyores...


[Post 4634]

Sobre «pallbearer», de novo

Assim será

      Decerto que ainda se lembram de aqui ter referido como traduzir o inglês pallbearer. Pois hoje surgiu-me traduzida como «carregador de caixão». É como diz Francisco Agarez: só uma locução.
      «Não se trata de gente POBRE ou MISERÁVEL, nem de carregadores de caixão de defunto...» (A Linguagem dos Esportes de Massa e a Gíria no Futebol, Luiz Cesar Saraiva Feijó. Rio de Janeiro: UERJ, 1994, p. 105). «A mãe do falecido, emocionada, convida-o para carregar o caixão (informação cultural: o pallbearer do título original é isso, carregador de caixão)» (Veja, 45-48, Abril de 1996, p. 51).

[Post 4633]


Interjeições

Ena!

      Já aqui vimos mais de uma vez como as interjeições têm sido descuradas por dicionários, gramáticas e — o que é pior — pelos tradutores. Assim, nem sequer uma vez vejo a interjeição inglesa wow, aportuguesada em uau e muito usada pelos mais jovens, vertida de outra forma que não «uau». Ora temos melhor e nosso: ena, por exemplo. Exprime surpresa e admiração, como wow. Ou, pelo menos, que variem, usando ora uma ora outra.
      E já que foquei novamente esta questão, é a oportunidade ideal para sugerir que os responsáveis do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que tão atentamente, ao que me parece, seguem este blogue, comecem a referir, no verbete de cada interjeição, o que exprime, de que tipo é. Os leitores iam agradecer.


[Post 4632]

Ortografia: «strogonoff»

Língua de molho

      Caro M. L.: é com minúscula: «strogonoff». Repare, porém, como todos os dicionários registam (o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora diz que vem do inglês; o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que é do francês) que o étimo é stroganoff. Ora, deviam registar que é strogonoff (ou strogonov), ou os leitores menos desatentos vão achar pouco congruente. Este último dicionário e o Dicionário Houaiss acolhem também o aportuguesamento: estrogonofe.

[Post 4631]


Anglicismos

Haja ouvidos e vento

      Ontem, Miguel Esteves Cardoso levantou-se menos inglês que nunca, e pôs-se a desancar nos anglicismos mais óbvios usados na imprensa, e em especial no jornal em que publica a sua crónica diária.
      «Ontem, a Standard & Poor’s cortou o rating português para BBB-, “a apenas um passo do nível denominado como junk”, dizia o PÚBLICO online. Podia ser pior: “a agência baixou também o rating atribuído à Grécia, para BB-, três níveis abaixo do português”. O FT.com adiantava que a S&P tinha tirado Portugal “da lista creditwatch negative”, o que se presume ser coisa boa e de pouco consolo.
      O downgrading do rating para quase junk pede que se pense mais em português. Desgraduar é só uma palavra, ao contrário da inglesa, que são duas coladas. Se existe a graduação do vinho e há anos em que o grau é menor, também existirá a desgraduação. Ou degradação. Ou desvalorização. Ou, mais estupidamente, despromoção.
      O rating ainda é mais fácil: é escalão ou cotação ou, melhor, por serem four letter words: grau, nota ou furo. Afinal, é uma avaliação quantificada, como as estrelas do PÚBLICO. Junk é americano para lixo (e ultimamente calão para qualquer genitália). Também se poderia traduzir zero, já que a agência classifica a Grécia como estando a dois graus abaixo de zero, enquanto Portugal se mantém a um grau acima de zero» («Embarquemos no junco», Miguel Esteves Cardoso, Público, 30.03.2011, p. 39).
      Nos noticiários da Antena 1, nunca ouvi a palavra junk — mas também era só o que faltava. Diziam «lixo», que é junk mas é português. O aportuguesamento devia ser sempre a última opção. O ideal seria encontrar termos em português para traduzir os estrangeirismos. Assim, os termos aventados por Miguel Esteves Cardoso são tão bons como outros. O problema é que são aventados — ou seja, e etimologicamente, atirados ao vento —, não são sugeridos ou recomendados por uma entidade que vele pela língua, porque a não temos.

[Post 4630]

29.3.11

Elipse de «com»

Não se fala mais nisso

      Não há semana em que não veja um original inglês em que aparece uma frase com a estrutura destoutra: «[…] Ethan said, his chin set sharp as an arrowhead.» Tradução invariavelmente encontrável: «[…] disse Ethan, o queixo esticado como a ponta de uma seta.» Cheguei a focar e a increpar aqui esta via única de verter para português esta sintaxe. Aliás, honestamente, até a reputei errada. Estava enganado, mas fiz bem em mostrar aos tradutores que podem e devem variar. Ora cá está o bom Vasco a pontificar (zurzindo, de caminho, o autor da Estilística da Língua Portuguesa): «Têm-se criticado redacções como esta assim — “ela..., os olhos na mãe postos...”. Há quem julgue só correcto — ela..., com os olhos na mãe postos.
      Mostrei, com exemplos clássicos, no referido Dicionário, que a omissão de com anda abonada pelos melhores autores, e não pode considerar-se “viciosa”» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Vasco Botelho de Amaral. Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 421).

[Post 4629]


Sobre «pontificar»

Ou seja?...

