30.4.08

Grafia dos nomes próprios

Ver em cada caso

Ao meu texto de ontem sobre o uso da barra deixou um leitor — Franco e Silva, que não conheço de mais lado nenhum que não dos comentários pertinentes e informados ao meu blogue e a outros — um comentário que interessa trazer para aqui. Escreve este leitor: «Se me é permitida a achega na correcção do texto transcrito, deveríamos ter MADAIL e não *“Madaíl”, não é verdade?» O texto é o que está mais abaixo, da autoria de João Villalobos: «[…] prometi ao Virgil Mihaiu do ICR grafar-lhe o nome como deve ser desta vez e troquei conversas com o casal de bloggers Eduardo Pitta/Jorge Neves, o Miguel Real, a Isabel Goulão, o Nuno Miguel Guedes, o Jorge Silva, os “nossos” Luís Naves e Fernando Madaíl, o Fernando Pinto do Amaral, o Fernando Sobral, eu sei lá.»
Seria preciso perguntar à pessoa visada, jornalista do Diário de Notícias, e, em todos os casos, a cada pessoa que tem esse apelido, porque a norma (Base L do Acordo Ortográfico de 1945) em vigor refere: «Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume, adopte na assinatura do seu nome.» Costume ou registo legal, na verdade. É o que me leva a grafar sempre o meu primeiro nome sem acento agudo: «Helder».
Não ignoro, naturalmente, que o apelido «Madail» ganhou grande visibilidade — e daí todas as elucubrações à volta dele — graças a Gilberto Madail, que ora se vê grafado com acento ora sem acento. Se alguma coisa me choca, é esta hesitação, nada mais. Para mim, a regra de que as palavras agudas terminadas em l não são graficamente acentuadas aplica-se somente aos nomes comuns. E será escusado lembrarem-me os nomes «Abigail», «Vermoil» e outros. Tão escusado, na verdade, como esgrimirem o argumento de que «Madail» está assim registado no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado. Em suma, a forma como cada um escreve o seu nome faz fé. Nisto, não estou com Cesare Pavese, que escreveu: Pensa mal, non ti sbaglierai. Se houver dúvidas ponderosas e em casos oficiais, peça-se ao visado prova do facto. Quanto ao resto, ocupemo-nos dos verdadeiros erros no uso da língua portuguesa, que não são poucos.

29.4.08

Erros e gralhas

Muito bem

Recentemente, o Público emendou uma simples e mísera aspa a mais. Para mim, e para qualquer leitor, suponho, foi um acontecimento memorável. Hoje, prosseguindo na mesma senda, vem corrigir a falta de propriedade no uso de um vocábulo. «Na notícia “Punição verbal para dois jornalistas do Expresso que puseram on-line falsa notícia sobre Pinto da Costa”, publicada na edição de sexta-feira (página 8), o título mais correcto seria “repreensão verbal” ou “admoestação” em vez da expressão “punição verbal”» («O Público errou», 29.4.2008, p. 42). De facto, apesar de o primeiro parágrafo da notícia em causa terminar com «concluiu-se com a decisão de admoestar verbalmente os dois jornalistas envolvidos no caso», a locução «punição verbal» não faz sentido, e o princípio de corrigir é bom. Se não revelasse, como suspeito, simples acatamento de um possível reparo dos envolvidos, revelava, pelo menos, respeito pelo leitor. E é isto que importa.

Uso da barra /


Verão/Inverno

      Ora aqui está um bom uso da barra. João Villalobos escreveu apenas «[…] prometi ao Virgil Mihaiu do ICR grafar-lhe o nome como deve ser desta vez e troquei conversas com o casal de bloggers Eduardo Pitta/Jorge Neves, o Miguel Real, a Isabel Goulão, o Nuno Miguel Guedes, o Jorge Silva, os “nossos” Luís Naves e Fernando Madaíl, o Fernando Pinto do Amaral, o Fernando Sobral, eu sei lá.» O paginador é que, ao ver que a barra coincidia com o fim da linha, a repetiu na linha seguinte — e muito bem. Hum… também poderia ter sido um revisor que, ao passar perto do posto de trabalho do colega paginador, indicou a forma correcta de o fazer. De resto, que mais se pode dizer da barra? Pois que em regra não há espaço nem antes nem depois dela e que para os íntimos tem nome estrangeiro: forward slash. Os Ingleses também a conhecem pelos nomes solidus, virgule e diagonal. Adaptando um texto de Jacci Howard Bear sobre o mesmo assunto, esquematizo de seguida os usos da barra em português, de resto quase inteiramente coincidentes com os da língua inglesa.

1. Como separador para datas: 29/04/2008; 2007/2008
2.
Como separador para citações de poesia: «Palavras que nos transportam/Aonde a noite é mais forte,/Ao silêncio dos amantes/Abraçados contra a morte.»
Note-se que, por vezes, nesta circunstância, algumas obras mostram um espaço depois, mas não antes, da barra, excepção que não contemplo no uso que faço da barra. O texto não deve ter mais de três ou quatro linhas de poesia.
3. Como substituto de uma palavra: 220 km/h (quilómetros por hora);
e/ou (e ou ou)
4. Como substituto de uma palavra (ou) para indicar escolha: Estudante/trabalhador; S/N; ele/ela
5. Informalmente como abreviatura: n/ (nossa); v/ (vossa); c/ (com); s/ (sem)
6. Como símbolo matemático, para separar o numerador do denominador e em fracções: ¼ (um quarto); 200/5 (200 a dividir por 5)
7. Nos endereços da Internet: http://letratura.blogspot.com.

28.4.08

Apelidos asiáticos

Sr. Lua


      Segundo a edição de hoje do Público («É Ban, senhor Ban, explica a ONU», D. F., 28.4.2008, p. 20), Vijay Nambiar, chefe de gabinete de Ban Ki-moon, anda «angustiado com todas as incertezas que ainda persistem sobre o nome do secretário-geral das Nações Unidas». Não é caso para menos. Depois de mais de um ano de mandato, «muitos líderes mundiais, alguns que conhecem bem o secretário-geral, ainda usam erradamente o nome próprio dele como se fosse o apelido, tratando-o por Sr. Ki-moon ou Sr. Moon». E esta é, escreve Vijay Nambiar, uma questão «algo delicada». De facto, quem é que, nesta altura, não sabe que na Coreia do Sul, Coreia do Norte, China e outros países da região o primeiro nome é o apelido? Pelos vistos, muita gente. «De maneira a garantir um melhor e mais rigoroso reconhecimento do nome do secretário-geral, sugiro que no futuro […] usem a expressão “secretário-geral BAN”». E mais: que os funcionários da ONU «ilustrem [aos interlocutores] que BAN se pronuncia Baahn». Ah, e mais uma coisinha: que passem também a escrever o apelido todo em letras maiúsculas. BAN. Bah!

