29.2.08

Léxico: «hemaditrose»

Imagem: http://www.frugalsites.net/

Paixão de Cristo


      
«Horas antes da sua morte, Jesus suava sangue. É dos poucos casos registados de hemaditrose, um fenómeno raro que acontece a pessoas sob uma tensão e pânico extremos. […] Zugibe, ex-patologista-chefe do Instituto de Medicina Legal de Nova Iorque, desmente várias teorias clássicas, algumas delas no filme A Paixão de Cristo: Jesus só carregou o tronco horizontal da Cruz e não a totalidade e só a parte de trás do seu corpo foi açoitada [com um chicote de três tiras, com uma bola de chumbo em cada extremidade, denominado flagrum, na imagem em cima]» («Autópsia revela causa da morte de Cristo», Destak/Sábado, 28.2.2008, p. 6).
        

Antepositivo eco-


Ecos


      «A câmara de Óbidos apresenta hoje o projecto OB2 — Óbidos Sustentável, que visa pôr em prática medidas de eficiência energética nos edifícios e contribuir para o reconhecimento de Óbidos como a primeira eco-vila de Portugal» («Município quer ser eco-vila», Global, 27.2.2008, p. 8). «O projecto OB2 — Óbidos Sustentável, apresentado hoje, vai transformar Óbidos na primeira eco-vila do país ao pôr em prática medidas de eficiência energética nos edifícios da localidade. Essa eco-eficiência passa pela concepção com orientação a Sul, pela redução dos consumos de energia, minimização dos impactos dos materiais e redução do consumo de água» («Óbidos é a primeira eco-vila», Metro, 27.2.2008, p. 2). A gota de água foi ver que há um projecto «Eco-Escolas». No Ministério da Educação não há verba para um mísero dicionário de língua portuguesa. Nem nas redacções de alguns jornais. De uma vez por todas: nunca o antepositivo eco- (com uma excepção, mas não vos quero baralhar as circunvoluções) se liga por hífen ao elemento seguinte. Nunca. E, num tempo de tanta ecologia, pelo menos verbal, era bom que escrevessem como deve ser.


Léxico: «caucasiano»

Do Cáucaso

No é todos os dias, pelo menos fora do âmbito da antropologia, que se usa a palavra, razão mais do que suficiente para a registar quando surge na imprensa. De facto, só estamos habituados a vê-la nas legendas de filmes policiais. «A mulher brasileira que chega a Portugal e acaba na prostituição é caucasiana, maior de idade, na sua maioria sem antecedentes nesta actividade, tem o curso médio ou superior, vem por própria iniciativa e fá-lo por motivos financeiros. Estas são as conclusões de um estudo autorizado pelo ex-ministro da Administração Interna António Costa a partir de uma proposta do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Entre Novembro de 2006 e Fevereiro de 2007, foram inquiridas 536 brasileiras, de norte a sul do país, em casas de alterne e noutros pontos de prostituição» («Maiores, sem antecedentes e com grau académico», André Barbosa, Metro, 27.2.2008, p. 2). Caucasiano, para os leitores menos informados, diz respeito à divisão étnica ou ramo e significa branco.

28.2.08

Léxico: «vioxene»

Estava-se mesmo a ver

No Ciberdúvidas, querem descobrir a pólvora. Um leitor perguntou se existe em português a palavra «bioxene». O consultor A. Tavares Louro começa por afirmar que «os sons da língua original não são facilmente adaptáveis à língua portuguesa», para concluir que, «no entanto, a grafia /viaxene/ parece-nos a mais adequada». Bem, a verdade é que o aportuguesamento do francês vieux-chêne já existe há muito tempo. E, correcto ou incorrecto, fixou-se em duas formas: bioxene e vioxene. Mais esta, na verdade, do que aquela. E foi munido desta última que eu, mais do que uma vez, fui à drogaria do Sr. Zé Mariano comprar o produto. «Queria 100 gramas de vioxene, Sr. Zé Mariano.» Nunca o homem, na dúvida, me pediu: «Escreva lá isso.» Não. Ia buscar, embrulhava numa folha das Páginas Amarelas e pesava.
São assim, os académicos. Para umas coisas, dão a voz ao povo, para outras, arvoram-se em porta-vozes do povo.

«Snorkel»!

A Lagoa de Sherman, de Jim Toomey, in Metro

De focinho no ar


Engano o vosso. Não quero imprecar o tradutor (não referido, de resto) que usa um estrangeirismo facilmente substituível. De passagem, ainda assim, digo-o: bem podia ter usado «tubo de respiração», que nós perceberíamos. Mas não, repito. O que quero dizer é que, já agora, se usam estrangeirismos, que os escrevam correctamente. Escreve-se «snorkel» e não «snorkle». E sim, é um tubo de respiração à superfície. Embora, ao que parece, inventado por mecânicos holandeses, o tubo — não para este fim, mas o tubo dos submarinos, e é a primeira acepção, cronologicamente — foi baptizado pela Marinha alemã no início da década de 1940: Schnorchel, da gíria dos marinheiros para «nariz», «focinho». Só em 1949 foi anglicizado para snorkel.

Léxico: «tremendismo»

Fiquem com esta

Depois de, no Fórum Novas Fronteiras, o primeiro-ministro ter usado a palavra «tremendismo», alguém tinha de vir explicar o seu sentido. Coube a vez a José Júdice, na sua coluna no Metro: «O primeiro-ministro, numa deambulação poética àquele rigor de linguagem próprio dos engenheiros, acusou os críticos do Governo de “tremendismo”. O vocábulo pode parecer novo no léxico dos insultos políticos nacionais e inusitado num homem com vasta experiência em pré-esforçados e resistência de materiais, mas tem um antigo registo de patente aqui ao lado em Espanha. Já em 1947 o filósofo castelhano Antonio de Zubiaurre reclamava para si a utilização pela primeira vez do vocábulo “tremendista”, nem “casual nem frívola”, explicava, uma vez que pretendia fundir num só conceito todos aqueles excessos que dantes exigiam um parágrafo inteiro de adjectivação. “Tremendismo”, assim, é simultânea e concomitantemente a expressão abrangente de tudo o que é abissal, horrível, espantoso, imenso, doloroso, explosivo, sideral, cósmico, com uns pós de “cruas ingerências anatómicas”, especificava Zubiaurre, como sangue, ossos, pele, veias, entranhas. Resumindo, dizia o filósofo, o tremendismo representa o “estalo, violentíssimo, do vulcão” («O tremendismo», José Júdice, Metro, 27.2.2008, p. 12).

27.2.08

Terminologia militar

Dicionário

Na Internet, por vezes, uma simples palavra conduz-nos a tesouros. Foi assim que encontrei o English-Portuguese Dictionary of Military Terminology, um projecto da Military Review. Tem 929 páginas e está aqui.

Acordo Ortográfico

Resolvam-se

“Gosto da minha língua tal qual a escrevo, mas não posso impor a 150 milhões de pessoas os meus gostos pessoais. Mas recordo que aprendi a escrever mãe com ‘e’, depois mandaram-me escrever com ‘i’ e depois voltaram a mandar escrever com ‘e’, quando a mãe era sempre a mesma”, sublinhou Saramago» («Acordo Ortográfico. José Saramago critica impasse», Global, 27.2.2008, p. 6).

Parabéns, «Expresso»


26.2.08

Tradução: «pellet»

Imagem: http://www.duconsult.com/

Pastilhas para a lareira



       Ração para animais? Não. «Jack Murphy of Winchendon, Mass., has long burned wood in his home, but he was tired of buying and splitting the wood, feeding the stove and cleaning the ash. He switched to a pellet stove last year» («With Oil Prices Rising, Wood Makes a Comeback», Katie Zezima, The New York Times, 19.2.2008). Na tradução do Jornal do Brasil, ficou: «Jack Murphy de Winchendon, Massachusetts, há muito queima madeira em sua casa, mas cansou de comprar e partir a madeira, e de limpar a sujeira. Trocou, no ano passado, o fogão antigo por outro à base de pastilhas de madeira» («De volta aos aquecedores a lenha», 24.2.2008, p. E8). Muito bem: o tradutor optou por verter o vocábulo inglês pellet (bolinha de papel, de pão, etc., grão, pílula, pastilha…) por «pastilha de madeira». Em Portugal, em que é mais comum ver à venda briquetes (quase o mesmo que os pellets, apenas com a diferença de que os briquetes são o resultado da compactação de resíduos ligno-celulósicos, sob pressão e temperatura elevadas, tais como galhos e cascas de árvores, aparas de madeira, serragem, pó de lixa, maravalhas, bagaço de cana-de-açúcar, casca de arroz, palha e sabugo de milho, etc.), os pellets são vendidos sob o nome de… pellets. São usados como combustível em fogões, lareiras, salamandras, recuperadores de calor e caldeiras industriais e caseiras.