      «Dez milhões de euros é a quantia reclamada à sociedade de advogados PLMJ, onde, entre outros, pontifica José Miguel Júdice, que está a ser acusada de ter deixado prescrever o prazo de envio de um recurso e, com esse acto, ter gorado algumas expectativas de indemnização» («Sociedade de advogados na iminência de pagar indemnização de dez milhões de euros», José Bento Amaro, Público, 29.03.2011, p. 10).
      Se o leitor não sabe o que significa «pontificar», não é por qualquer dicionário que chega a compreender o que é. Para o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, «pontificar» é «celebrar missa com capa e pontifical» e, em sentido figurado, «falar, escrever com entono ou ênfase». Aposto que José Miguel Júdice faz isto na PLMJ. O Dicionário Houaiss regula mais ou menos pelo mesmo. Dos que consultei, apenas o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora regista o sentido figurado (mas através de um sentido figurado!) que o verbo tem no excerto acima: «ditar leis».
      Já que a ocasião se nos enseja tão propícia, seja-nos permitido pontificar uma lição ao jornalista: quando usar estes termos um pouco fora de circulação, faça o exame Vieira.

[Post 4628]


28.3.11

Como se fala na rádio

Problema mal resolvido

      «A Covilhã, no distrito de Castelo Branco, situa-se na vertente oriental da serra da Estrela, bem no sopé desta cadeia montanhosa. Desde tempos imemoriais que a localização da Covilhã, na Cova da Beira, muito rica em pastos, fez desta terra um local prazenteiro para a criação de gado ovino e transformou-a em terra de muita lã. A Covilhã chegou mesmo a ser o maior pólo da indústria têxtil no País. E é precisamente ligado à lã que se diz ter nascido o nome “Covilhã” enquanto “covil da lã”. Mas na lenda da Covilhã a história que se conta é outra. Reza a tradição oral que o governador de Ceuta, Julião de seu nome, enfurecido pelo facto de a sua bela filha se ter apaixonado por um rei godo, e com ele ter fugido, querendo vingar-se dos Godos, ter-se-á aliado aos Mouros e permitido que estes passassem pela zona e por ali permanecessem. Conta-se ainda que, quando o rei godo morreu, numa batalha contra os ditos Mouros, a filha de Julião ter-se-á refugiado no local que ficou conhecido como a Cova de Juliana. Juliana por esta ser filha de Julião. E a Cova de Juliana deu mais tarde lugar à agregação “Covaliana” e de “Covaliana” nasceu “Covilhã”» (Mafalda Lopes da Costa, Lugares Comuns, Antena 1, 25.03.2011).
      O que faz mais espécie é certamente «o nome “Covilhã” enquanto “covil da lã”». Mas há mais. E aquele «enfurecido pelo facto de»? É outra maldição dos tempos modernos. O mais censurável, contudo, é a «agregação». Então agora é este nome que se lhe dá?

[Post 4627]

Nota para os leitores adventícios: o título deste texto vem daqui.

Ortografia: «conselheiro-geral»

Analogia

      «O partido de extrema-direita de Le Pen ficou abaixo dos resultados da primeira volta (15 por cento), mas confirmou a tendência de crescimento e implantação nacional. Até agora não tinha qualquer eleito nos cantões, e agora terá conseguido eleger pelo menos dois conselheiros, dizia ontem à noite o Le Figaro (os cantões são a circunscrição eleitoral dos conselheiros gerais, que vão integrar o governo de cada um dos departamentos)» («PS vence eleições cantonais em França, FN ganha terreno», Clara Barata, Público, 28.03.2011, p. 13).
      Se se escreve «governador-geral», por exemplo, não sei porque se não há-de escrever «conselheiro-geral».

[Post 4626]

Particípios em «-e»

Said Ali

      E dizemos nós. «Assim observamos junto do particípio normal entregado o concorrente terrível entregue. Já o seu aspecto externo nos surpreende. Exceptuada a palavra livre — um adjetivo que também faz de particípio — não sabemos de outro exemplo de forma participial em –e em todo o português literário desde o seu comêço até o fim da era seiscentista, e ainda mais tarde» (Dificuldades da Língua Portuguêsa, M. Said Ali. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 6.ª ed.,1966, p. 128).

[Post 4625]


Ortografia: «cantábile»

Língua operática¹

      Vasco Graça Moura e João Botelho estrearam na semana passada uma ópera, Banksters, no São Carlos. Os excertos da ópera surpreenderam-me. Ópera em português! Disse a determinada altura João Botelho no programa Câmara Clara: «A língua portuguesa é cantábile.» Cantábile ou cantante, ou seja, próprio para canto. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista somente o substantivo «cantabile», movimento não tão lento como o adágio. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, embora registe «cantabile» como adjectivo, é referente ao andamento menos lento que o adágio. Para os responsáveis destes dois dicionários: se registam «adágio» e não «adagio» para o trecho musical lento, porque não optam pelo aportuguesamento «cantábile»?

[Post 4624]



¹ Estive tentado a escrever «operística», mas temi que o revisor antibrasileiro me lesse. Lembram-se do «clubístico»?

