É o sertão
Um arquitecto brasileiro (Vitória da Conquista, Bahia), Orlando Ribeiro de Oliveira, perguntou ao Ciberdúvidas qual a etimologia da palavra «sertão». A
resposta ficou-se pela consulta de dois dicionários. Já não digo que se esperava mais, mas parece-me evidente que o consulente merecia mais. Para ser subtil.
Nunca li explicação mais completa do que a do Prof. Vasco Botelho de Amaral, na obra
Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 476-481).
«
Sertão. Duas hipóteses etimológicas. A língua portuguesa é cheia de mistérios. E todos os que se dedicam ao seu estudo de alma e coração quanto mais a investigam tanto mais a ignoram. Às vezes basta uma palavra só para se erguer uma tremenda dificuldade, um complicado problema, um enervante enigma. Porquê? Porque a origem de grande número de palavras da nossa língua está para descobrir. E, em virtude da universalidade do Idioma, há verdadeiros enigmas no vocabulário relacionado com a nossa expansão por terras de além-mar.
Vou considerar uma palavra que todos os Portugueses conhecem, embora mais se aplique a terras ultramarinas.
E não fui eu o inspirador deste assunto. O ilustre escritor brasileiro Dr. Pedro Calmon, Presidente da Academia Brasileira de Letras, escreveu-me, formulando o seguinte problema da língua portuguesa:
“… poderia dar-me a etimologia mais aceitável da palavra
sertão, que tanto ocorre na nossa linguagem, sem que ainda a tenhamos devidamente esclarecido no Brasil? Diz o refrão que a rico é quem se pede…”
Ora, a este provérbio gentil com que o douto académico me cativou para me obrigar ao exame de um intricado problema ocorreu-me opor um refrão, que diz — cada um dá o que tem e não é a mais obrigado. Vamos a ver, pois, o que, de boa vontade, se pode arranjar:
1.ª hipótese.
Quem abrir o
Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa do filólogo brasileiro Antenor Nascentes lê o seguinte:
“
Sertão — Forma aferética de
desertão, segundo Maximino Maciel,
Gram. Descr., 44, v. Afrânio Peixoto,
Poeira da Estrada, pág. 51. É de explicação difícil o ensurdecimento do
s sonoro.”
Se abrirmos também o
Dicionário de Caldas Aulete e Valente, veremos que, semelhantemente, aí se dá para raiz da palavra
sertão o latim
desertus, isto é,
deserto.
A opinião dos etimólogos tem sido, portanto, esta, segundo a qual o
sertão é um
deserto grande.
Deserto —
desertão e, caída a sílaba inicial,
desertão teria ficado reduzido a
sertão. Como já se notou é, porém, difícil de explicar a mudança da pronúncia do
s, pois em
deserto e
desertão o
s é sonoro, como
z, e em
sertão é surdo, como
c.
Antes de pretender entrar na origem da palavra, faço-me esta pergunta: Que é o
sertão?
Eu gosto de ir ao velhinho do
Dicionário de Morais e Silva buscar a definição das palavras, porque esse léxico tem um sabor especial de singeleza concisa:
“
Sertão, s. m. O interior, o coração das terras, opõe-se ao
marítimo, e costa… O
sertão toma-se por mato longe da costa. O
sertão da calma; i. é, o lugar onde ela é mais ardente. Lobo “metendo-se pelo
sertão da calma, que naquele tempo fazia.”
Além disto que se lê em Morais, analisando autores portugueses antigos (Barros, Mendes Pinto, Tenreiro, etc., etc.), vemos que
sertão se aplicou, por vezes, às próprias cidades e a sítios povoados, embora de gente selvagem.
É fácil ler-se: “
sertam da cidade” — “Dentro no
sertam desta cidade está outra cidade muito mais nobre…” (Tenreiro,
apud Domingos Vieira).
Pelo que, o sentido mais ajustável a
sertão é o de
interior.
Tomando o vocábulo neste aspecto, lembrei-me de relacionar o
sertão com a ideia de
quentura, de região
quente; e, assim, quem sabe se a palavra
sertão não se relaciona etimologicamente, de algum modo misterioso, com a palavra
sertã. Explicação arrojada? Sem dúvida. Estou mesmo a adivinhar o sorriso dos linguistas que se esquecem de que a linguagem é um produto da imaginação humana e, sem imaginação, não se estuda a língua convenientemente, no campo misterioso das origens.
Pois é assim mesmo: imagino entre
sertão e
sertã uma possível irmandade etimológica.
Vejamos, ou, por outra, raciocinemos e imaginemos.