25.2.08

«Expulsação»?

Podia ser

Não há como negá-lo: podia existir. Mas não existe. Existe «expulsamento» e «expulsão». Esta é a acção de expulsar, de escorraçar, de pôr fora de um país, de um lugar, de uma companhia. É um despejo. Em medicina, é a acção de fazer sair, de fazer evacuar. Vamos a isto: «O presidente do Sudão, Omar el-Beshir, anunciou a expulsação de organizações dinamarquesas e o boicote de produtos daquele país nórdico» («Sudão expulsa e faz boicote de produtos», Destak, 25.2.2008, p. 25). E o jornal tem revisão…

Léxico: «estaca»

Últimos dias

«“O domingo é um dia diferente. Tentamos não fazer compras, não ir ao cinema”, explica Afonso Alcântara Martins. O presidente da estaca de Oeiras, uma das seis unidades administrativas da Igreja em Portugal, é uma das pessoas que presidem à celebração conduzida pelo bispo António Costa. […] Fundada nos EUA em 1820, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias chegou ao nosso país em 1974, quando a Revolução de 25 de Abril abriu as fronteiras aos missionários. Hoje, há 38 mil mórmones em Portugal, divididos por seis estacas e 77 congregações. […] Fundada por Joseph Smith, que aos 14 anos terá sido “escolhido por Deus” para restaurar a verdadeira Igreja de Cristo na Terra, a Igreja Mórmon foi ganhando membros no mundo graças ao trabalho missionário. Com as camisas brancas e crachás com o nome, os elders (“anciãos” em inglês) trabalham dois a dois, batem às portas e abordam as pessoas para espalhar a sua mensagem» («Descobrir Cristo em versão americana», Helena Tecedeiro, Diário de Notícias, 16.2.2008, pp. 2-3). A estaca é uma circunscrição aproximadamente igual à diocese da Igreja Católica. O nome, algo estranho para designar tal conceito, vem de um versículo bíblico: «Alarga o espaço da tua tenda, estende sem medo as lonas que te abrigam, e estica as tuas cordas, fixa bem as tuas estacas» (Isaías, 54,2).

Tradução: «snitch»

Menos formal

A Incrível Família Brady (The Brady Bunch Movie, no original, uma comédia de Betty Thomas), anteontem, no canal Hollywood. Numa família de sete irmãos, a mais nova, Cindy, tem uma acentuada propensão para a denúncia e os mexericos. O pai, numa conversa edificante, diz-lhe que não deve ser snitch, que o tradutor verteu para «delatora». Certo, que também o é, mas o contexto e o registo — um pai a falar com uma filha de seis anos — pedia ali que se traduzisse por «queixinhas». Num contexto semelhante, vi há pouco uma tradução do espanhol, em que surgia a palavra acuseta (que tem a variante acusete), sinónimo de acusón e soplón, e o tradutor optou, e muito bem, por verter por «queixinhas».

24.2.08

Tradução: «dispatch box»

Gordon Brown com a pasta de despacho (dispatch box): http://newsimg.bbc.co.uk/

Vamos a despacho


      Anteontem, na RTP Memória, passava um episódio de O Regresso de Sherlock Holmes (The Return of Sherlock Holmes, no original). Do pouco que vi, tratava-se do desaparecimento de uma carta que um membro do Governo tinha levado para casa numa pasta. Essa pasta era exactamente igual (talvez menos nova) à da imagem em cima. No original, o nome dessa pasta é «dispatch box». O conceito abarca duas coisas diversas. Primeiro, refere-se a cada um dois atris no Parlamento inglês, na Câmara dos Comuns, usados pelos ministros e pela oposição quando se dirigem ao Parlamento. Segundo, refere-se a uma pasta vermelha, com o monograma do soberano (como a da imagem) usada pelos membros do Governo para transportarem e trocarem documentos e para levaram documentos que tenham de ser analisados pelo soberano. A dispatch box tornou-se, assim, um símbolo do poder. Numa entrevista em 2005, Tony Blair revelou que a maioria dos ministros transporta agora na pasta um computador portátil em vez de papéis. Ora, como tradução de dispatch box, e era aqui que queria chegar, foi usada a locução «mala diplomática». É assim que está (além de «mala de viagem», que não interessa para o caso) em vários dicionários de inglês-português que consultei. O problema, porém, é que o conceito de dispatch box não encaixa, nem pouco mais ou menos, no conceito de mala diplomática. Se recorrermos a dicionários bilingues de inglês-espanhol, a tradução proposta é «valija» ou «cartera ministerial», esta sim, uma tradução correcta. Assim, proponho a tradução «pasta de despacho» — menos altissonante que «mala diplomática», mas, o que importa, mais correcta.


«That can be done in a very few words, Mr. Holmes. The letter — for it was a letter from a foreign potentate — was received six days ago. It was of such importance that I have never left it in my safe, but have taken it across each evening to my house in Whitehall Terrace, and kept it in my bedroom in a locked dispatch-box. It was there last night. Of that I am certain. I actually opened the box while I was dressing for dinner and saw the document inside. This morning it was gone. The dispatch-box had stood beside the glass upon my dressing-table all night. I am a light sleeper, and so is my wife. We are both prepared to swear that no one could have entered the room during the night. And yet I repeat that the paper is gone.»

23.2.08

Léxico: «grimpa»

No cimo da torre

O leitor A. M. L. quer saber o nome que tem a bandeira de chapa que se vê no cimo de algumas torres, como as das igrejas. E em alguns pelourinhos e chaminés, acrescento eu. Sim, estou a ver. O nome mais divulgado creio ser «grimpa», mas também se lhe chama «veleta». «É uma espécie de bandeira recortada em folha metálica e que se coloca por meio de um espigão giratório no alto das torres, dos pináculos ou dos zimbórios», regista o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado. «Veleta» veio-nos do espanhol: «Pieza de metal, ordinariamente en forma de saeta, que se coloca en lo alto de un edificio, de modo que pueda girar alrededor de un eje vertical impulsada por el viento, y que sirve para señalar la dirección del mismo», regista o Diccionario de la Real Academia Española (DRAE).

Léxico: «fachis»


À oriental


      Não lhes chamem «pauzinhos», vá lá. Nem os chineses o são. Aportuguesado, é fachi ou fachis. «Diferentemente do que acontece no Brasil, o cardápio nipônico é dividido pelos modos de preparo. São classificados como: agemono (frituras), nabemono (cozidos em vapor) ou sashimi (carne ou peixe em cru). Em todos, é indispensável a presença do molho shoyo (soja) e do hashi, os famosos palitinhos de madeira usados como talheres. Aos poucos, os brasileiros estão se acostumando à nova culinária e já pedem o prato pelo nome de alguns ingredientes típicos» («Sabor japonês dá o tempero nos 100 anos da imigração», Carolina Bittencourt, Jornal do Brasil, 23.2.2008, p. R4).

Léxico contrastivo: «grampo»

Metido em apertos

«Os grampos telefônicos serão de responsabilidade da Agência de Segurança Nacional porque, conforme a lei que a criou, sua finalidade no campo da inteligência se restringe a ações e criações criptográficas e a avaliações de caráter externo, não dispondo de agentes de campo» («Na era do grampo», Zevi Ghivelder, Jornal do Brasil, 23.2.2008, p. A10). Nós também temos grampos, mas usamo-los apenas na construção civil e em carpintaria. No Brasil, grampo também é um dispositivo de escuta telefónica secreta e a própria escuta.

Léxico: «carpooling»

Outra boleia

Depois do carjacking, eis que os jornais falam do carpooling. «A solução surgiu nos Estados Unidos, e dá pelo nome de “carpooling”, ou seja, a partilha do carro com outras pessoas nas deslocações diárias. Embora em Portugal a prática seja pouco conhecida, o Instituto Superior Técnico está a desenvolver um projecto que visa analisar a viabilidade de implementação de sistemas de “carpooling” em Lisboa» («Partilhar o carro com o vizinho», Patrícia Tadeia, Metro, 20.2.2008, p. 3). O artigo refere ainda o conceito de vanpooling, a partilha de transporte colectivo. Para os que apreciam mais a prática, ver aqui.

Actualização em 25.2.2008

Um anónimo, num comentário, diz-me que no mundo francófono o conceito se designa covoiturage. «Le covoiturage est “l’utilisation d’une même voiture particulière par plusieurs personnes effectuant un trajet identique afin d’alléger le trafic routier et de partager les frais de transport”.»