Léxico: «neveiro»

Não só

      Quanto a dicionários, também podemos falar de novíssimos. Ora vejam: para o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, «neveiro» é o «vendedor de sorvetes»! Mesmo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não andou bem, apesar de registar que é o «fabricante ou vendedor de gelo ou sorvetes; sorveteiro». E a neve? Consultem o Aulete.
      «Desconhecido para a maioria dos portugueses, aquele engenho teve construção iniciada em 1741, destinado a fornecer gelo a Lisboa, a comerciantes e hospitais, e à casa real, apreciadora de gelados e bebidas frias, hábitos que terão sido introduzidos na corte por Filipe II. O empreendimento é atribuído a Trófimo Paillete, João Rosa e Pedro Francaleza, e era operado por dezenas de neveiros de Pragança, a localidade que lhe fica mais próxima, no concelho do Cadaval, não distante do Tejo e a cerca de 50 quilómetros de Lisboa» («A história do gelo que arrefecia Lisboa está pronta a ser contada», Carlos Filipe, Público, 28.03.2011, p. 21).

[Post 4623]

Sobre o símbolo #

Magna questão

      Na sua crónica de hoje no Público, Miguel Esteves Cardoso fala do símbolo #, que já aqui nos ocupou.
      «No Spectator datado de anteontem, Rory Sutherland divertia-se com a universalidade de gin tonic, compreensível em todos os bares do mundo, com os caprichos do símbolo #, que tem nome diferente em todas as línguas. Se puder, leia a coluna inteira: http://bit.ly/fctR14
      Senão, fique sabendo que R.S. apurou que em português dizemos “terminal”, “cardinal” ou “jogo-da-velha” — coisa que, adianta ele, significa “noughts and crosses”, mais conhecido em Portugal como o “jogo do galo”.
      Embora nunca tenha ouvido dizer “marque o número seguido de jogo-da-velha”, tenho de tirar o chapéu a quem assim chamou ao cruzamento de duas linhas horizontais com outras duas verticais. Acho até que jogo do galo, tal como arroba para o @, é a definição perfeita da disposição gráfica do caracter que se pretende» («Almofadinha cardinal», Miguel Esteves Cardoso, Público, 28.03.2011, p. 31).
      (Só um reparo: porque é que Miguel Esteves Cardoso, à semelhança de muitos outros, não pôs ponto final depois do URL, se encerra frase? Mais outro: porque é que Miguel Esteves Cardoso escreve «jogo-da-velha» mas «jogo do galo»? O Sr. Hífen continua a fazer das suas.)

 [Post 4622]

27.3.11

Como se escreve nos jornais

Escreve-se mal

      «As eleições nos estados federados de Estugarda e Mainz são a terceira e quarta de um superano eleitoral na Alemanha, que começou com Hamburgo (e uma pesada derrota da CDU) e que terminará em Berlim (onde se prevê um duelo entre SPD e Verdes). Estas eleições são importantes» («A quarta eleição do superano eleitoral», Maria João Guimarães, Público, 27.03.2011, p. 16).
      Não é à primeira — nem talvez à quarta — que o leitor desprevenido consegue atingir o estratosférico pensamento da jornalista. Primeiro pensei que fosse uma tentativa (frustrada, a avaliar pela dificuldade em interpretar) de aportuguesar um vocábulo alemão. Ah!, é o prefixo super + o substantivo ano. Ah... Parece uma charada. Soberano? Soprano? Gostava de saber o que José Queirós, o provedor do leitor do Público, diz desta palhaçada.

[Post 4621]

Linguagem

Contem-me coisas

      «A pobre andava tão atrasada de víveres que nem deu porque havia ali coisa no ar» (Nome de Guerra, Almada Negreiros. Lisboa: INCM, 1986, p. 49). «A pobre andava tão atrasada de víveres que nem deu por que havia ali coisa no ar» (Nome de Guerra, Almada Negreiros. Assírio & Alvim, p. 2001, p. 26). «Este burro de Gottenheld não deu por que havia mudança na vida, não soube ver que o seu caminho estava engolido pela água escura, e que o seu habitual itinerário não tinha agora sentido, nem ninguém o queria» (O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana, Mário de Carvalho. Lisboa: Vega, 1982, p. 56).
      
[Post 4620]

Uso das aspas

Coma irreversível

      Vasco Pulido Valente será, como afirma Montexto, uma das penas mais bem aparadas do português moribundo de hoje, mas tem algumas manias difíceis de tolerar. Uma delas, e, a meu ver, a pior, é o uso inconsiderado de aspas. No fundo, é como se estivesse a dizer ao leitor que nenhuma daquelas são expressões que ele use. Muito estranho. Um exemplo da sua crónica de hoje, porém, vem demonstrar outro erro já aqui denunciado por mim em relação a outros autores: o uso de comas em sentidos secundários de certos vocábulos. Ei-lo: «O dinheiro não sobrava. Desde a escola que usei fatos virados do meu pai (que ficavam com as “casas”, cerzidas, do lado errado). Os sapatos só se mudavam depois de muitas meias solas. Como, antes do nylon, as camisas, depois de muitos colarinhos de substituição e de uma dezena de punhos novos» («Velhas contas», Vasco Pulido Valente, Público, 27.03.2011, p. 36).
      Para que são as aspas em «casas»? Imagino que, se tivesse usado o termo «botoeira», dispensaria as aspas... Ridículo. Que alguém lhe diga, por favor, conduzindo assim o homem à sua maior grandeza.