Símbolos % e ºC, outra vez

Outrora


      Aí por volta do início da década de 1950, quem estudasse pelo Compêndio de Geografia, para o 2.º Ciclo dos Liceus, da autoria de Alves de Moura, Evaristo Vieira e Américo Palma (Livraria Didáctica, Lisboa, 6.ª ed., s/d), podia ler coisas como estas: «A humidade relativa é muito elevada (80 %) e quase constante durante o ano.» (p. 467) «Dos círculos menores há a considerar os paralelos, assim chamados por serem paralelos ao equador (Fig. 43). Os mais notáveis são os quatro seguintes: trópico de Câncer e trópico de Capricórnio, que distam do equador 23º 27’, para N e para S, respectivamente: círculo polar árctico e círculo polar antárctico, que distam dos respectivos pólos 23º 27’.» «Quando a temperatura desce além de , produz-se a solidificação do orvalho, cobrindo-se os corpos de uma camada branca de água solidificada a que se dá o nome de geada.» (p. 71). «No interior, o clima é frígido, e nas planícies do Sueste é temperado continental, com grandes amplitudes térmicas (–4º e +17º).» (p. 107).
      Meu caro Freire de Andrade: se tinha 14 anos em 1954, poderá ter estudado por este manual. Nesta altura, em que os livros eram impressos em tipografias — no caso deste manual, na Tipografia Silvas, no número 120 da Rua D. Pedro V, aqui em Lisboa —, as coisas não eram feitas por acaso, como agora mais frequentemente acontece. Era o tempo do chumbo, o dedo não escorregava no componedor, como agora escorrega nas teclas do computador.

27.4.08

Plágio

Nem os sermões escapam

Agora também os homiliastas saem prejudicados com a Internet: «Os 28.000 sacerdotes católicos que há na Polónia foram informados pela respectiva hierarquia de que poderão ser multados, se plagiarem os seus sermões a partir da Internet, podendo inclusive sujeitar-se a três anos de cadeia, noticiava ontem o jornal britânico The Guardian, numa correspondência de Berlim. A Igreja publicou um livro sobre como se devem escrever sermões, de modo a combater o hábito crescente de os padres se apropriarem das palavras alheias» («Quem plagiar sermões pode ir para a cadeia», Público, 27.4.2008, p. 21). O padre Wieslaw Przyczyna, co-autor da obra ŚCIĄGAĆ CZY NIE ŚCIĄGAĆ? (Plagiar ou não Plagiar), que tem 150 páginas e custa 29,90 zlotys, à volta de 9 euros, é especialista em sermões da Pontifícia Academia de Teologia de Cracóvia.

Léxico: «pickanini»

Pequenino

«A corrida prometia, com três excêntricas personagens. Os dois candidatos que dizem o que pensam sem papas na língua: Livingstone (uma vez chamou nazi a um jornalista judeu) e Johnson (usou um termo negativo, pickanini, para falar de africanos numa coluna de jornal). E ainda o liberal democrata Brian Paddick (o mais alto funcionário da polícia britânica a ter assumido a sua homossexualidade). Mas a campanha tornou-se num duelo entre Johnson e Livingstone» («Duelo de duas personalidades originais para a câmara de Londres», Maria João Guimarães, Público, 27.4.2008, p. 18). Aquele pickanini espicaça a curiosidade de qualquer pessoa. Não há praticamente nada sobre o vocábulo. Ainda assim, na Internet descobri isto: «Sabir actually survived until the nineteenth century and some of its words occur very regularly in almost all pidgins and creoles: sabi or savi ‘to know’ (from Spanish/Portuguese saber), pikin/pikinini/pickanini ‘small’/’child’ (from Portugueses pequenino), oporto ‘white man’ (from the Portuguese city of the same name), etc.» (Los estudios ingleses. Situación actual y perspectivas de futuro, «How and why do pidgin languages evolve?», Ana Fernández Guerra, Universidade de Valência, 1999, p. 122).

Actualização em 1.5.2008

«Johnson tem passado o tempo a defender-se de um comentário que escreveu sobre uma visita do então primeiro-ministro Tony Blair a África na Spectator (a revista conservadora que editou de 1999 a 2005), criticando-o por fugir de Londres para ser saudado pelos pickaninnies, um termo pejorativo. “Picaninny é um termo fora de moda para descrever uma criança negra e sim, usei-o, e é ofensivo, mas já pedi desculpa várias vezes”, disse num debate televisivo, adiantando à laia de desculpa que o usou num “contexto satírico”» («O conservador colorido acusado de fazer pouca campanha para evitar gaffes», Maria João Guimarães, Público, 1.5.2008, p. 17).

Numerais


Manda a tradição



      No programa Sociedade das Nações de ontem, na Sic Notícias, Nuno Rogeiro, a propósito de um disco, falou nas Cantigas de Santa Maria, uma colecção, uma compilação de 419 cantigas, escritas em galego-português, dedicadas à Virgem, da autoria de Afonso X. E este numeral leu-o Nuno Rogeiro como cardinal: Afonso Dez. Ora, a verdade é que na designação de papas, soberanos, séculos e partes de uma obra se usam os ordinais até décimo quando o substantivo antecede o numeral. Logo, deveria ter dito Afonso Décimo. Se há alguma coisa facultativa é o uso dos cardinais quando o número é superior a dez, isso sim. É para prevenir estas confusões e trapalhadas que algumas revistas e jornais brasileiros usam, nestas circunstâncias, algarismos arábicos, como podem ver na imagem acima: João Paulo 2.º e Bento 16. Muito inventivos e práticos, os Brasileiros. Cada vez gosto mais deles. E é um amor recíproco, sei-o, porque 50 % dos meus leitores são brasileiros.