22.2.08

À discrição

Língua de luxo     

      «Uma loja irresistivelmente apetecível pela mão de Paulo Leal, num dos bairros mais bonitos da cidade. Entre o jardim do Príncipe Real e o Miradouro de São Pedro de Alcântara uma morada onde habitam irresistíveis sabores internacionais com destaque principal para o maravilhoso chá da Kusmi Tea ou da Mariage Frères à descrição» («Irresistivelmente apetecível», Sancha Trindade, Meia Hora/Hora Extra, 22.2.2008, p. 5). Errado, Sancha Trindade: diz-se «à discrição». Ou seja, em abundância, à livre escolha. Mesmo numa loja de luxo, é assim que se escreve.

Gíria

Seja o que for

Mas é gíria. E se o leitor planeia uma visita turística à Cova da Moura, já sabe: muna-se de umas quantas palavras da gíria local. Tuíscas: bacano; porreiro; wereo: sócio; parceiro; roots: quarto; whatever: seja o que for. «“Wereo”, “tuíscas”, “roots” e “whatever” são algumas palavras que fazem parte do crioulo falado entre jovens nas ruas da Cova da Moura, na Amadora, uma maneira própria de falar que está constantemente a evoluir e resulta de várias influências.» Crioulo, isto? O jornalista retrocede: «Muito do crioulo que se ouve falar quando se sobe pela Rua 8 de Dezembro, uma das entradas principais para o bairro Cova da Moura, dificilmente seria entendido em Cabo Verde, país de onde a maioria dos jovens que ali vive e suas famílias são originários.» Bem me parecia. Continuemos. «Na sua maioria nascidos em Portugal, poucos destes jovens conhecem Cabo Verde e aprendem a falar o crioulo através dos pais ou na rua, acabando por adaptá-lo à pluralidade das suas identidades e ao contexto em que vivem. “O crioulo que falamos, antes de ser de rua, aprendemo-lo em casa. Com amigos é diferente: utilizamos palavras que surgem no dia-a-dia, que vamos assimilando e pondo em prática”, explica Kromo di Ghetto, cabo-verdiano de 25 anos, citado pela agência Lusa. “É uma mistura que resulta da música que ouvimos, das influências do português, inglês e francês. Também têm a ver com a cultura de rua e hip-hop, uma mistura que tende sempre a evoluir”, diz, acrescentando que “mesmo não entendendo inglês, as pessoas percebem o whatever (seja o que for, em inglês) e utilizam-no porque já faz parte do seu vocabulário” («Jovens criam nova forma de falar na Cova da Moura», Simon Kamm, Meia Hora, 21.2.2008, p. 7).

O futebol americano

Passa!

Recentemente, saiu no jornal Público um artigo sobre o futebol americano (football para os Americanos; o futebol europeu é designado soccer) em que se divulgavam algumas das regras daquele desporto. É uma parte desse artigo que, pelo seu interesse terminológico, quero recuperar para aqui: «Como no râguebi, o objectivo do jogo é transportar a bola até ao fim do campo (endzone) ou pontapeá-la através de dois postes. O essencial da pontuação: seis pontos por um ensaio (touchdown; normalmente sete, com um pontapé de conversão), três pontos por um pontapé de conversão (field goal). O jogo tem 60 minutos, divididos em quatro períodos de 15; o cronómetro pára em muitas situações e um jogo pode durar três horas ou mais. Cada equipa tem 11 jogadores em campo; os jogadores variam dependendo de a equipa estar a atacar (isto é, ter a posse da bola), a defender ou em situações particulares (special teams). A equipa atacante tem quatro posses de bola (downs) para avançar pelo menos dez jardas (9,1 metros); avançando dez jardas, mantém a bola e ganha mais quatro downs; caso contrário, tem a dar ao adversário. Os jogadores fundamentais na acção atacante são o quarterback (que passa a bola com a mão), os wide receivers (que recebem os passes) e o running back (que tenta avançar em corrida segurando a bola). Os jogadores usam capacete e várias protecções porque o football é muito violento — mas há regras muito específicas sobre que tipos de contacto são legais» («As regras básicas do football», Pedro Ribeiro, Público, 3.2.2008, p. 40).

21.2.08

«Anti-Semitic» e «back-stabbing»

Refalsados

Depois de afirmar que «o treinador israelita da equipa de futebol do Chelsea, Avram Grant, recebeu ontem ameaças de morte de carácter anti-judeu, acompanhadas de um pó misterioso», o Meia Hora acrescenta: «De acordo com uma fonte policial anónima, citada pela agência Press Association, lia-se na mensagem: “Tu és um sacana de um judeu, que apunhala pelas costas. Quando abrires esta carta, morrerás de uma morte muito lenta e dolorosa.”» («Treinador do Chelsea ameaçado de morte», Meia Hora, 21.2.2008, p. 15). Se fossem inteligentes (ou lessem este blogue, o que seria um bom sucedâneo), optavam por escrever, como quase toda a imprensa, «ameaças anti-semitas», e nunca erravam. Em contrapartida, este jornal tem a seu favor ter transcrito, e traduzido, toda a mensagem, ao contrário de quase toda a imprensa portuguesa, que omite a primeira frase: «A police source revealed that a note inside the package included the words: “You are a back-stabbing Jewish b******. When you open this letter you will die a very slow and painful death.”» Os asteriscos, e o resto, são do Mirror. Não precisava era de ser tão literal. Podia ser: «És um refalsado, um sacana de um judeu.»

Entrada e «couvert»

Assim não falham

Nem sequer um dos jornais em que li a notícia da sugestão da Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDC) deixou de usar, no mesmo texto, as palavras «couvert» e «entrada». Todos têm a primeira, «couvert», no título, e todos se vêem na necessidade de lançar mão da segunda, «entrada». Isto é muito estranho. Todos parecem reconhecer que os termos se equivalem, mas todos receiam que haja quem não saiba o que é uma entrada. Alguns dos jornais até envolveram cuidadosamente a entrada em aspas, qual celofane, não venha aí a ASAE e lhes aplique uma coima.

Acabou-se o «plafond»

Ainda há esperança

      Nem tudo é mau. Nem tudo está perdido. Até os jornais gratuitos se esforçam agora por escrever correctamente. Ora veja-se: «Saúde. Os cheques-dentista, que terão tectos máximos anuais de 120 euros para as grávidas e de 80 euros para os idosos, podem ser usados a partir de 1 de Março» (Destak, 20.2.2008, p. 5). Sim, acabou-se o plafond, esse tão desnecessário galicismo. Tecto por tecto, temos o nosso, que abriga tão bem como os franceses, e é igualmente eficaz como limite de despesas permitidas. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, regista: «plafond. s. m. (Fr.). Fin. V. plafom.» Ou seja, sugeria-nos que escrevêssemos «plafom». Esqueceram-se de incontáveis palavras, mas não destas parvoíces.


20.2.08

Léxico: «limpa-trilhos»


The coupler, the vacuum pipe and part of the cattle guard of the loco KWV ZDM 4A #206.
(Engate, tubo de vácuo e parte do limpa-trilhos da locomotiva KWV ZDM 4A #206.)
Foto de Ashish Kuvelkar


Grelha? Guia?




      É, no mínimo, interessante este paralelismo: nem no português europeu nem no espanhol europeu existe uma palavra específica para designar a grelha que as locomotivas têm à frente, como a que se vê na imagem. Contudo, tanto o português do Brasil como o espanhol da América Latina têm um termo. No Brasil, essa grelha designa-se «limpa-trilhos». Na Argentina e no Uruguai, tem o nome de miriñaque — sim, o nosso merinaque, a crinolina, pelas semelhanças que apresenta com esta peça antiga do vestuário feminino. Parece ter sido Isaac Dripps, da Camdem & Amboy, quem concebeu esta peça. E para quê? A palavra que os Brasileiros criaram e usam é sugestiva: para limpar a via. Por isso também se chama «saca-boi». Aliás, também as locomotivas inglesas não tinham cattle guard, pois era uma peça mais adequada às condições naturais e da via nas Américas: grandes desfiladeiros, com derrocadas frequentes, animais selvagens a atravessar a via, etc. Até os corajosos e, no caso, ignorantes, índios eram varridos.


Tradução: «mentidero»

Por mim


      É verdade, não há como negá-lo, que a palavra espanhola mentidero tem no vocábulo português «soalheiro» um possível correspondente. Mas este não tem a ínfima parte da força sugestiva daquela. E, se temos largos milhares de palavras vindas directamente do espanhol, que se foram incrustando na nossa língua, não vejo problema em usar «mentideiro», de resto já dicionarizado. Por outro lado, «soalheiro» é palavra basto perigosa: não a confundem os nossos tradutores e jornalistas com «solarengo»? Então?