[Post 4619]

26.3.11

Tradução: «hey»

Heu!

      «‘Hey!’ said Jack, ‘why didn’t you speak English before? I’m English!» (The Circus of Adventure, Enid Blyton. Macmillan Children’s Books, 2007, p. 127). «— Eh! — exclamou. — Porque não falaste, [sic] inglês quando te encontrei? Eu sou inglês!» (A Aventura no Circo, Enid Blyton. Tradução de Vítor Alves. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 120).
      Quantos tradutores portugueses saberão que «hei» é apenas forma verbal? Não muitos, a avaliar pela forma como vertem a interjeição inglesa hey. Não é improvável que o étimo de «hey» e de «eh» seja o mesmo, o latino eho. Se os tradutores se dessem ao trabalho de ler as obras revistas, por vezes aprendiam algo. Enfim, que se enxergassem. (A propósito, o verbete deste verbo precisa de uma profunda reformulação no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Não têm de quê.) Ainda na semana passada, li isto: «“Hey, Charlie,” Alex says, “this is my mom.”» Tradução? «— Hei, Charlie — diz o Alex —, esta é a minha mãe.»


[Post 4618]

«Formato/forma»

Agora é pior

      Tudo nos conduz à língua. À merenda, a minha filha perguntou-me por que motivo o pão, um cacete, tem a forma que apresenta. (Diariamente, sou atingido com larguíssimas dezenas de porquês.) Lembrei-me logo de Fr. Francisco de S. Luiz e do seu Glossario das Palavras e Frases da Lingua Franceza, que aqui citei ontem. A propósito de «formato», do francês format, vocábulo agora ainda mais na berra, escreveu: «Não sabemos a razão por que tão vulgarmente se tem adoptado este vocábulo para significar a forma ou a grandeza do papel em que está escrita ou impressa qualquer obra.» E concluía, naturalmente, que em português legítimo dizemos «forma».

[Post 4617]


«De maneira a que»?

Gálica e anti-sintáctica

      «— Vou pôr o alarme do meu despertador para as onze — anunciou Filipe a João, em voz baixa, para que Gustavo não ouvisse. — Ponho-o debaixo da minha almofada, de maneira a que só me acorde a mim. Ena! Estou cheio de sono!» (A Aventura no Circo, Enid Blyton. Tradução de Vítor Alves. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 79).
      Praticamente nenhum estudioso da língua deixou de exprobrar a expressão. Um dos primeiros terá sido José Leite de Vasconcelos, que escreveu nas suas Lições de Filologia Portuguesa que era galicismo intolerável e que só um francês diria com propriedade «de manière à». «Alguns escritores modernos até somam as duas sintaxes uma com a outra, e dizem de maneira a que, não ficando pois nem português nem francês.» Vasco Botelho de Amaral, que disse que era expressão resultante do cruzamento da boa com a má construção. Mário Barreto afirmou que era locução gálica e anti-sintáctica. Nada de ilusões, contudo: actualmente, as gramáticas ignoram ou aceitam estas formas de dizer, e os professores de Português nunca ouviram falar de tal.

[Post 4616]

Tradução: «pocket money»

Dinheiro para despesas

      «— Disseram-me que deveria ter dinheiro para despesas — insistiu Gustavo. — O meu tio deu-mo. É meu» (A Aventura no Circo, Enid Blyton. Tradução de Vítor Alves. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 35). «‘They said I could have pocket money,’ said Gussy, obstinately. ‘My uncle gave it to me. It is mine’» (The Circus of Adventure, Enid Blyton. Macmillan Children’s Books, 2007, p. 32).
      Já aqui tínhamos visto como se deve traduzir as expressões pocket money e argent de poche. Por essa altura, tive de demonstrar a um editor que traduzir argent de poche por «dinheiro de bolso» era servilismo que se devia evitar. Valha a verdade que verter como aqui se fez não me parece muito claro.


[Post 4615]

25.3.11

«Oxalá que...»

Tira, tira

      «— Oxalá que não seja um trabalho que o ocupe durante todo o tempo em que estamos em casa a passar as férias da Páscoa — resmungou Maria da Luz. — Ele tem sempre uma missão secreta a cumprir quando menos convinha que a tivesse!» (A Aventura no Circo, Enid Blyton. Tradução de Vítor Alves. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 8).
      Na locução adverbial «oxalá que», apesar de seleccionar uma oração completiva, pode omitir-se a conjunção, e, a meu ver, até se ganha em expressividade. Aliás, até se compreende mal que se use, neste caso, a conjunção.
      A propósito desta palavrinha, Fr. Francisco de S. Luiz, no seu Glossario das Palavras e Frases da Lingua Franceza, que por descuido, ignorancia, ou necessidade se tem introduzido na Locução Portugueza moderna; com o juizo critico das que são adoptáveis nella, afirma que no princípio das proposições optativas, imprecativas, etc., o que é construção francesa: «Que saiba todo o mundo os nossos amores! Que eu morra, se isto assim não é!»