26.4.08

Formas de tratamento

Calinadas


      No Público, Nicolau Ferreira escreve sobre os funerais do futuro — «Os cemitérios do futuro vão estar vivos», é o título. O sumário previne, amigável e erroneamente: «No dia do vosso funeral não fiquem surpreendidos se houver pessoas a assistir a um concerto na esplanada do cemitério. A Europa espera por uma morte mais verde, tecnológica e personalizada. Vamos adiar a morte para ver o funeral de amanhã». Mortos e surpreendidos… Alguma figura de estilo, cogitará o revisor temeroso. Vamos, porém, por outro lado: «vosso» e «não fiquem».
      Já o Prof. Vasco Botelho de Amaral escrevia, a propósito das formas de tratamento, em 1947: «Considero que a língua portuguesa é rica demais quanto a formas, fórmulas, jeitos e processos de tratamento. Rica demais, porque a abundância de obstáculos não apenas se opõe aos estrangeiros dispostos a aprender a falar ou a escrever o nosso idioma, mas, inclusivamente, dificulta o acesso dos próprios Portugueses ao conhecimento seguro ou correcto da técnica do tratamento» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 540-557). Muito bem dito — até o duplo «demais». Ah, sim, não digam disparates. O texto vai por ali fora e lá está o que nos interessa: «Outro solecismo, frequente, por exemplo, nas locuções radiofónicas inclusivamente da nossa primeira estação, é a mistura do tratamento vocativo na 3.ª pessoa com pronomes na 2.ª:
      “Prezados ouvintes. Esperamos que o programa que lhes temos estado a transmitir seja do vosso agrado.”
      Quando se diz lhes, o tratamento realiza-se na 3.ª pessoa. Pois, esta mesma construção tem de manter-se, e, portanto, não se apresenta canonicamente o vosso, em lugar de seu. O programa que lhes temos estado a transmitir seja do seu agrado — será a única dicção correcta.»
      Na página 551, faz uma advertência: «2.as com 3.as = calinada». Não é bonito? Sessenta anos depois, o erro persiste. Tenho à minha frente duas obras: uma tradução e uma obra original portuguesa. Veja-se um exemplo da primeira: «— Mas agora entendem por que a casa é demasiado perigosa para vós? Têm de fazer com que a vossa mãe o entenda também. Têm de fazer com que ela queira ir-se embora dali. Se eles souberem que lá estão, pensarão que têm o livro e jamais vos deixarão em paz» (O Mapa Secreto. Livro 3 de As Crónicas de Spiderwick, de Tony DiTerlizzi e Holly Black, tradução de Isabel Gomes e revisão de Isabel Nunes. Editorial Presença, Lisboa, 3.ª ed., 2008, pp. 41-42). E um exemplo da segunda: «Lydia carregou na tecla que dizia “ler” e a mensagem apareceu escrita no ecrã: “Bem-vindos ao Planeta Branco. Convidamo-los a desembarcar, sem medo. As vossas vidas não correm perigo e a atmosfera é respirável» (O Planeta Branco, Miguel Sousa Tavares, revisão de Silvina Sousa. Lisboa: Oficina do Livro, 1.ª ed., 2005, pp. 61-62). Para quê continuar? Já perceberam.

Uso do hífen com anti-

Oh, que desilusão!

Ana Gerschenfeld escreve hoje no caderno P2 do Público: «Um dia, os automobilistas poderão ter de usar um capacete ao volante. Só que não será para proteger a cabeça em caso de choque, mas para evitar que eventuais lapsos de atenção provoquem um acidente» («No futuro. Capacete anti-erro», 26.4.2008, p. 3). Lamentavelmente, o capacete ainda não existe nem, existindo já, se aplicaria aos erros ortográficos: o prefixo anti- só leva hífen antes de h, i, r e s. Logo, antierro.

25.4.08

Dicionários raros

Boa notícia

Esta sim, é uma óptima notícia: o sítio do Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo acaba de pôr à disposição do público, em versão fac-similada, dois dicionários raros: o Diccionario de Medicina Popular, da autoria de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, publicado pela primeira vez em 1842, e que chegou à 18.ª edição em 1918, e o Vocabulario Portuguez & Latino, de Rafael Bluteau, cujos dez volumes foram publicados entre 1712 e 1728. O projecto é coordenado pela historiadora Márcia Moises Ribeiro. Ver aqui. Seguir-se-á, proximamente, segundo é ali anunciado, a publicação de outros dicionários.
Muito obrigado ao leitor Jeová Barros, que me chamou a atenção para este acontecimento.

24.4.08

Léxico: «capitular»

Hum…



      «Peculiar porquê? Porque é usada de uma forma não canónica, apesar de o escritor já fazer parte do cânone literário: falta no texto o travessão para identificar o interlocutor no diálogo e somos apenas ajudados pelo início das falas de cada personagem ser assinalado por uma capitular. Também aqui se vê a frase característica da escrita de Saramago, quase sem pontos finais e cadenciada na pausa por vírgulas» («Saramago, o escritor que brinca com a pontuação», Isabel Coutinho, Público/P2, 23.4.2008, pp. 4-6). Não é raro, é raríssimo ver-se o vocábulo «capitular» usado nesta acepção: maiúscula inicial. Habitualmente, reserva-se o termo para designar a maiúscula ornamentada e de grandes dimensões usada em início de capítulo. Também dita meramente capital se for apenas grafada num corpo superior ao usado no texto. Mais chãmente, mais terra-a-terra, diríamos então «assinalado por uma maiúscula».


Léxico: «tecnodoping»

Depois do doping

Todos os dias nascem novas palavras. «O novo fato da Speedo relançou o debate sobre as condições de igualdade entre os nadadores. O termo tecnodoping até já ganhou expressão em vários fóruns e blogues, embora João Paulo Vilas Boas, director do departamento de biomecânica da Faculdade de Desporto do Porto, diga que não se pode apelidar este caso de tecnodoping. “Doping é elevar ilícita e artificialmente a capacidade de rendimento”, refere Vilas Boas, para quem a “tecnologia tem lugar no desporto” e é um desafio para os fabricantes» («Tecnodoping ou tecnomarketing, os efeitos do novo fato na modalidade», Hugo Daniel Sousa, Público, 20.4.2008, p. 41).

23.4.08

Estada e estadia

E assim

«Herman José sente-se a regressar aos tempos da Roda da Sorte, do seu Com a Verdade M’Enganas e de Parabéns, concursos que apresentou na sua longa estadia na RTP, de onde saiu em 2000 para rumar à SIC» («Herman volta aos concursos», Joana Amaral Cardoso, Público/P2, 23.4.2008, p. 11). Ah, mas essa forma já está legitimada pelos *** (piores ou melhores?, não estou a ouvir) dicionários, clamam. Deixo que seja o crítico dos croquetes a responder: «Ainda sou novo, mas acontece — como foi o caso nesta apresentação de O Diário Português de Mircea Eliade — que gosto de rodear-me de pessoas com idade suficiente para saberem que não se diz “estadia” e sim “estada”, excepto se falarmos de barcos, comboios e assim» («O paraíso triste», João Villalobos, Diário de Notícias/Gente, 19.4.2008, p. 23).