Léxico: «chapa»

Quase minimachimbombo

Polissémico, o vocábulo «chapa». Infelizmente, não há um dicionário da lusofonia digno desse nome que registe, a par de tudo o que conhecemos na variante europeia do português, os vocábulos em uso nos restantes países em que se fala o português. Mera utopia, eu sei. Em relação a isto, contentar-me-ia com uma tentativa. Adivinharam: tudo por causa dos recentes acontecimentos em Maputo, uma diferente acepção do vocábulo «chapa» entrou no nosso léxico. Os jornais registaram-no: «A caminho do trabalho, na terça-feira de manhã, apercebi-me [Dr.ª Inês Zimba, médica no centro de saúde do bairro de Benfica, nos subúrbios de Maputo] que estava a acontecer algo porque não havia chapas — transportes privados semicolectivos — e vi muitos estudantes a caminharem para a baixa de Maputo» («Um susto em Maputo», Paola Rolletta, Expresso, 9.2.2008, p. 48). E se o condutor de táxi é taxista, o condutor de chapa é chapista.

Léxico: «binómio»

A coisa mete cães



      Suponhamos que um extraterrestre — ou, para os maluquinhos da realidade, da verosimilhança, um brasileiro — topava com este trecho de uma notícia: «Desde o início da tarde até ao cair da noite as buscas — feitas no leito do rio até à foz por bombeiros e binómios da PSP — revelaram-se infrutíferas, mas vão prosseguir hoje» («Não chovia tanto há 24 anos», Carla Marina Mendes e João Moniz, Destak, 19.2.2008, p. 6). O que pensaria o nosso extraterrestre — ou o nosso brasileiro, para os maluquinhos da verosimilhança? Isto passou-se muito, muito depressa e debaixo do nosso nariz. Primeiro, eram os «binómios cinotécnicos»: equipas de um homem e um cão. Um guarda da GNR, por exemplo, e um golden retriever. Coisa esquisita, mas algum nome haviam de ter. Depois, há muito pouco tempo, passou a ser «binómio homem-cão». Agora, o vocábulo surge despojado de outro apoio: «binómio».


19.2.08

Tradução: «pescante»

Imagem: http://picasaweb.google.com/canibalitops10/Feria2/

Assim não


Nas traduções, acho sempre lamentável que se não acompanhe a riqueza lexical do original. Assim, se o original, espanhol, diz «pescante», porque havemos de empobrecer o texto traduzindo por «assento»? Será a intenção paternalista — que pessoalmente reputo execrável — de ajudar o leitor ou, mais simplesmente, a ignorância do tradutor? O espanhol, valha-me Deus, também tem «asiento»! Pescante é, em português, «boleia». Quanto a pescante, na definição do DRAE: «En los carruajes, asiento exterior desde donde el cochero gobierna las mulas o caballos.» Quanto a «boleia», na definição do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado: «Assento do cocheiro.»

18.2.08

Léxico: «maritorne»

Criada inglesa com crista

Minha senhora


Não, não, não: o vocábulo espanhol maritornes não tem de aparecer em itálico ou entre aspas num texto em português. Concedo: não estará o seu significado presente em nós como estará (estará?) na mente de um espanhol medianamente culto. Contudo, não é por esse padrão que se aferem as coisas. «Maritorne», regista o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, é a «criada suja, reles, ordinária». Mais marcantes na cultura universal são, como bem sabemos, as personagens de Dom Quixote e Sancho Pança, com vocábulos derivados há muito usados e dicionarizados. Ainda assim, a personagem Maritornes faz parte do elenco e serviu igualmente como estereótipo. No DRAE, lê-se: «maritornes. f. coloq. Moza de servicio, ordinaria, fea y hombruna.»
Há um estudo de 2004 do Instituto de la Mujer, De mujeres y diccionarios. Evolución de lo femenino en la 22.ª edición del DRAE, da autoria de Eulàlia Lledó Cunill (coord.), M.ª Ángeles Calero Fdez e Esther Forgas Berdet, no qual se inventariam as palavras que neste dicionário se referem às mulheres. As autoras lamentam que as mulheres dedicadas a servir não saiam muito bem paradas, e concretamente em relação a maritornes, consideram que a coisa sai agravada pela «sarta de tres adjetivos a cual más cruel». (Realmente, a enfiada de adjectivos da definição espanhola é mais cruel do que a da definição portuguesa: ordinária, feia e marimacho.) Lá encontramos também atropellaplatos, a criada ou fregona desajeitada, mondonga, a criada rude, chopa, a criada, mas com um sentido depreciativo, etc.
Quando li a obra Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica, não pude deixar de reparar no facto de algumas criadas serem tratadas como gente inferior, destituída de inteligência, cuja existência apenas se compreende para satisfazer a comodidade dos patrões. Para a autora, os aspectos exteriores — inequivocamente marcas de um opróbrio, mas sem dúvida superficiais — eram mais significativos, pelo que afirma: «Em casa, andavam [as criadas] fardadas, embora sem exageros: não serviam à mesa de luvas, nem usavam “crista”» (p. 111).

17.2.08

Léxico contrastivo: «carro-chefe»

Gen-ética

«Nem carteira de identidade, nem mapa astral, nem curriculum vitae. Agora, e cada dia mais, o código genético será a forma mais comum de determinar quem é uma pessoa e qual será o seu futuro. Já é possível descobrir com antecedência se um indivíduo terá filhos saudáveis, responderá bem a tratamentos, sofrerá com efeitos colaterais a drogas ou terá determinadas doenças. Enquanto a genética se torna o carro-chefe da medicina, a perspectiva é de que num futuro breve as terapias sejam personalizadas, e os remédios feitos especialmente para um bom processamento em cada organismo» («As promessas da nova ‘gen-ética’», Cristine Gerk, Jornal do Brasil, 17.2.2008, p. A30). Carro-chefe é, em sentido figurado, o elemento de mais realce principal num conjunto, numa obra ou num empreendimento qualquer, por ser o mais importante, o mais significativo, o mais apreciado, etc., como regista o Dicionário Houaiss. Em sentido próprio, é o carro alegórico mais importante de um desfile. De realçar também, neste texto, o jogo linguístico proporcionado pelo título: gen-ética.

Calão

O calão hipócrita

A propósito do calão, escrevia o Prof. Vasco Botelho de Amaral: «Não é menos lamentável do que o calão reles, obsceno ou vil aquele a que chamarei hipócrita. Esse também é sujo. Se um larápio da alta sociedade se abotoa com boa soma de contos de réis, não é com o limpo termo desvio que se lhe tira a imundície à roubalheira. Desviar por roubar é tipo de calão hipócrita, e ridículo, de certo modo. Isto é, o calão hipócrita, além de corromper a expressão, é tão condenável como o reles» (in Estudos de Apoio ao Português, Livraria Avis, Porto, 1978, p. 66).

16.2.08

Léxico: «escumadeira»


Na cozinha

Anteontem, Martine Rousseau e Olivier Houdart, revisores do Le Monde, andavam às voltas com a origem do nome em francês do utensílio de cozinha que se vê em cima. Mas meteram os pés pelas mãos, porque o nome que estavam a atribuir a este utensílio — maryse — pertence de facto ao raspador de massa entre nós chamado salazar, de que já aqui tratei. Em francês não sei, mas em português o que temos acima é, seguindo de perto a definição do Dicionário Houaiss, uma escumadeira, um utensílio, geralmente de metal, mas modernamente também de plástico, formado por uma concha muito rasa com furos, presa a um cabo longo, usada para retirar a espuma que se forma durante a preparação de alguns produtos, como o açúcar refinado, a aguardente de cana, etc., e daí o nome, ou para retirar algo de um líquido quente, como pastéis, bolinhos fritos em óleo, etc.
Mas pensemos: depois de sabermos que maryse é uma marca registada (nom déposé, em francês), e, logo, um vocábulo com a mesma evolução semântica do vocábulo «gilete», por exemplo, que interesse tem aprofundar?
Com caixas de comentários multitudinárias, os disparates não faltam. Uma leitora aventa a hipótese de a designação ser a amálgama dos nomes Marie, Lise e Louise. Sim, e depois? Serão as três filhas do Sr. De Buyer, o empresário que registou um produto com essa designação? As suas três irmãs solteironas? As três amantes? Há leitores aparvalhados em todo o lado, isso sim.