[Post 4614]

Como se escreve nos jornais

Má escolha

      «As portas da sala de audiências fecharam-se aos mirones e à imprensa, uma vez que a juíza presidente, Flávia Macedo, considerou ser necessário proteger a identidade das 16 jovens que terão sido abusadas, sequestradas ou roubadas pelo suspeito. Das 16 vítimas, duas ainda são menores de idade» («“Violador de Telheiras” confessa crimes e diz-se arrependido», José Bento Amaro, Público, 25.03.2011, p. 16).
      Se consultarmos um dicionário, vemos que «mirone» tem como sinónimos «espectador» e «observador», «aquele que vê». Mas não é um qualquer espectador: é alguém que vê e, mais particularmente, alguém que olha demasiado ou com curiosidade. Tem sempre — e talvez nenhum dicionário transmita exactamente a ideia — um certo sentido depreciativo. Ora, o público que assiste às audiências dos tribunais (que são sempre públicas, salvo quando a lei ou o tribunal determinar que se façam sem publicidade), independentemente de quem se trate, estão, no fundo, a velar pela justiça e pela democracia, pelo que não me parece bem que se diga que são mirones.

[Post 4613]

Léxico: «buliço»

Vai aparecendo

      «Longe do buliço habitual, quando as salas de audiências estão repletas, assumiu ser o autor dos delitos cometidos. E não terá sido apenas na zona de Telheiras (bairro que acabou por lhe ficar associado à alcunha), mas ainda noutros locais, como Alfragide, Linda-a-Velha ou Olivais, onde supostamente cometeu crimes idênticos, que só não vão a julgamento por não existirem participações» («“Violador de Telheiras” confessa crimes e diz-se arrependido», José Bento Amaro, Público, 25.03.2011, p. 16).
      Buliço é variante de bulício pouco usada. Nos últimos tempos, só num texto da autoria de Sofia Lorena (a jornalista da «cidade-berço») no Fugas, numa tradução e hoje neste texto. E quanto a dicionários? O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não a regista. Em contrapartida, tanto o Dicionário Houaiss como o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa acolhem-na, registando tratar-se de termo antigo. Sim, mas subsiste. Ademais, percebe-se melhor a ortografia de «buliçoso» através desta variante.

[Post 4612]

«Dição», de novo

Que já nos ocupou

      Vasco Botelho de Amaral, acabei de o descobrir agora, explicou porque usava «dição» e não «dicção»: «Em reforço do que escrevi no vol. I dos Estudos Críticos (em análise às Bases da Ortografia Luso-brasileira), ao responder em A Voz (n.º de 22-III-47) ao Prof. Sá Nunes, fiz observar: “Note-se que as outras línguas mantêm o c tanto no termo primitivo como no derivado: diction, dictionnaire; diction, dictionary; diccion, diccionario. O italiano e o português, porém: dizione, dizionario; dição, dicionário.” Portanto, cientificamente, a “dicção” do Acordo é inaceitável como forma obrigatória» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 175).
      Não nos leva esta argumentação a pensar no caso da queda do p em Egipto, porque mudo, e a sua manutenção nas derivadas?

 [Post 4611]

«Khadafi/Kadhafi»

Se forem coerentes

      «Depois de terem atacado posições de Khadafi na estrada que liga Ajdabiya a Bengasi — cidade-berço da revolta que estava sob cerco quando a operação internacional começou, sábado —, assim como bases militares ao longo da costa, os aviões estrangeiros concentraram-se nos últimos dias em Misurata, tentando impedir o coronel de ali fazer chegar reforços» («França abate avião de Khadafi em Misurata», Sofia Lorena, Público, 25.03.2011, p. 19).
      Não, não vou tecer mais comentários em relação a «cidade-berço». Que se enxerguem. Sobre o nome do ditador líbio, sim. No Público, é Khadafi. No Diário de Notícias, é Kadhafi. Está tudo bem, desde que escrevam sempre da mesma forma. Também pode escrever-se Cadáfi, Kadafi, Gadhafi, al-Khaddafi, al-Qadhafial-Khadafi...
      Multímodo, multifário, como o próprio homem.

[Post 4610]

«Dignar(-se)»

Resta indignarmo-nos

      Nas «Cartas à Directora» do Público de hoje, podemos ler uma resposta do Centro de Estudos do Curso de Relações Internacionais, da Universidade do Minho («na qualidade de representante dos alunos de Relações Internacionais desta instituição») a um artigo de 13 do corrente de Maria Filomena Mónica. Eis um excerto dessa carta: «A segunda pergunta é, no mínimo, irónica. E nós respondemos-lhe com outra pergunta: será que a doutora Maria Filomena Mónica se deu ao trabalho de olhar para o conteúdo e para o plano curricular das licenciaturas em Relações Internacionais? Quanto à qualidade dos docentes nem dignamos essa pergunta com uma resposta, por considerarmos que é demasiado desrespeitosa, ainda para mais vinda de alguém que também é docente.»
      Tiveram quase duas semanas para escrever a resposta, mas saiu isto. Nem dignar nem dignificar. Dignar-se é um verbo pronominal, regular, da 1.ª conjugação. Há verbos que guardam a forma reflexa facultativa, como ir-se ou ir, rir-se ou rir, sorrir-se ou sorrir, mas não este. Dignar-se, à semelhança de muitos outros, como abster-se, arrepender-se, ater-se, atrever-se, esforçar-se, queixar-se, etc., trazem preso a si, como disse o gramático Rocha Lima, um pronome reflexivo fossilizado. São, como alguns autores os classificam, verbos pronominais essenciais, por oposição a verbos pronominais acidentais. Terão já reparado que a forma pronominal é utilizada na maior parte dos verbos que indicam sentimentos.
      Esta é também a oportunidade para dizer que antigamente a gutural g não era articulada neste verbo e em vozes como benigno, maligno, etc. (E, por vezes, surgiu mesmo uma variante sem essa consoante, como «malino», ainda hoje usada e dicionarizada.)
      Já agora, as perguntas de Maria Filomena Mónica eram estas: «Os promotores da manifestação de ontem são todos licenciados em Relações Internacionais. Isto habilita-os a quê? Alguém se deu ao trabalho de olhar o conteúdo destes cursos? Os docentes que os regem sabem do que falam? Duvido» («Os mitras, os boys e os betos», Público, 13.03.2011, p. 3).