Mega-, outra vez

É assim…

Já aqui lamentei a praga do elemento de composição mega-, que hoje em dia nos atola. Há oito dias, lia-se no Diário de Notícias: «Transformar um estádio em megaigreja» (16.4.2008, p. 27). Hoje, a propósito da exposição saramaguiana, lê-se no Público: «A sensação que se tem quando se percorrem as salas desta mega-exposição (comissariada por Fernando Gómez Aguilera, da Fundação César Manrique, Lanzarote) é que, ao passar pelas vitrinas com os mais de 1200 documentos expostos, é o escritor que nos está a abrir as portas de sua casa e do Arquivo Fundação José Saramago, sem, na realidade, o ter feito» («Antipático? Não. “Sou um sentimental», Isabel Coutinho, Público/P2, 23.4.2008, p. 7). Mas no mesmo jornal já temos podido ler, por exemplo, isto: «É que, depois da megaoperação de fiscalização lançada pela autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) na última semana de Abril, que levou à apreensão de mais de 800 mil litros de combustível, oito bombas de gasolina, na maioria em Lisboa, foram encerradas entre sábado e quarta-feira» («Meia centena de postos de combustível fechados em Lisboa», Francisco Neves, 5.5.2006, p. 57). Ou isto: «Cabeçada de Zidane na final do Mundial inspira megaêxito músical [sic] do Verão em França» (Ana Navarro Pedro, 3.08.2006, p. 44). Ou ainda isto: «Mega-aliança GM-Renault-Nissan pode abrir perspectivas à fábrica da Azambuja» (10.07.2006, p. 41). Qual o critério subjacente, não querem dizer-nos?

Pontos cardeais

Perder a tramontana

Uma bússola portuguesa do século XVIII vai hoje, juntamente com outros objectos científicos ligados às viagens, a leilão em Londres. O Público dá conta do acontecimento, escrevendo: «Assinada por Manoel Ferreira, artesão de Lisboa, como tendo sido concebida em 1755, a bússola está finamente decorada com motivos florais em vermelho, verde, azul, amarelo e dourado e tem as armas da Coroa Portuguesa como indicador do Norte» («Bússola portuguesa do século XVIII é estrela em Londres», Bruno Manteigas, Público, 22.4.2008, p. 16). A norma ortográfica vigente estabelece, todavia, que «os nomes dos pontos cardeais e dos pontos colaterais, que geralmente se escrevem com minúscula inicial, recebe, por excepção, a maiúscula, quando designam regiões». E o texto do Acordo Ortográfico de 1990, na sua Base XIX, 1.º, al. e), também estabelece que se usa a minúscula inicial «nos pontos cardeais (mas não nas suas abreviaturas): norte, sul (mas: SW sudoeste)». Espíritos livres estes, libérrimos, que não acatam nenhuma ortografia nem convenção. Nas escolas, é claro, também se passa ao lado destas questões. Mas se os professores não sabem…

O erro na cidade

Histórias    


      Passei ontem, à pressa, pelo memorial à Matança da Páscoa, acabado de inaugurar no Largo de São Domingos. Muito digno e de elementar justiça. Do ponto de vista de um revisor, nem tudo está bem. Detectei um erro na legenda inscrita na semiesfera inclinada (a peça escultórica, da autoria de Graça Bachmann, de que mais gosto do conjunto), mas decerto com interesse apenas para revisores, pelo que hoje não digo mais nada. «Ó terra, não ocultes o meu sangue e não sufoques o meu clamor!» Citar Platão é um pouco mais complexo. Passem por lá, se puderem, e depois conversamos.
      E ainda a propósito deste monumento, pode ler-se hoje no Público: «Pode dizer-se “Lisabona, Orasul Tolerantei”? A frase significa “Lisboa, Cidade da Tolerância” e, desde ontem, é uma das 34* com o mesmo significado, em outras tantas línguas, que se lêem num mural no Largo de São Domingos, na capital. Português, hebraico, árabe, creoulo, tétum ou mandarim são algumas das línguas inscritas para evocar o massacre que, em 1506, matou entre 2000 e 4000 judeus» («Memorial do massacre de judeus afirma tolerância de Lisboa», António Marujo, 23.4.2008, p. 8). Deveria ter escrito «crioulo». Apesar de o vocábulo ter origem controversa, a ortografia actual manda-o escrever com i. Com e, só o navio-escola, antes lugre bacalhoeiro, Creola.
      Damos mais uns passinhos no texto e — zás! «A presidir, António Costa, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, e Eliezer Shai Di Martino, rabino judaico.» E há rabinos que sejam muçulmanos ou católicos, acaso?
      Damos mais uns passinhos e, ops!, lemos que «António Costa disse que, contra a “tentação dos negacionismos”, se deve a assumir a história “memória viva, crítica, activa e vigilante”, sublinhando o valor “simbólico” e “pedagógico” do memorial». O vocábulo «história» não merece uma maiúscula inicial, num jornal em que se escreve, por exemplo, a torto e a direito, «presidente» com maiúscula? Vejam lá isso. «Candidato da esquerda a Presidente paralisa Cidade do México» (Dulce Furtado, 1.08.2006, p. 19). A frase, de qualquer modo, não está muito escorreita.

* Fernanda Câncio também lá estava e escreve hoje no Diário de Notícias que serão «33 ou 34 (os dois designers responsáveis, Susana Figueiredo e Paulo Cardoso, não têm a certeza) línguas do mundo» («Três memoriais para um massacre sem memória», 23.4.2008).

Símbolos de % e ºC


Afasta, afasta

A última modificação introduzida no Código de Redacção Interinstitucional data de anteontem e estabelece o que eu faço nas revisões, recomendo e ensino a fazer: «Unidades de medida, “ºC” e “%”, modificação (estas unidades de medida devem ser separadas do número que as precede por um espaço — regulamentação do Comité Internacional de Pesos e Medidas, organização da qual Portugal faz parte).» E quem diz percentagem, por precaução, também devia dizer permilagem (‰). E quilos e toneladas e… Sim, em suma, todos os símbolos de unidades que fazem parte do Sistema Internacional de Unidades (SI), pois que os que ficam de fora — grau (º), minuto (‘) e segundo (“) — constituem excepções a esta regra.