Classificação das nuvens

Nas nuvens

Tudo o que se pareça com um glossário tem sempre interesse, pois a nossa vida é balizada pelo nome que damos às coisas. «A estrutura do livro segue um sentido ascendente: a primeira parte é dedicada às nuvens baixas (Cumulus, Cumulonimbus, Stratus, Stratocumulus); a segunda é sobre as nuvens médias (Altocumulus, Altostratus, Nimbostratus); a terceira é para as nuvens altas (Cirrus, Cirrocumulus, Cirrostratus); e a última é para inventariar outras categorias. Os nomes em latim da classificação clássica — estabelecida por Luke Howard em 1802 e fixada definitivamente no Atlas Internacional das Nuvens em 1896 — podem assustar quem não está familiarizado com as nomenclaturas científicas, mas ao fim de meia dúzia de páginas deixam de ser um obstáculo» («Da beleza efémera», José Mário Silva, Expresso/Actual, 9.2.2008, p. 45). Tudo verdade, mas as nuvens também tem nome em português, que é a tradução do latim. Assim, nuvens altas: Cirro, Cirrocumulo, Cirrostrato; nuvens médias: Altostrato, Altocumulo; nuvens baixas: Estrato, Estratocumulo, Nimbostrato; nuvens com desenvolvimento vertical: Cumulonimbo, Cumulo.
De acordo com a página na Internet da licenciatura em Meteorologia, Oceanografia e Geofísica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, «as nuvens altas são sempre antecedidas do prefixo cirro porque apresentam sempre um aspecto ténue e fibroso; as nuvens médias apresentam o prefixo alto; a designação estrato entra nas nuvens de maior extensão horizontal, enquanto a designação cumulo entra nas de maior desenvolvimento vertical; as nuvens capazes de produzir precipitação identificam-se com o termo nimbo».

Tradução: «capa»

Não posso mais

Uma coisa que me irrite, mas que me irrite mesmo, muito e sempre? Só uma coisa? Está bem: que nas traduções de obras espanholas a palavra «capa» surja quase sempre traduzida como… «capa»! Homessa! Diacho! Co’os demónios! «Capa», em espanhol, é «aquello que cubre o baña alguna cosa». Una capa de nieve é, para nós, «uma camada de neve»; una capa de pintura é «uma camada de pintura»; una capa de azúcar é «uma camada de açúcar»; una capa de oro é «uma camada de ouro». É verdade que uma parte da indústria portuguesa, o sector pró-espanhol, nos propina tintas de «subcapa». Es curioso, sin embargo —y es aquí donde quería llegar—, que, pese a lo que he planteado, na pintura da madeira, o sistema seja por «multicamada», o que se aplica entre o primário e a tinta alquídica é a subcapa. Mas, quanto a capas e a confusões, ficamos por aqui.

15.2.08

Tradução

Imagem: http://www.snell-pym.org.uk/

Mais barrotes


      Se pensam… estão bem enganados. Matt James estava hoje em Shepherds Bush, Londres, a transformar um quintal cheio de ervas daninhas em jardim. Logo à saída da porta de casa para o quintal, estava um estrado de madeira, deck, em inglês, a que a tradutora julga não poder dar-se outro nome que não deck. Estrado, pois. Matt James construiu também uma airosa pérgula com tubos de aço de secção quadrada (steel square tube), a que a tradutora mais de uma vez chamou «barrotes».

Léxico: «nominho»

Nominho ao Algarve


    Tenho uma prima em 2.º grau, moçoila rural vai para dez anos transplantada para uma cidade do interior, que, ainda que não particularmente atreita a «inhar» a realidade (perdoe-se-me o neologismo, acabado de inventar: com ele pretendo significar o uso de diminutivos), nunca diz «até logo», mas sempre «até loguinho». A prima R., sorte a nossa, não escreve para os jornais e revistas. Não escreve nada. Talvez nunca tenha escrito, mas isso não o afianço, sequer uma carta à revista Maria («O meu namorado tem dois pénis. Que me aconselham a fazer?»).
Há, contudo, diminutivos com um significado pleno, autónomo da palavra de que derivam. Atente-se neste exemplo: «Para aliviar os pais, José trouxe para Lisboa a irmã Conceição, que logo caiu nas graças de Salazar e lhe deu o nominho de Micas» («A filha adoptiva de Salazar», José Pedro Castanheira, 17.11.2007, Expresso/Actual, p. 62). Em Cabo Verde (ver aqui, aqui e aqui) e no Brasil, é comum usar o vocábulo «nominho» para hipocorístico. A ter tradução, a palavra inglesa nickname teria em «nominho» a correspondência perfeita. Mais uma vez, não o vejo dicionarizado, excepto na MorDebe.

Ortografia: «cartunista»

Tapeçaria de Portalegre sobre desenho de Almada Negreiros (1962)
no topo da Sala de Audiências principal do Palácio da Justiça de Aveiro

Antes isso


Primeiro, era cartoonista, um aportuguesamento tolerável — ou quase. Depois, alguém achou que se devia dar o passo seguinte, e ficou cartunista. Pois, claro: os dois oo valiam como u. Agora, porém, leio no Meia Hora: «Polícia prende cinco suspeitos de planear morte de cartonista». Na verdade, quando li a palavra «cartonista», lembrei-me de Almada Negreiros, que, à semelhança de outros grandes artistas plásticos portugueses, fez modelos de cartão para a execução posterior de diversos trabalhos artísticos, como tapetes, mosaicos, etc., que é o que significa a palavra. Só depois de ter lido o início da notícia decidi o começo do texto: «As autoridades dinamarqueses [sic] detiveram ontem cinco homens em Aarhus suspeitos de planear um ataque ao cartonista que desenhou as caricaturas de Maomé, publicadas num jornal da Dinamarca em Setembro de 2005 e desencadeando uma onda de protestos em todo o Mundo entre a comunidade islâmica» (Meia Hora, 13.2.2008, p. 6). Vejo-me, pela primeira vez, na contingência de desejar que seja meramente desleixo, que não convicção de quem escreveu e de quem reviu.

14.2.08

Tradução

Imagem: http://www.bumblebeeauctions.co.uk/

Hum…

Se pensam que hoje… estão bem enganados. Matt James estava a construir um jardim na cidade de St Albans, Hertfordshire, a norte de Londres. O desafio era que o jardim agradasse ao casal, Arif e Rakhshinda, e aos seus três filhos. Matt estava hoje muito propenso a trocas: quis o abrigo de jardim (shed, no original, que eu nunca optaria por traduzir, como o fez a tradutora, por «casota», mas sim «abrigo de jardim») que ali encontrou e trouxe da sua casa uns aros (bore rings?) que, abertos e chumbados no chão, serviriam para as crianças brincarem. A tradutora quis que fossem «aros de barril» (ou arcos), mas via-se à distância que eram aros de rodas de carros de parelha, que em Portugal também se usam para muitos fins. Os arcos dos barris, pipas, dornas, mesmo os arcos de bastição, os que servem para a fase de construção do próprio barril, são simples cintas de chapa, actualmente chapa galvanizada ou de aço inox, inadequados para o fim pretendido por Matt, ao passo que os aros das rodas servem efectivamente para esse objectivo.


«Synopsis: Matt James is challenged to design a family-friendly garden in St Albans catering to everyone’s needs. Rakhshinda loves order and formality, husband Arif wants something a bit more relaxed and their three children want a space they can play in, rather than the DIY dumping ground it is at the moment.»

«Gourmet» e «gourmand»

Se há quem…

A leitora Bárbara Godinho pede-me que explique a diferença entre gourmet e gourmand, pois são palavras usadas na imprensa portuguesa e nunca percebeu a diferença, se a há. Tem razão, são usadas na imprensa. Mas não apenas usadas: recentemente, a revista Actual, do Expresso, publicava um texto do crítico literário Vítor Quelhas a que pertence o seguinte trecho: «A palavra gourmet é de origem francesa (etimologicamente próxima da palavra “gourmand”, guloso, glutão), mas na Antiguidade significava apenas um bom encarregado e conhecedor de vinhos. O gourmet aprecia e desfruta a qualidade, o gourmand adora a substancial sensação da quantidade» («O bom gourmet», Vítor Quelhas, Expresso/Actual, 22.12.2007, p. 37).
De facto, originalmente, segundo Le Trésor de la Langue Française Informatisé, gourmet era «celui qui sait goûter et apprécier les vins; connaisseur en vin». Por extensão de sentido, passou a ser também, e agora quase exclusivamente, «celui qui apprécie la qualité, le raffinement d’une table, d’un mets particulier». Quanto a gourmand, antigamente era apenas aquele «qui mange avec avidité et avec excès», passando depois a ser também aquele «qui aime la bonne nourriture et qui sait l’apprécier». Diferenças? Bem…

Tradução

Errar o alvo

Quando se traduz de línguas muito próximas da nossa, como o espanhol, tem-se muitas vezes a tentação fácil de seguir a literalidade do que se lê no original. Duas línguas diferentes? Mas parecem a mesma, uma só… E então, o grupo partiu, sedento de sangue, com «la identidad del culpable impresa en sus retinas como único blanco». Os dedos do tradutor vão atrás, afeitos já a tanta e tão mirífica facilidade: «a identidade do culpado impressa nas suas retinas como único branco». Calma, calma… Fácil, mas não tanto. Semelhantes, mas diferentes. O que é que em qualquer língua, sendo pormenor, minúcia, não tem a máxima importância?
O espanhol blanco significa em português — qualquer pessoa que lide minimamente com a língua espanhola não o pode ignorar — «alvo», o ponto de mira que se procura atingir com algo, como um tiro, uma flecha, etc. Blanco é «todo objeto sobre el cual se dispara un arma». O nosso «branco» e o blanco espanhol têm o mesmo étimo: o germânico blank. O nosso «alvo», em contrapartida, vem do latim albus, «branco», que, de adjectivo substantivado, passou a substantivo. Também em catalão «alvo» se diz blanc: «Punt o objecte al qual hom intenta d’adreçar un tir. Tirar al blanc.» O nosso polissémico «branco» já significou antigamente, é verdade, «alvo», mas integrado numa locução (talvez castelhanizante…): branco de pontaria. Mas isso foi há muito, muito tempo, ainda o tradutor era poeira cósmica.