[Post 4609]


24.3.11

Léxico: «acantonar»

Quem se queima que assopre

      Garrett usou assossegar; Herculano, Camilo, Antero de Figueiredo e outros usaram também assossegar e asserenar, lançando mão de um recurso, a próstese, de origem claramente popular. No adagiário não faltam estes verbos, e sobretudo assoprar. Jorge Mourinha, na sua crónica de hoje no Público, no que me parece uma espécie de hipercorrecção (outros virão atrás de mim increpar-me a complacência), usou o verbo «cantonar»: «E falar dele [Artur Agostinho] como “homem da rádio”, como alguns noticiários fizeram, equivale a cantoná-lo num papel que, se foi o mais importante da sua carreira, foi apenas uma parte dele — e, ironicamente, a parte que menos dirá a muitos daqueles que hoje se recordam dele das novelas ou dos talk-shows onde era convidado regular» («Artur Agostinho», «P2»/Público, 24.03.2011, p. 10). (Quanto à substância da crónica, se é que pode descortinar algo remotamente parecido, pode ser resumida no último parágrafo: «Mas é significativo que tanto Júlia Pinheiro como Jorge Gabriel estivessem verdadeiramente emocionados ao encerrarem as suas emissões da manhã de terça-feira: isso diz mais sobre Artur Agostinho do que dezenas de obituários.»)
      Em espanhol, sim, existe o verbo cantonar, que significa o mesmo que o nosso «acantonar» (e acantoar, variante). Quanto às formas prostéticas, não faltam, mormente na oralidade: alevantar, amostrar, alimpar, abaixar... E, imorredoiro, aquase.


[Post 4608]

«Pago/pagado»

Sua Excelência o Gosto

      Tem muita razão no que escreve, caro M. L., mas veja o que já Vasco Botelho de Amaral escreveu sobre o assunto: «Devemos fugir às extravagâncias da expressão, ainda que tenhamos por nós a licença da veneranda Gramática.
      Esta ensina que pagado é um particípio regular com legítimo emprego, principalmente com os verbos ter e haver. No entanto, a linguagem tem os maiores imprevistos. E assim é que se está a assistir à preferência por antigas formas participiais, como pago, tinto, escrito, etc., e ao desprezo das regulares, como pagado, tingido, escrevido, etc.
      Tenho aqui a Lírica, de Camões. Abro-a, à pág. 40 (ed. de 1932), e leio: “Um amor tão mal pagado.”
      Hoje, porém, o nosso gosto o que levaria a dizer seria — um amor tão mal pago.
      É que Sua Excelência o Gosto é muito despótico, e, por isso mesmo, inconstante, contraditório.
      E as línguas obedecem-lhe cegamente, no que ele tem de bom e no que tem de mau.
      Camões gostou do pagado. Mas nós agora não gostamos; preferimos pago.
      Não vai nisso nenhum mal ao Mundo nem à língua» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 292).


[Post 4607]

Sobre «confecção»

Isso depende

      O original dizia que, quando a personagem voltou, «she set herself up making wedding cakes». Na tradução, lê-se que se «dedicou à confecção de bolos de noiva». Ora, o mais habitual é ouvir o vocábulo «confecção» para referir o fabrico e o próprio vestuário de senhora ou de homem. Como é? Nesta última acepção, «confecção» é galicismo evitável (mas que, porém, não foi evitado). Na acepção de acto de confeccionar, o seu uso é correcto. Se não tivesse incorporado, ao longo dos séculos, vocábulos de outras línguas, o português seria hoje um idioma muito mais pobre, sem dúvida. Todavia, o falante responsável sabe que somente quando os recursos próprios faltam é que deve lançar mão de vocábulos de outras línguas.