Uso do itálico


Digam lá

Não percebo porque é que no Diário de Notícias grafam o nome da polícia autónoma basca em itálico. «Ficaram feridos, de forma ligeira, sete agentes da polícia autónoma basca, a Ertzaintza, a rede de distribuição de água foi afectada, havendo registo de estragos na Casa do Povo e em várias lojas e automóveis» («ETA volta a atentar contra alvos socialistas bascos», Patrícia Viegas, Diário de Notícias, 18.4.2008, p. 31). Não faz sentido. Acaso grafam em itálico o nome da polícia científica inglesa? Não. Então, qual é a diferença? «Dois elementos da Scotland Yard estão desde terça-feira em Portimão, a colaborar com a Polícia Judiciária, facto que estará relacionado com a megaoperação policial que, segundo o DN apurou, estará “iminente”» («PJ prepara megaoperação com Scotland Yard no Algarve», José Manuel Oliveira, Diário de Notícias, 25.8.2007). Faz tanto sentido, pensem bem, como grafar em itálico a designação de qualquer organização, seja qual for a sua natureza. Coisa que também fazem: «Para o líder dos Portugal Hammerskins, “já não existem razões que justifiquem a sua prisão preventiva”» («Mário Machado pede ao tribunal para ficar em prisão domiciliária», Pedro Vilela Marques, 16.4.2008, p. 11).

22.4.08

Selecção vocabular

Vai um dicionário?

«No Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, misturam-se as línguas, os sotaques. A grande maioria veio de Portugal, de Espanha, da América Latina ou de um dos países africanos de língua oficial portuguesa. Henna não. Henna é uma holandesa de 53 anos que fala neerlandês e arranha inglês. Estava mal-amanhada não fosse Maria Cruz, que nasceu em Cabo Verde e se mudou para a Holanda aos 12 anos» («A solidão aperta mais quando a língua escapa», Ana Cristina Pereira, Público, 21.4.2008, p. 3). «Mal-amanhada»? Mal-amanhado significa mal-arranjado, desajeitado, desordenado. De uma pessoa que está mal vestida pode dizer-se que está mal-amanhada. E de uma frase também. Convinha, para não ficarmos malvistos, e os leitores mal servidos, vermos o que significam as palavras.

Ortografia: «inter-religioso»

Mais cuidado

Os erros também servem para explicar as regras do Acordo Ortográfico de 1990. «Exemplo dessas precauções é a interdição de crentes sikhs num encontro interreligioso previsto para quarta-feira em Washington (ver caixa), por os elementos desta fé terem um punhal sempre consigo» («Papa enfrenta pedofilia e ordem mundial “errada”», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 14.4.2008, p. 9). Na verdade, é «inter-religioso», com hífen, que se escreve, pois as palavras compostas com inter- levam hífen quando o segundo elemento começa por h ou r: inter-helénico, inter-hemisférico, inter-humano, inter-regional, inter-relação, inter-religioso, inter-resistente, etc. Desta vez, quem escreve nem sequer tem a escapatória de argumentar que vai ser assim no âmbito do novo acordo, pois, segundo a Base XVI (Do hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação), n.º 1, al. d), só se emprega o hífen «nas formações com os prefixos hiper-, inter- e super-, quando combinados com elementos iniciados por r: hiper-requintado, inter-resistente, super-revista».

21.4.08

Uso de itálico nos topónimos

Ficamos tontos


      No Público ainda não sabem se hão-de grafar Ground Zero em itálico ou em redondo. Para não errarem ou acertarem sempre, vão-no grafando das duas maneiras. Mas para quê itálico? Não é, para todos os efeitos, um topónimo? Nem eles duvidam disso, pois escrevem que a «ida ao lugar das Torres Gémeas foi um dos últimos actos da viagem» do Papa Bento XVI (21.4.2008, p. 14).
      «Papa esteve meia hora no Ground Zero, onde rezou pela paz num “mundo violento”» (António Marujo, 21.4.2008, p. 14). «Claro, há ainda o emotivo e silencioso instante no Ground Zero, mas esse é o momento que fica de recordação mediática» («Ainda melhor que o esperado», António Marujo, 21.4.2008, p. 15). «No último dia da visita, Bento XVI lê uma oração no Ground Zero (Nova Iorque) em memória das vítimas dos atentados de 11 de Setembro de 2001» («A primeira visita de Bento XVI», C. B., 14.4.2008, p. 2). «O discurso na ONU enviou mensagens em várias direcções e a ida ao Ground Zero foi o momento emotivo para a foto de recordação» («Sobe e desce», 21.4.2008, p. 44).


 

Léxico: «googlegänger»

A mais criativa

«A American Dialect Society votou googlegänger — pessoa com o mesmo nome que surge quando faz uma pesquisa pelo seu nome — como a palavra mais criativa de 2007, nos prémios que são conhecidos pelos Óscares das palavras. Googlegänger foi também nomeada como palavra do ano, mas foi vencida por subprime — adjectivo usado para empréstimos ou investimentos de alto risco, uma palavra muito falada no ano» («A mais criativa», Maria João Espadinha, Diário de Notícias, 14.4.2008, p. 62). «Este termo», explica ainda a mesma jornalista, «derivado do alemão doppelgänger, palavra que significa “andarilho duplo”, é um dos últimos fenómenos na Internet entre a apelidada geração Google, que é definida não tanto pelos seus feitos, mas sim como estes surgem listados no motor de busca» («‘Googlegänger’: procurar homónimos na Internet», 14.4.2008, p. 62).

Actualização em 10.06.2009

A jornalista deveria ter escrito com maiúscula inicial o vocábulo alemão: «O heterónimo seria assim um Doppelgänger mais real e menos conceptualmente disciplinado do que o modelo» (Morte no Retrovisor, Vasco Graça Moura. Revisão de Manuela Ramos. Lisboa: Círculo de Leitores, 2009, p. 146).

Redacção

Bem explicado

Aimé Césaire foi de novo notícia, agora pelos piores motivos: morreu. Lia-se no Diário de Notícias: «Aimé Césaire, pai do conceito de negritude — a consciência de ser negro —, morreu ontem aos 94 anos num hospital em Fort-de-France, onde estava hospitalizado há uma semana devido a problemas cardíacos. […] Aimé Césaire foi um dos fundadores do Movimento Negritude, criado depois da II Guerra Mundial, que agregou escritores negros francófonos, entre os quais o senegalês Léopold Sédar Senghor. Este assegurou que foi Césaire a inventar a palavra, embora ele próprio preferisse a expressão “criação colectiva”» («Um infatigável lutador contra o colonialismo», Ana Marques Gastão, 18.4.2008, p. 43).
Esta última frase é equívoca: pode levar o leitor a crer que Senghor preferia a expressão «criação colectiva» ao vocábulo «negritude». Bem traduzido do francês, ficaria melhor: «Aimé Césaire a consacré sa vie à la poésie et à la politique. C’est en 1939, dans son célèbre recueil Cahier d’un retour au pays natal qu’il entre en poésie et emploie pour la première fois le terme de “négritude”. Le Sénégalais Léopold Sédar Senghor a attribué la paternité de ce concept (qui signifie : la conscience d’être noir) à Césaire, mais ce dernier préférait parler de “création collective”» («L’état de santé d’Aimé Césaire reste “stable” mais “préoccupant”», Le Monde, 12.4.2008).