13.2.08

Tradução

Imagem: http://www.glendaleagriculture.co.uk/


Parecido, não haja dúvida



      Se pensam que hoje não houve nada a assinalar no episódio dos Jardins por Medida, estão bem enganados. Além da parvoíce de se confundir «soalheiro» com «solarengo», regiões com pontos cardeais, a estocada letal foi mostrarem algo semelhante ao que se pode ver na imagem de cima e a tradutora afirmar que era uma… manjedoura! Não ouvi, por ter o volume baixo, a palavra em inglês, mas podia ter sido a expressão pig trough ou food trough ou, sei lá, até feed box. A proprietária do jardim, numa casa vitoriana em Liverpool, gostava de antiguidades e velharias, pelo que Matt James foi a uma casa da especialidade, onde encontrou o objecto, de chapa, que adaptou para fazer um «riacho» no jardim. Ora o objecto era claramente um comedouro não uma manjedoura.


«Matt James, attempts to liven up a lack lustre backyard in Liverpool. Owner Laura wants a garden with a rustic feel and a contemporary twist. Matt’s solution is an ambitious sunken garden.»

Léxico: «haček»

Diacríticos

O leitor A. M. L. pergunta-me que designação tem o acento, uma espécie de acento circunflexo invertido, sobre certas palavras, como no r do antropónimo Dvořák. Chama-se haček, termo da língua checa que significa «ganchinho». Este diacrítico serve para indicar, na escrita latina da língua checa, a qualidade da pronúncia.

12.2.08

Tradução: «spade»


Troca de ferramentas

      Hoje, Matt James, dos Jardins por Medida, concebeu para os londrinos Lisa e Paul, proprietários de um jardim selvagem, um espaço ameno, com uma pérgula e um banco como elementos centrais. Teve de arejar, como quase sempre, a terra que o jardim já tinha, para que as novas plantas enraizassem bem. Além de enxada e de outras ferramentas, serviu-se de uma spade. Vi, com estes que a terra há-de comer ou o fogo cremar (ainda não decidi, se é que posso, com certezas, fazê-lo), uma spade semelhante à da imagem nas mãos de um ajudante de Matt James, e ouvimos dizer spade — mas a tradutora quis que fosse uma «espátula». Ora, «espátula», em inglês, seria, dependendo do uso, spatula ou palette-knife, ferramentas completamente diferentes.


«Decluttering a Backyard
Host Matt James meets Londoners Lisa and Paul, who have recently bought a new house in Northwest London. After forcing hoarder Pete to get rid of the junk in their cluttered backyard, James makes the most of their small space, creating a large seating area for the couple to relax in.»

Léxico: «dendrita»

Imagem: http://www.fromoldbooks.org/

Do alto da coluna


«Tal forma de comportamento, residir no cimo de um monte escarpado, a estela, por isso se chamavam estilitas, ou empoleirados numa árvore, ditos dentritas, fascinava os místicos orientais» («São Máron», A Guarda, n.º 5118, 7.2.2008, p. 23). Uma frase, vários problemas. Ao anacoreta que vivia sobre um pórtico ou sobre uma coluna, como o celebérrimo São Simeão, o Estilita (memória litúrgica em 5 de Janeiro), dava-se o nome de estilita. Sobre uma coluna, não no cimo de um monte escarpado. O autor do texto deve ter confundido com a bruxa de monte Córdova. Ao anacoreta que vivia no cimo de uma árvore, uma variante da forma de ascetismo representada pelos estilitas, dava-se o nome de dendrita e não «dentrita», pois o étimo é o grego dendron, «árvore». O santo, finalmente e para estarmos de acordo sobre alguma coisa, para a Enciclopédia Católica Popular e para Fr. Pantaleão de Aveiro é «Maron», mas para José Manuel de Castro Pinto e para mim é «Máron».

«Tomarão este nome de maronitas, de hum seu mestre antigo, que se chamou Maron, são sogeytos á igreja romana, ao menos da era do senhor Jesu de 1476 na qual sendo summo pontifice na igreja de Deos Xisto IV o patriarca do Monte Líbano, pastor, & superior dos christãos maronitas, mandou embayxadores ao dito papa, dando-lhe obediencia, & pedindo-lhe tivesse por bem mandar-lhe quem os ensinasse, doutrinasse & instruísse na doutrina catholica da santa madre igreja romana» (Frei Pantaleão de Aveiro, Itinerario da Terra Sancta e suas particularidades; dirigido ao illustrissimo e reverendissimo senhor D. Miguel de Castro, dignissimo arcebispo de Lisboa metropolitana, 7.ª ed., organizada por António Baião, Coimbra, Tipografia da Universidade, 1927, p. 502).

11.2.08

Tradução: «trellis»


Língua no estaleiro

Hoje, Matt James, dos Jardins por Medida, disse aos proprietários do jardim que estava a conceber que ia arranjar «a special trellis». O que se viu, mais tarde, foi algo semelhante ao que a imagem de cima mostra: uma treliça plana, enferrujada, semelhante às que se usam como elemento estrutural nas lajes de betão. Cristina Diamantino, a tradutora, da PSB, achou por bem traduzir trellis por «latada». Ainda que trellis tenha, remotamente, vindo do latim trichĭla,ae, que significa «latada», e, nos dicionários de inglês-português, seja esta a primeira acepção, tal não significa que se deva ficar por aí. De facto, a estrutura usada por Matt James era uma treliça das que se utilizam na construção civil, a que depois se aplicou uma moldura de madeira por pintar. Mas é sempre, no princípio e no fim, uma treliça. De resto, e mais uma vez, experimente ir ao Aki perguntar por «latadas». Ou encolhem os ombros ou dizem-lhe que «temos ali treliças, se também servir»…

Léxico: «barcoleta»

Fez-se ao mar

«Do “Rei dos Mares” à barcoleta. Para todos os gostos e feitios, mas só para alguns bolsos. Entre veleiros e iates, de maior ou menor dimensão, mais luxuosos ou recatados, avançados em tecnologia ou sem quaisquer inovações, são muitas as ofertas disponíveis» («Torne-se imperador dos sete mares», Meia Hora/suplemento «Hora Extra», 11.2.2008, p. II). Não aparece registado em nenhum dicionário, tanto quanto sei, e, no entanto, ela aí está, a ser usada todos os dias. Parece ter um sentido afectivo, diminutivo, como «barcote».

10.2.08

Acento nas palavras latinas


Para quê?

Veritas era, na mitologia romana, a deusa da verdade, filha de Saturno e mãe da Virtude. Família distinta, esta. É também, e isto interessa mais ao caso, o lema da Universidade de Harvard. Ainda mais perto do que pretendo, é também um dos lemas da Ordo fratrum Praedicatorum — os Dominicanos. Ora, já aqui falei, a propósito da Caritas, do erro que é grafar palavras latinas com acentos. Anteontem, estive mesmo em frente do edifício da empresa proprietária do jornal A Guarda. E lá está: Véritas. Está mal.
Será que estamos perante a boa intenção de ajudar o leitor a pronunciar bem a palavra? Ainda assim, não deixa de ser um erro. E isto faz-me lembrar os tribunais gacaca, no Ruanda. São tribunais populares, que, em sessões semanais, julgam os responsáveis pelos massacres de 1994. Gacaca é uma palavra do kinyarwanda, a língua oficial do país, que se pronuncia «gachacha». Pois na imprensa de todo o mundo passou a grafar-se a palavra como «gachacha». Também está mal.

9.2.08

Léxico: «recolho»

Imagem: http://www.cascadiaresearch.org/


Baleia



      Um leitor pergunta-me como se designa o jacto de água que as baleias lançam quando vêm à superfície. Primeiro que tudo: não se trata de um jacto de água, mas de ar. Como quando está muito frio e respiramos: é a condensação que faz aparecer a nuvenzinha. Com as baleias é o mesmo, mas em grande. O jacto de um cachalote pode atingir nove metros de altura. O orifício por onde sai esse jacto chama-se espiráculo. Em francês, les évents. Em inglês, blowhole. Ao próprio jacto, e era essa a pergunta, dá-se o nome de recolho (regressivo de «recolher»). Em inglês, diz-se blow, «sopro». Em francês, jet. Em espanhol, surtidor.