[Post 4606]

Como se fala na rádio

À empreitada

      «Ser um velho do Restelo. De uma pessoa conservadora, antiquada, ultrapassada, parada no tempo, de alguém que resiste à mudança e para quem qualquer empreitada parece impossível de realizar, de alguém que apregoa a desgraça, diz-se que é um velho do Restelo» (Mafalda Lopes da Costa, Lugares Comuns, Antena 1, 24.03.2011).
      Vasco Botelho de Amaral tinha sempre a preocupação, não apenas de apontar o erro, mas de tentar explicá-lo, o que nem sempre é possível, convenhamos. Neste caso, julgo perceber porque foi usado o vocábulo «empreitada» em vez de, por exemplo, «empresa» ou «empreendimento». Como «empresa», como o passo claramente exigia, na acepção de obra ou desígnio levada a efeito por uma ou mais pessoas; trabalho, tarefa para a realização de um objectivo, tem um recorte literário e clássico, é muitas vezes substituído por outro termo; «empreendimento», por seu lado, que passou nos últimos tempos a designar quase exclusivamente a organização formada para explorar um negócio, foi evitado. Não direi, como Fernando Venâncio, que Mafalda Lopes da Costa está a falar para gente já salva, mas não é com erros que se ensina ou informa ou deleita.
      A última vez que aqui referi mais um deslize ouvido naquele programa, um anónimo deixou o comentário, que não publiquei, pois claro, em que afirmava que eu tinha um problema mal resolvido com Mafalda Lopes da Costa. Uma análise de génio, de que não quero continuar a privar os meus leitores. Há-de ser a conclusão de todos os visados (família e amigos) nos meus textos.


[Post 4605]

Léxico: «mupicar»

Castiço, ou quase

      E se a língua portuguesa tivesse o frequentativo do verbo remar, algo como *remicar, não dava jeito? Temos outro, para dizer o mesmo: mupicar: remar com desembaraço, em remadas miúdas. Mas venho aqui para falar do discurso de Jerónimo de Sousa, o nosso Lula da Silva. Sobre as eleições legislativas que se vislumbram para breve, afirmou: «[…] e, nesse sentido, pronto, enfim, vamos dizer ao povo português, alertá-los para que não queira sair da frigideira para cair ao lume.»


[Post 4604]

Léxico: «nhoque»

Falemos de massa

      Posso ter-me esquecido entretanto, mas creio que hoje foi a primeira vez que li num livro — não num dicionário — o vocábulo «nhoque». Estranho, eu sei. A começar por a nossa língua ter escassas dezenas de vocábulos começados por nh, nenhum de uso corrente. O mais usado (?) será, em Portugal, «nhanha», e nem todos os dicionários o registam.
      Mais uma vez, foi numa tradução que o vi. Num restaurante italiano, uma personagem come «a plate of gnocchi» (não havia entrecôte, aposto). Gnocchi, já sabem, a massa feita à base de batata e farinha de trigo, típica da cozinha italiana, dividida em pequenas porções arredondadas. No singular é gnocco, «tocchetto di pasta fatta con farina e patate, a forma di globo ovoidale e incavato, che si lessa e si condisce con burro o con sugo».

[Post 4603]

23.3.11

Regência verbal

Por exemplo

      «I like and admire my brother, but...», lia-se no original. O tradutor verteu assim: «Gosto e admiro o meu irmão, mas...» Mas está errado. Os dois verbos não têm a mesma regência, e só está bem um complemento comum quando a tenham. A frase compõe-se assim: «Gosto do meu irmão e admiro-o, mas...» Falhas destas até em grandes escritores se encontram. Mas, lá está, são falhas, não são de imitar.


[Post 4602]

Tradução: «mudroom»

Levantados da lama

      «Átrio e vestíbulo são nobilíssimos termos de arquitectura romana, mas deixaram de servir casas ricas. Estas agora não se contentam com menos do que ter um hall — que é a mesma coisa que átrio, e até pode ser menos, porque a expressão francesa les halles vem de idêntica origem e significa pouco mais ou menos o mesmo que a nossa Praça da Figueira. No entanto, o dono da casa que tem hall mostra-nos o hall com tanto orgulho, e aspira com tanta fôrça o h do hall, que até faz vento e a gente espirra e se constipa» («Esquisitices da nossa fala», in Língua e Má Língua. Lisboa: Livraria Bertrand, 1944, p. 214).
      Mais uma vez aqui foco esta questão, pois há sempre novos tradutores a chegar. Serve ainda de pretexto para referir que ontem vi a palavra «mudroom» traduzida por «vestíbulo». Grande coisa, dizem? É que já a vira traduzida, num livro brasileiro, por «sala de lama»...


[Post 4601]

22.3.11

Tradução: «prime rib»

Entrecôte e purée?

      Sempre me fez espécie que, numa tradução para português, se usasse um termo ou uma expressão de uma terceira língua. Tenho aqui um exemplo à minha frente. Numa festa, o jantar foi, diz o original inglês, «prime rib and mashed potatoes». Tradução: «jantar de entrecôte e puré de batata». Ficamos com o puré (o purée nacionalizado, bem sei). Mas entrecôte... Então não existe na língua portuguesa um termo ou expressão equivalente? Aqui vejo que «bife alto» traduz bem a locução; ali, para Brasileiros, assegura-se que é «capa de filé». A minha pergunta é: a palavra «entrecosto» não traduz bem o conceito anglo-saxónico? Ou «costeleta»?