20.4.08

Dicionários e correctores

Calão (sem sugestões)

Em 2002, a propósito do lançamento do corrector ortográfico FLiP 4, escrevia Fernando Venâncio no Expresso: «Há cerca de dez anos, uma fotografia mostrava Vasco Pulido Valente à mesa de trabalho, frente ao computador. À mão, via-se o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora. Uma indiscrição do fotógrafo? Não, pura seriedade profissional do retratado. Alguém que é visto, repetidamente, como um brilhante prosador recorria, afinal, às mesmas ferramentas que o humilde paisano» («Fiel companheiro», 19.10.2002).
Lembrei-me hoje deste texto quando lia a crónica de José Diogo Quintela no Público, que também fala de corrector ortográfico (no caso, o spell check do Windows). Escreve ele: «Em termos linguísticos, sou um arrivista. Quero parecer mais do que sou. Uso o dicionário de sinónimos com destreza e misturo-me com os fluentes na língua que, por momentos, me tomam por um deles. Só que depois escrevo qualquer coisa à mão e, sem o protector risquinho encarnado (que ainda agora me chamou a atenção para botar outro “r” em “arivista”) a corrigir-me, sou desmascarado» («Língua bífida», José Diogo Quintela, Público/P2, 20.4.2008, p. 3).
Dizia ainda Fernando Venâncio: «Uma parte considerável dos nossos “erros de ditado” tem, de facto, a ver com a acentuação. As suas regras são, em português, praticamente perfeitas, mas de uma complexidade descoroçoante. Resultado: mesmo os melhores jornais e editoras grafam com frequência “saíu” e “caíu”.» Infelizmente, pouco mudou — e o FLiP, que não é agora meramente um corrector ortográfico, mas também sintáctico, já vai na sexta versão —, e de nada serve quando se pintam cartazes para manifestações.
Num comentário, datado de 22 de Outubro de 2007, a um post do Aspirina B, Fernando Venâncio mostrou continuar encantado com as potencialidades deste corrector: «JP: O corrector ortográfico e sintáctico da Priberam, o novinho em folha FLiP 6, o melhor do Mundo para o Português (adoptado no Brasil, na sua versão brasileira), aceita, do teu texto, “hein” e “pimba”. Mas lá está: não conhece “porra”. Como também não conhece “puta”, e daí para baixo.
Explicaram-me a razão, e essa vai soar-te como música de anjos.
A colaboração com a Microsoft (que adoptou no Word o trabalho da Priberam) implicou a exclusão de tudo o que levasse a sinonimias, aos olhos americanos, rapidamente lascivas, ou licenciosas. Sim, que sinónimos indicar para “puta”, para “porra”?
A magnífica Priberam escolheu o que tu escolherias se tivesses que pôr também o pãozinho na mesa dos empregados.»
Se copiar este texto e vir aparecer o risquinho encarnado sob a palavra «sinonimias», nada tema: é que «sinonimia» é uma variante de «sinonímia». Está é a precisar de um novo corrector ortográfico. Afinal, como dizia Trotsky, «a atenção deve dirigir-se para os pormenores».

Léxico: «mesa-tenista»

Ténis de mesa

      «Entrevista. João Monteiro é o primeiro mesatenista português nos Jogos Olímpicos» («“Foi uma aposta ganha ter vindo para o estrangeiro”», Hugo Daniel Sousa, Público, 20.4.2008, p. 37). O Dicionário Houaiss, contudo, regista «mesa-tenista», que é também a grafia usada pelo jornal desportivo Record e a que prefiro, por ser mais sugestiva do desporto em causa.

Erros e gralhas

O Público errou e emendou

O que é raríssimo, pelo menos no que diz respeito a erros desta natureza. Eis a errata: «Uma gralha levou a que a aspa final no título “A Pornografia”, de Gombrowicz, aparecesse fora do sítio na edição de ontem do Ípsilon, transformando o nome do livro em “A Pornografia de Gombrowicz”. Naturalmente que Gonçalo M. Tavares, o autor que se referia a este livro, é completamente alheio à gralha, que é da nossa exclusiva responsabilidade» («O Público errou», 19.4.2008, p. 44). Uma aspa, sim senhor. Algum resultado dá protestar. Se os jornalistas também pudessem protestar — mas os erros são deles… —, teríamos diariamente meia página de errata. Seria impraticável, eu sei. O melhor mesmo é começarem a escrever como deve ser.

Acordo Ortográfico

2014 é amanhã

Ainda a propósito da preocupação com a «economia das famílias», não percebo porque é que não há ninguém interessado em publicar, não novos dicionários, mas volumes de actualização. Em especial no que diz respeito aos dicionários maiores, e mais caros, a publicação de um volume de actualização vinha acabar com o que para alguns é uma inevitabilidade: atirar os actuais dicionários para o caixote do lixo. Reúnam-se todos os vocábulos cuja grafia vai mudar, incluindo todas as formas verbais, e já está. Não se me afigura necessário comprar um dicionário com mais de 5 quilos. Por outro lado, a Academia das Ciências de Lisboa devia disponibilizar na sua página na Internet uma lista com os vocábulos com nova grafia. São cerca de 2200 vocábulos (o que corresponderá a 1,6 %), segundo já ouvi dizer. Ou teremos de ser nós, cidadãos, a fazê-lo?