7.2.08

Léxico: «cápea»

Imagem: http://www.immaginaria.net/

Uma coisa, um nome



      À laje que encima algumas paredes e muros de alvenaria, cara Luísa Pinto, como o que se vê na imagem de cima, para os defender de derrubamento, dá-se o nome de cápea ou capeia. Capear é o nome que se atribui ao acto de cobrir as paredes ou muros com essas lajes, as cápeas.

Actualização em 25.11.2010


      «E também resolvia a grande obra da mina do pomar, perto de atuída por sucessivos alagamentos e que se fazia preciso romper de novo nalguns pontos, de terem cápeas cedido, consoante o parecer de mestre Cagoto, o mineiro» (Tiros de Espingarda, Tomaz de Figueiredo. Lisboa: Editorial Verbo, 1966, p. 51).

Léxico: «borracheiro»

De borracha

«Das profissões e actividades dos bomboteiros à pesca do atum, às plantações da cana-de-açúcar, ao transporte das uvas às costas dos “borracheiros”, conhecidos pelo transporte tradicional do mosto em recipientes feitos de pele de cabra» («Recordações de duas ilhas desconhecidas», Lília Bernardes, Diário de Notícias/Gente, 12.1.2008, p. 9). Os dicionários consultados registam o vocábulo «bomboteiro», mas com uma definição ligeiramente diferente: «borracheiro é aquele que transporta vinho em odres ou borrachas», regista o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado. Mais uma vez, não se percebe é por que razão aparece com aspas no texto do Diário de Notícias.

Tradução: «argent de poche»

Trocos



      Numa tradução, aparece-me a locução francesa «argent de poche» (e podia ter aparecido a correspondente inglesa, pocket money). Se, por um lado, me repugna traduzi-la, como até algumas luminárias fazem, por «dinheiro de bolso», por outro, a suposta vernaculidade transmitida pela tradução «dinheiro para os alfinetes» não me convence. Decido-me por «dinheiro para as suas coisas». Antigamente, à porção de dinheiro destinada às despesas miúdas e particulares dos reis e dos príncipes dava-se o nome de «bolsinho». Mas nós, simples plebeus, temos de nos contentar com os trocos estrangeiros.



6.2.08

Ortografia: «superterça-feira»

À escolha do freguês?


      1. «Mas a curta distância para Barack Obama reforçou o interesse pelas batalhas que faltam até à super-terça-feira de 5 de Fevereiro em que votam 23 estados» («Hillary e McCain são ‘comeback kids’ de 2008», Helena Tecedeiro, Diário de Notícias, 10.1.2008, p. 32).
      2. «Comício, avião, comício, avião. O dia-a-dia dos candidatos à Casa Branca tem-se resumido a pouco mais do que isso nos últimos dias antes da superterça-feira de amanhã. E antes de fazerem uma pausa para verem e deixarem ver o Superbowl, a final do campeonato de futebol americano, quatro deles — dois republicanos e dois democratas — participaram num fórum destinado aos jovens e transmitido em directo pelo canal de televisão MTV e na Internet» («À caça do voto jovem antes da superterça-feira» (Helena Tecedeiro, Diário de Notícias, 4.2.2008).
      3. «Mas na Super Terça-feira, com 24 estados em eleições primárias para apoiar um de dois candidatos do Partido Democrático, as coisas estão mais animadas na corrida presidencial: a senadora por Nova Iorque aparece nos ecrãs empatada com o senador pelo Illinois» («Clinton e Obama: um verdadeiro duelo no Oeste», Sérgio H. Coimbra, Meia Hora, 6.2.2008, p. 8).

Léxico: «gelaba»

Não as há judaicas



      «Morreu às mãos de um jovem de 27 anos, vestido com uma típica jallaba árabe, não se desse o caso de os restantes transeuntes confundirem o islamita radical Mohammed Bouery, de dupla nacionalidade (holandesa e marroquina), com um ocidental» («Quem se lembra ainda de Theo van Gogh?», Cadi Fernandes, Diário de Notícias/Gente, 12.1.2008, p. 16). Mas há-as sem serem árabes? Pois é, de qualquer maneira, o mais importante é isto: temos a palavra em português, e até com duas variantes: gelaba e jilaba. Só pode ser preguiça dos jornalistas. Já o semanário Sol tinha preferido, em 2006, outra grafia: «Mohamed Ouakalou é um jovem marroquino de 26 anos, vestido com uma Djellaba, túnica tradicional do Sul de Marrocos» («Acabou-se o jejum. Muçulmanos celebraram o fim do Ramadão no Porto», Nuno Escobar de Lima, Sol, 28.10.2006, p. 36).


Léxico: «bomboteiro»

Quase bomboneiro

«Sendo filho de “bomboteiro”, tinha acesso fácil ao marketing das companhias de navegação. “Bomboteiros” eram os homens que comercializavam os bordados da Madeira e artesanato de vime dentro de uma pequena embarcação que acostava aos grandes navios que fundeavam ao largo da baía» («Recordações de duas ilhas desconhecidas», Lília Bernardes, Diário de Notícias/Gente, 12.1.2008, p. 9). Os dicionários consultados não registam o vocábulo «bomboteiro». Não se percebe é por que razão aparece com aspas no texto do Diário de Notícias.

5.2.08

Léxico: «artesa»

Imagem: http://www.euskonews.com/

Porque não te calas?



      Cinco pessoas presentes. Três professores, uma psicóloga e eu. Aparece na televisão uma imagem semelhante à que encima este texto. Pergunto que nome tem o objecto de madeira que estamos a ver. Dois dos presentes respondem desnecessariamente que serve para amassar o pão, outro confessou que tinha o nome debaixo da língua (atenção, Freud) e o quarto, o mais inteligente, calou-se. Podiam ter respondido «amassadeira» ou «masseira», e eu ficaria satisfeito. Mas não, nada. Na verdade, e era esta a resposta que eu pretendia, àquela caixa de madeira quadrilonga, que vai alargando de baixo para cima, chama-se artesa. «Só conhecia o parónimo», diz-me uma das professoras.
      José Pedro Machado dá como étimo de «artesa» o grego άρτος, «pão», mas o Diccionario de la Real Academia Española e o Dicionário Houaiss dizem, e bem, seguindo a lição de Corominas, ter o vocábulo etimologia obscura.

Determinação de topónimos: Maputo

Decidam-se

Uma revolução na Antena 1, entre o noticiário das 14 e o das 15 horas: no primeiro, a propósito dos acontecimentos em Moçambique, era «no Maputo», «do Maputo», «para o Maputo». De Maputo, o correspondente da Antena 1, Faustino Igrejas, ia dizendo: «em Maputo», «de Maputo», «para Maputo». No segundo noticiário, já era «em Maputo», «de Maputo», «para Maputo». Sempre a aprender. Sempre a desaprender. Sempre a aprender. Sempre a desaprender…


[Ver aqui também.]

Ortografia: «caixa-negra»

Registem

«Os dados registados pelas “caixas negras” existentes nos caças permitem complementar as audições de todos os envolvidos em situações como a registada terça-feira na zona de Penamacor» («‘Caixas negras’ provam existência de danos», Manuel Carlos Freire, Diário de Notícias, 18.1.2008, p. 3). Já sabemos que a caixa nem é negra nem é uma, mas justificará o facto que se usem as aspas? Trata-se de uma palavra composta, que o Dicionário Houaiss, por exemplo, regista: caixa-negra.

Léxico: «luvas cirúrgicas»


De pelica

«Nos carris onde circulam os comboios no sentido Sintra-Lisboa (onde se deu o acidente) várias manchas de sangue, uma sola de sapato aparentemente feminino e umas luvas de enfermagem relatam o triste fim de Nádia, filha de Pedro Mário da Silva, ex-comandante dos Bombeiros de Agualva-Cacém e recém-empossado vice-presidente da Associação Humanitária da corporação» («Conversa ao telemóvel causa atropelamento», Isaltina Padrão, Diário de Notícias, 12.1.2008, p. 38). Percebemos, sim senhor, mas não foram sempre designadas «luvas cirúrgicas»?

Tesoura de tosquiar: partes


Vamos tosquiar!