À medida que se caminha para o interior das terras ultramarinas, a temperatura é natural que seja mais elevada e, a certa altura, podia haver-se confundido a ideia de sítio quente com a de sítio interior, região longe da costa; isto é, prevaleceria o sentido de localização, atenuando-se a ideia de calma, ideia mantida, porém, na locução referida de
sertão da calma. Sendo assim, o facto de os nossos escritores antigos (como Barros, Góis, etc.) usarem de
sertão, no sentido de
interior, não determina a exclusão da ideia de
quentura que, talvez, primeiro estivesse em sertão.
Quero dizer, nós podemos relacionar o
sertão com a ideia de
sítio, longe da costa, onde há grande calor; e a expressão
sertão da calma (isto é, o lugar onde a calma é mais ardente) pode ajudar a formular esta relação.
Aliás, os Portugueses aplicaram a expressão ao interior das terras africanas, asiáticas, brasílicas e até ao interior de ilhas. Tanto assim que em Fernão Mendes Pinto se lê (cap. 143):
“A terra em si é quase do teor do Japão, algum tanto em partes montanhosa, mas no interior do
sertão é mais plana…”
Se a palavra
sertão apenas pudesse significar
interior, a expressão
interior do sertão era igual… a
interior do interior.
Nada impede que entre
sertão e
sertã tivesse havido algum dia qualquer
relacionação etimológica e até analógica.
A palavra
sertã (que se deve escrever com
s, e não com
c) que quis dizer? Donde veio? Que outras formas teve? Eis perguntas importantes, no lance, e às quais adiante se responde.
Dir-me-ão que
sertã é frigideira, torradeira, etc., mas, além de se poderem lembrar frases como — aquele sítio é um
forno, acrescento isto da
Vida de S. Paulo Eremita (citado por Morais, s. v.
Sartém):
“vencido de tantos tormentos e
sarténs de fogo.”
É que
sertãs eram lâminas ou chapas ardentes com que se abraseavam os mártires. E a palavra aparecia em formas como
sartagem, sartaem, sartãa, sartan, sartam, sartã.
O
sertão, por seu turno, também se escreveu
sartam, sertam, etc.
Meras coincidências? Talvez, Mas quem conhecer mais, que o diga.
O mais difícil é isto: a
sertã é feminina; e o
sertão, masculino. Mas podia ter havido qualquer desconhecida metonímia. Ademais, eu estou apenas a
relacionar as palavras, quanto à etimologia e quanto à possível transição semântica.
A ideia de ardência, de calor grande está, aliás, na origem que considero comum a
sertã, a
sertão, e também comum ao espanhol
sartén. É o latim
sartago, sartaginis, frigideira, sertã.
Algum português nos primeiros contactos com a quentura das terras do interior da África, da Ásia não podia um dia ter relacionado a forma
sertão com a ideia dessa quentura sentida?
A mim me parece possível.
2.ª hipótese
Visto que ninguém sabe nada quanto ao mistério da palavra, já que estou em campo de hipóteses, outra hipótese formularei para origem de
sertão: o latim
sertus, isto é, entrelaçado, particípio de
sero, entrelaçar, enredar, etc.
Para isso, convém lembrar que
sertão pode ser floresta, mata densa no interior.
As terras interiores de África e Ásia muita vez se apresentavam aos Portugueses como
entrelaçadas ou densas florestas virgens. Quem sabe se, por outra hipótese que também formulo, à ideia de sertão, originariamente, se ligava a ideia de mata densa e grande?
Chi lo sa?
Apenas com esta formulação e dedução de duas novas hipóteses respondo à dificílima consulta que me fez o eminente Dr. Pedro Calmon, grande escritor do Brasil.
[Como vimos, há quem, aliás precariamente, relacione este vocábulo com
deserto. Não me parece.
Que é um
deserto? Propriamente, um
deserto é sítio abandonado, pois o latim
desertus é um particípio de
de sero, abandonar, deixar.
Deserto é solitário, e daí vieram as ideias de lugar inculto, silvestre. Ora,
sertão é só deserto grande?]
Se para mais não servir, sirva esta minha resposta como homenagem renovada ao grande interesse com que altos espíritos, qual o de Pedro Calmon, se entregam ao estudo da Língua Comum.
Um aspecto que devo ainda focar: é o da portuguesidade deste termo.
Se é hoje mais brasileiro que português, note-se que, antes de se aplicar às grandes regiões interiores do Brasil, referiu em bocas portuguesas sítios africanos e asiáticos.
Estupenda língua, a nossa! Verdadeiro documento da presença lusíada por terras de além os mares! Como não hão-de ser misteriosas muitas palavras portuguesas, se elas ainda mantêm o mistério das terras que fomos encontrar no enigma das plagas longínquas?»