19.4.08

Acordo Ortográfico

Vão para casa estudar

Lembram-se de eu ter mandado um jornalista do Público ir estudar para casa? Desconfio agora que ele até estudou, mas pelos livros errados. Refiro-me, concretamente, apenas a um dos erros. Escrevia ele: «A generalidade dos topónimos mantêm a maiúscula, mas esta torna-se facultativa em nomes de ruas, praças, etc. Vai ser possível, portanto, escrever-se avenida dos aliados ou rua augusta.» Contrapunha eu: «Não é verdade. Pior: é ridículo. Consigna o texto do novo acordo na Base XIX, n.º 2, al. i): «Opcionalmente, em palavras usadas reverencialmente, aulicamente ou hierarquicamente, em início de versos, em categorizações de logradouros públicos: (rua ou Rua da Liberdade, largo ou Largo dos Leões), de templos (igreja ou Igreja do Bonfim, templo ou Templo do Apostolado Positivista), de edifícios (palácio ou Palácio da Cultura, edifício ou Edifício Azevedo Cunha).»
Vi ontem que a fonte pode ter sido o «guia acessível e de consulta rápida sobre as principais mudanças no acordo» publicado pela Texto Editores. A propósito do uso da maiúscula e minúscula, lê-se na página 12: «d) Logradouros públicos, templos ou edifícios. Avenida da Liberdade ou avenida da liberdade. Torre dos Clérigos ou torre dos clérigos.» Sim, trata-se da obra atual — O novo acordo ortográfico, da autoria Pedro Dinis Correia e João Malaca Casteleiro.
A não ser que os autores tenham uma versão secreta e expurgada de erros e gralhas do texto do Acordo Ortográfico de 1990, têm tanta razão como o jornalista do Público. Se este leu a obra daqueles, terão de ser os autores a pedir desculpa ao jornalista e a todos os leitores. E nisso não sou visto nem achado.
Já que estamos nisto, ainda pergunto: porque é que o título da referida obra começa com minúscula? A Base XIX (Das minúsculas e maiúsculas), n. º 1, al. c), do Acordo Ortográfico de 1990 determina: «Nos bibliónimos/bibliônimos (após o primeiro elemento, que é com maiúscula, os demais vocábulos podem ser escritos com minúscula, salvo nos nomes próprios nele contidos, tudo em grifo): O Senhor do paço de Ninães, O Senhor do paço de Ninães, Menino de engenho, Árvore e Tambor ou Árvore e Tambor.»
Por outro lado, e para acabar, acho ridículo que o próprio título já esteja em conformidade com as regras do novo acordo — que ainda não está em vigor. Parece que, aqui, não se preocupam com a economia das famílias. Marketing.
«Custa 4,41 euros. É barato», diziam ao meu lado, na FNAC do Alegro, duas senhoras manifestamente pouco familiarizadas com livros. Acabaram por comprar apenas um dicionário da língua portuguesa de pequeno formato. Dentre as várias edições, optaram por uma em função do peso.

18.4.08

Análise linguística

Áreas de Broca e Wernicke

Na sequência do texto «O que é isso de imagens mentais?», publicado na edição de 14 de Março do Público, o filósofo Fernando Belo volta a publicar outro texto à volta do mesmo tema. Pela sua importância, transcrevo um parágrafo deste último: «Também outras disciplinas podem ser úteis ao neurologista. O melhor exemplo creio ser o do linguista Maurice Gross, Méthodes en Syntaxe (1975), que unificou sintaxe e semântica, no que creio ser a maior descoberta linguística da segunda metade do século XX. Ele analisa 3000 verbos franceses, através da maneira como, na frase, regem sujeito e complementos directo e circunstanciais (preposições, etc.). Ou seja, as regras que estruturam as frases variam consoante os verbos. Ora, o que é fabuloso é que qualquer de nós as use espontânea e muito rapidamente sem pensar nelas. A fazer fé numa alusão breve de Jean-Pierre Changeux, O Homem Neuronal (pp. 153-4, da ed. francesa), são essas regras que se perdem quando há uma lesão da área de Broca, o paciente falando dificilmente apenas com substantivos, adjectivos e verbos no infinitivo. Por outro lado, se for a área de Wernicke a atingida, as regras da frase fazem-se bem, só nomes e verbos é que não jogam uns com os outros, as frases não têm sentido. Hipótese minha: uma das áreas ser a da sintaxe e a outra a da semântica. Não saberei é dizer que colaboração entre neurologistas da fala e linguistas deve haver» («Também a “ideia mental” é uma ficção filosófica», Fernando Belo, Público, 18.4.2008, p. 51).

Crítica literária

Criticar o crítico

«Mais restrita, em suma, do que “Palácio de Cristal”, esta última obra [O Estranhamento do Mundo, de Peter Sloterdijk, tradução de Ana Nolasco, publicada pela Relógio d’Água] é também menos formidável. Esta condição é agravada pelo facto de a servir uma tradução demasiado fascinada com a natureza perifrástica dos vocábulos alemães, incapaz de síntese e carente de revisão sintáctica» («Um estranho lugar esférico», Francisco Luís Parreira, Público/Ípsilon, 18.4.2008, p. 43). «Natureza perifrástica dos vocábulos alemães»? Não quererá o crítico referir-se ao carácter tendencialmente aglutinante da língua alemã?

«Nim»

Grubblerier

Portugueses ou Brasileiros, estamos sempre a tecer loas às outras línguas. Por vezes, injustificadas. «O rapazinho fez uma cara meio infeliz quando perguntei se o creme que havia escolhido era bom pra soleksem [eczema solar]. “Nja”, disse-me ele na resposta híbrida típica nativa (“Nej”,”não” + “ja”,”sim” = “Nja”, sem tradução em qualquer língua), “o melhor mesmo é aplicar pomada de cortisona”» («Farmácia, teatro, livro e cinema», Maria Fabriani, 14.5.2006, Montanha-Russa). Sem tradução em qualquer língua, hein? Na altura, disse à autora que não era verdade. Por intrincados matizes que a palavra tenha em sueco, temos a mesma amálgama em português: nim. «“Abílio Curto, por agora, diz nim”, mas é um “nim com N grande”» («Curto prepara candidatura à Câmara da Guarda», Amadeu Araújo, Diário de Notícias, 1.3.2008, p. 17).

17.4.08

Uso das aspas

Doutoreco

«“Supomos que os textos chegaram a Inglaterra do Sul de Itália, talvez antes do fim” do ano 1000, afirmou à BBC Isabella Schiller, da Universidade de Viena, que, com Dorothea Weber e Clemens Weidmann, descobriu os textos do bispo e “doutor” da Igreja» («Inéditos de Santo Agostinho descobertos na Alemanha», António Marujo, Público, 17.4.2008, p. 20). E as aspas servem para quê? Para insinuar que, afinal, não era doutor, mas bacharel? Valha-me Deus! Está nos dicionários: aos representantes da escolástica dá-se a designação de doutores. Assim como aos que ensinam publicamente matérias de doutrina. São os doutores da Igreja. Sem aspas! As aspas são escusadas e empecivas na leitura. Sem aspas!