O Global foi entrevistar o último fabricante de tesouras de tosquiar (esquilar ou tosar, como também se diz) em Portugal. Isto interessa-me. Mateus Filipe Miragaia tem 66 anos e mora em Donfins do Jarmelo, no concelho da Guarda. Produz entre 200 e 300 tesouras por ano, que vende a 12 euros cada.
«O fabrico de cada tesoura leva cerca de uma hora. O ferreiro começa por “cortar tiras de 20 ou 21 centímetros de uma chapa de dois metros por um”, numa máquina. Na fase seguinte leva a tira à forja “para lhe dar dois calores que se dão na fase inicial. Um na parte da folha [parte da tesoura que vai cortar a lã] e outro na parte da anca ou [do eixo para trás], seguindo-se a soldadura de uma peça mais fina, em ferro, que é para fazer a asa”. Utiliza um pequeno martelo para moldar o metal incandescente a seu gosto. “O segredo está nas pancadas”, diz, sorridente. Depois, puxa por uma barra de ferro e, também a quente, corta uma ponta daquele que vai ser o futuro eixo da tesoura.
Seguidamente, indica que vai passar com as duas partes da tesoura pelos vários “esmeriz” [esmeril — pedra dura que serve para polir metais] que possui na oficina. “Começo pelo mais grosso e termino no polidor, para a ‘folha’ da tesoura ficar totalmente lisinha”, esclarece. A última fase da concepção do utensílio é a colocação do eixo “quando se liga uma parte da tesoura com a outra”. Antes de dar a tarefa por concluída “tira-lhe o fio para a tesoura não morder [eriçar a lã]”, leva-a junto do ouvido para escutar o “toque” e experimenta a cortando um pedaço de lã. “Esta ainda mastiga um bocado”, observa. Pega no martelo e, três “pancadas” depois, afiança: “Está pronta!” A produção é dada por concluída com a gravação da sua marca, um “carimbo” semelhante a um “pé de pita [galinha]” que exara num dos lados da tesoura» («O último fabricante de tesouras de tosquiar», António Sá Rodrigues, Global, 4.2.2008, p. 14).

Chavões

Grilhetas semânticas


      Parece fazer parte da ordem natural das coisas: se alguém é detido, o aprendiz de jornalista já sabe que o indivíduo ou está nos «calabouços da PJ» ou numa «cela da PSP». Como temos várias polícias, o exercício pode ser empolgante. Proponho, assim, aos senhores jornalistas a seguinte tabela fixa: para a GNR, chilindró; para a ASAE, masmorras; para a Polícia Marítima, enxovia; para a Brigada Fiscal, cárcere; para a Polícia Militar, ergástulo; para o SEF, estarim; para a Polícia Municipal, cafua; para o SIS, tronco; para a PJM, séjana; para a Polícia Florestal, cubículo; para o SIED, cativeiro; para o SIEDM, enfiada. Se forem presos e não detidos — e muitas vezes os jornalistas metem os pés pelas mãos e trocam os conceitos —, espera-os, geridos pelos Serviços Prisionais, outros locais: cadeia, estabelecimento prisional ou prisão.

4.2.08

Tradução: «encombrants»

Coisas grandes…

A frase era «Le service des encombrants de la mairie». Ora, nem sequer os bons dicionários bilingues francês-português dão a definição que se ajuste ao contexto. Algures, porém, encontra-se a definição: «Encombrants : déchets des ménages trop volumineux pour être mis à la poubelle (matelas, meuble, réfrigérateur, cuisinière …).» São o que se deu em chamar, desde há não muito tempo, em Portugal «monstros»: todos os resíduos que, pelas suas dimensões ou características, não possam ser transportados pelos camiões de recolha das autarquias, como móveis, colchões, electrodomésticos grandes e resíduos verdes, como restos de limpeza de jardins. Também entre nós a acepção não está registada, e talvez nunca venha a estar, sendo que a palavra é largamente usada no dia-a-dia, em especial nas autarquias.

3.2.08

Léxico: «nateira»

Imagem: http://www.silvercollection.it/

Faz falta


Desconhecia, confesso, o vocábulo «nateira», a significar o recipiente em que se serve natas à mesa. Descobri-o neste artigo: «Em “O Código dos Wooster” (publicado originalmente em 1938) comparece a sua parelha mais memorável: o saudavelmente lúdico Bertie Wooster, que também narra, e o seu prestimosíssimo valete de quarto Jeeves. A perseguição de uma nateira de prata em forma de vaca, o roubo do capacete de um polícia, o desaparecimento de um caderno de apontamentos com observações perigosas sobre os ruídos que um velho magistrado produz a comer a sopa, eis algumas das terríveis “aventuras” aqui vividas pela dupla» («O pé ou o sapato?», Mário Santos, Público/Ípsilon, 11.1.2008, p. 40). O tradutor da obra recenseada, Ernesto Carvalho, optou por traduzir os termos ingleses cow-creamer e cream jug por «nateira». «They’ve got an eighteenth-century cow-creamer there that Tom’s going to buy this afternoon.” “The scales fell from my eyes.” “Oh, it’s a silver whatnot, is it?” “Yes. A sort of cream jug. Go there and ask them to show it to you, and when they do, register scorn.”» Não vejo a palavra registada em nenhum dicionário, o que não constitui, já sabemos, óbice ou erro. Está bem formada — à semelhança de açucareira, almoçadeira, azeitoneira, bolacheira, biscoiteira, bomboneira, cafeteira, chaleira, chocolateira, fruteira, leiteira, manteigueira, molheira, oveira, saladeira, sopeira, sorveteira, torteira… — e faz falta. Apenas no Novo Diccionario Francez-Portuguez, de José da Fonseca, uma obra publicada em Paris, em 1856, encontro a palavra «nateira», mas noutra acepção: «CREMIÈRE, s. f. (kremiére) cremeira, nateira (mulher, que vende nata).»

Os hidroaviões estacionam?

Olhe que não

Os aviões ficam estacionados na pista ou em hangares, isso é certo. E um hidroavião? Bem, se um hidroavião, pelas suas características, não aterra, antes amara, também não me parece que estacione. Não pensou assim o jornalista Eurico de Barros, que escreveu: «Em 1945, caiu um nevão enorme em Lisboa e arredores, tão intenso que as fontes e bicas da cidade gelaram e houve quem conseguisse fazer ski em certas zonas. Os aeroportos de Cabo Ruivo e da Portela ficaram praticamente paralisados. Há fotos desse tempo que mostram os hidroaviões estacionados no Tejo, cobertos de branco, sob um céu de chumbo, e a pista da Portela, completamente nevada, com muitos aviões parados e uma cortina de nevoeiro que não deixa ver nada a alguns metros de distância» («Outros tempos com outros aeroportos», Eurico de Barros, Diário de Notícias, 12.1.2008, p. 23). Os hidroaviões, como os navios, atracam. Ficam atracados.

2.2.08

Léxico: «lágrimas-batávicas»

Coisas de vidro

      Já há muito tempo que não lia ou ouvia a palavra «lágrima-batávica». Sabem do que se trata? É um pingo de vidro, derretido em forma de lágrima, que se esfria subitamente mergulhando-o em água fria, como se pode ver neste vídeo. Descoberta que teve consequências para a indústria vidreira. Ter-nos-á vindo do francês larme Batavique. Em inglês tem pelo menos três designações: Prince Rupert’s Drops, Rupert’s Balls e Czar’s Tears. Batávica porque foi inventada nos Países Baixos, pois em latim Batavi (Batavos, em português) era o nome da tribo que habitava a área que corresponde actualmente àquele país. Já agora, seria injusto omiti-lo, em neerlandês diz-se bataafse traan.

Léxico: «grimório»

Espíritos do mal   


      Conhecem a palavra «grimório»? Bonita, não é? Era o nome que se dava antigamente ao livro de magia com o qual se evocavam (ver aqui a confusão babélica em que esta palavra anda envolvida) os espíritos. O étimo é o francês grimoire, com o mesmo significado. Interessante é que, nesta língua, a palavra se tenha formado, provavelmente, a partir de grammaire, «gramática», com influência de grimace, «careta, esgar», que importámos desnecessariamente: grimaça. De maneira que é neste ponto que ainda hoje nos encontramos: para alguns, a gramática não passa de feitiçaria e quem a usa devia ser queimado.

Pronúncia: «grés»

Escolhas erradas

No programa de entrevistas 1001 Escolhas, na Antena 1, Madalena Balça entrevistou hoje Susana Félix. É verdade que Madalena Balça não pronunciou o nome da sua entrevistada como defendo que deve ser: /Félis/, como também digo /cális/(cálix), /cóccis/(cóccix) e /fénis/(Fénix), e quem me apanhar a pronunciar de forma diversa pode dar-me um tiro. Mas não é disso que quero hoje falar. No decurso do programa, a palavra «grés» (a rocha sedimentar que é resultado da desagregação de diversas rochas e minerais, composta essencialmente por quartzo e feldspato) foi pronunciada com e fechado. Errado: «grés» (do francês grès), acentuado graficamente como é, só pode pronunciar-se com e aberto. Deve haver aqui confusão com a palavra «manganés», que tem a variante «manganês».