[Post 4600]

Tradução: «topiary»

Só falta «tópia»

      De quatro em quatro anos, encontro a palavra: «There were topiary yews around the foundation; I hacked them down within three days of taking title.» «Em redor das fundações encontravam-se teixos topiários; cortei-os três dias depois de termos assinado a escritura.» Eh, mas esperem lá... os nossos dicionários não registam o adjectivo «topiário». Topiário só como substantivo, o jardineiro que pratica a topiaria. (E o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa não regista «tópia» — nem o Dicionário Houaiss. Caro Paulo Araujo, dê uma palavrinha a Mauro Salles.) Vamos atrás do inglês, ou encontramos outro caminho?

[Post 4599]

Linguagem

Falecido mas não morto

      Humberto Werneck finge falar da prima Solange, mas é de si próprio que fala na crónica do Estadão do dia 6: «A prima — não é impossível que você se lembre dessa ave rara cujos cabelos não se tornam quebradiços, e sim “bifurcam nas extremidades” — frequenta o léxico como você e eu vamos a um brechó, no caso um brechó verbal. Nada a faz mais feliz do que topar no dicionário com alguma esquisitice que imediatamente possa recolher, livrar do pó e botar em uso, de preferência um hápax — palavra ou expressão que tenha aparecido apenas uma vez nos registros da língua. Exemplo de hápax? Vou perguntar à Solange, depois lhe digo. Talvez amaxofobia, que vem a ser, diz o Houaiss, o “medo mórbido de se encontrar ou viajar em qualquer veículo”. Ou alpondra — “cada uma das pedras que formam, de uma margem à outra de um rio, um caminho que pode ser percorrido a pé”. Literalmente, o caminho das pedras. Adivinha quem me ensinou tudo isso?» («Solange e seu brechó verbal», C10).
      Hápax, aqui em Portugal, só se for «brechó». O vocábulo parece provir de Belchior (estas derivações fonéticas do bom povo enternecem) nome do comerciante que abriu no Rio de Janeiro a primeira casa de compra e venda de roupas e objectos usados. Por derivação imprópria, passou depois a designar o negociante de roupas e objectos usados, mas também o proprietário de sebo (mais um brasileirismo para designar a livraria onde se compram e vendem livros usados). Por metonímia, é o próprio estabelecimento. Werneck continua dizendo que a prima Solange, ou seja, ele, «do alto de sua torrinha de marfim linguística, dispara sobre os predadores do idioma alguma pérola do professor Napoleão Mendes de Almeida, xiita-mor do vernáculo. Como seu mestre, “falecido, mas não morto”, a prima acredita que “a língua portuguesa no Brasil vem, desde o passamento de Ruy Barbosa, sendo tratada com incúria cada vez maior”». Faz lembrar o dito de Raquel de Queiroz, a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras: «Somos imortais, mas não somos imorríveis».

[Post 4598]

«De debaixo», de novo

Para ficar bem assente

      Já aqui vimos esta questão. A repetição serve somente para mostrar que, sempre que é usado um verbo de movimento, pelo menos a dúvida não deixa de aflorar a mente de quem escreve: «“Tirar de baixo” ou “tirar de debaixo”?» E nada disto é novo.
      «Pegou nela e pôs-se a embalá-la, cantarolando na sua linguagem. A Didi retirou a cabeça de debaixo da asa e olhou para o macaco. Quando o viu a embalar a garrafa, ficou cheia de ciúmes e zangada» (A Aventura no Barco, Enid Blyton. Tradução de Maria Helena Mendes. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 67-68). «— Onde está o barco? — disse João, olhando em volta. Não o viram. Só quando retiraram o Micky de debaixo da cama e que encontraram o barco. Ele não o tinha estragado. Apanhou três valentes acoites e a Didi três palmadas no bico» (idem, ibidem, p. 68). «Um ruído suspendeu-lhe de repente os pensamentos. Pousou o cachimbo e levantou-se, uma figura silenciosa, mesmo junto da coluna quebrada. Escutou. O ruído vinha de debaixo do chão, tinha a certeza» (idem, ibidem, pp. 201-2). «À noite, o Estrela dos Mares voltou a partir. Nem Jaime nem qualquer dos pequenos ouviu as máquinas começarem a trabalhar. A Didi acordou, retirou a cabeça de debaixo da asa e voltou a encolher-se» (idem, ibidem, p. 226).

[Post 4597]

21.3.11

Sobre «sereia»

Não o ser lendário

      «Subitamente a sereia do barco apitou muito alto por duas vezes» (A Aventura no Barco, Enid Blyton. Tradução de Maria Helena Mendes. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 20).
      Eis outro termo que, nesta acepção, está a cair em desuso, se não caiu já. Sereia. Ora vejam o que se passa com o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. Regista esta acepção, sim, mas de uma forma muito ínvia. Não será, decerto, a segunda acepção: «Física aparelho acústico usado para determinar a frequência de um som.» Passemos ao verbete de «sirene», a variante mais usada: «instrumento que produz um sinal sonoro de alarme ou de chamada», como primeira acepção, e «sereia», como segunda. Todavia, esta «sereia» só pode ser o tal aparelho acústico usado para determinar a frequência de um som. De «sirene» não há, como devia, nenhuma remissão para «sirena», mas fomos consultar o verbete desta variante. «Sirena» não tem definição, apenas uma remissão → sereia. Agora pergunto: quem tem a desfaçatez de afirmar que isto está bem feito?

[Post 4596]