Ortografia: rês/reses

Não rezes, não

No Público, já nem os editoriais escapam aos erros e gralhas. Em Sirvozelo, escreve José Manuel Fernandes, «as poucas rezes que sobram podem servir, como há 23 anos, para realizar algum capital num momento de aflição» («De Sirvozelo ao Terreiro do Paço, viagem na História», p. 42). Coisas simples, claro, mas não há lá ninguém para as corrigir. Mas é só isso, pergunta o leitor benévolo? Então leia esta frase do mesmo editorial: «Verificaria que a sua sombria previsão sobre os efeitos nulos, ou mesmo negativos, das políticas relativas ao mundo rural dos burocratas de Bruxelas não resolveriam nunca os problemas destes lugares e destas gentes perdidas.» O que acha?

16.4.08

Híper/híperes

Finalmente!

      «Sonae cria sacos amigos do ambiente para híperes» (Meia Hora, 14.4.2008, p. 12). Já aqui abordei, uma vez, esta questão. Há, parece, alguma evolução. O itálico ou as aspas já não são sempre usados e, alteração maior, passaram a acentuá-la graficamente, assumindo-a, e bem, como palavra plena: híper/híperes. De maneira geral, é nos jornais gratuitos que se escreve assim. Como palavra paroxítona que é, terminada em er, é acentuada para não se ler como oxítona.

Supressão do «que» no conjuntivo

A l’usage des Français

Muito estranho, cara Luísa Pinto, que a professora de Português do seu filho tenha dito que a frase estava incorrecta. (Ou não estranho nada, isto é uma figura de retórica.) Até franceses mortos há mais de 150 anos sabiam que estava correcta! Não estou a fazer espírito. Veja o que escreveu Francisco Solano Constâncio na Nouvelle Grammaire Portugaise, datada de 1832: «On supprime souvent en portugais le que conjonctif dans les temps du subjontif: Ex.: peço me seja concedida licença, je demande qu’il me soit accordé la permission» (p. 206).

Olivença e o «chaporreo»

Imagem: http://olivenca.blogspot.com/

Olivença é nossa


Com uma persistência notável, há já longos anos que o professor Carlos Luna, de Estremoz, vem alertando, nos meios de comunicação social, para a questão de Olivença, e em especial para a língua portuguesa, que ainda se fala neste pedaço de território de que fomos desapossados pelos Espanhóis. Embora eu não acredite que haja um português que desconheça a situação (mas também não acreditava que sequer um internauta ignorasse a existência de blogues, e eis que veio a saber-se que assim é com a maioria), deixo aqui um desses últimos alertas. «Em 1840, trinta e nove anos após a ocupação espanhola (1801), o Português foi proibido em Olivença. Todavia, ele foi sobrevivendo, numa deliciosa toada alentejana, que logo as autoridades, vigilantes, classificaram como chaporreo. Mesmo com esses condicionalismos, depois de 200 anos de pressão, ela é entendida e falada por cerca de 35 % da população, segundo cálculos da União Europeia. É preciso dizer claramente que o Português é imprescindível para que as novas gerações compreendam o que as gerações anteriores quiseram transmitir» («Língua de Olivença», Carlos Cruz Luna, Global, 15.4.2008, p. 2)

15.4.08

Todos-os-Santos ou Todos os Santos?

Depende, não é?

«Com conclusão prevista para 2012, o novo Hospital de Todos-os-Santos (HTS) irá servir cerca de um milhão de pessoas, com uma área de influência de Lisboa e Vale do Tejo até ao Algarve» («Lançado concurso para Hospital de Todos-os-Santos», Bruno Nunes, Público, 15.4.2008, p. 12). «O primeiro-ministro disse ontem esperar que o novo Hospital de Todos os Santos dê um contributo decisivo para o desenvolvimento da investigação em ciências médicas» («Sócrates orgulhoso com Hospital Todos os Santos», Meia Hora, 15.4.2008, p. 6).
Afinal, pergunta o leitor, como se escreve: com hífenes ou sem hífenes? E, já agora, acrescenta o mesmo leitor, como será na vigência do Acordo Ortográfico de 1990?
Para começar, como é agora. Como topónimo, os elementos são ligados por hífenes. Excepcionalmente, cito um excerto do meu Manual de Edição e Revisão de Texto, inédito: «Levam hífen os topónimos compostos quando: 1.º Dois elementos se ligam com artigo definido: A Ver-o-Mar, Condeixa-a-Nova, Entre Ambos-os-Rios, Entre-as-Águas, Todos-os-Santos.» É o caso em apreço. Já o nome da festividade, dia de Todos os Santos, se grafa sem hífenes.
Como será na vigência do Acordo Ortográfico de 1990. Na Base XV, 2.º, pode ler-se: «Emprega-se o hífen nos topónimos/topônimos compostos, iniciados pelos adjetivos grã, grão ou por forma verbal ou cujos elementos estejam ligados por artigo: Grã-Bretanha, Grão-Pará; Abre-Campo; Passa-Quatro, Quebra-Costas, Quebra-Dentes, Traga-Mouros, Trinca-Fortes; Albergaria-a-Velha, Baía de Todos-os-Santos, Entre-os-Rios, Montemor-o-Novo, Trás-os-Montes.» Por seu lado, a Base XIX, 2.º e), determina que a inicial maiúscula é usada: «Nos nomes de festas e festividades: Natal, Páscoa, Ramadão, Todos os Santos.»
Vasco Graça Moura clama que é uma incoerência. D’Silvas Filho começa por argumentar inteligentemente que são coisas diferentes, mas depois amocha. Que sim, admite, é uma incoerência, como as há na actual norma. D’Silvas Filho tem razão: são coisas diferentes, e, como tal, se não devem, podem obedecer a uma regra diferente. Eu podia citar incontáveis exemplos, mas não me apetece.

Símbolos das unidades físicas

Amadores

A língua, um organismo vivo, evolui, sabemo-lo. Como somos conservadores, porém, não queríamos que fosse debaixo do nosso nariz. Num espaço de cinquenta anos, nada de muito significativo deve acontecer, e sabê-lo tranquiliza-nos. Ainda assim, pequenas, pequeníssimas, alterações, se devidas à ignorância dos falantes, devem ser combatidas. Na edição de ontem do Meia Hora, num artigo sobre a pesca do bacalhau, uma pagela dizia «8 ton.». Noutro artigo, o título era: «Cada luso usa 40 lt de água potável em autoclismos». Ora, os redactores e a revisora têm obrigação de saber que os símbolos das unidades físicas se escrevem sempre sem ponto. No caso, o símbolo de tonelada é t e o de litro é l ou L.

14.4.08

Revisores ambulantes


À americana

      Dois americanos, Jeff Deck e Benjamin Herson, estão a percorrer os Estados Unidos em busca de erros gramaticais, ortográficos e outros. Sim, os apóstrofos estão debaixo de olho. No Nissan Sentra em que viajam, levam um estojo (o seu “typo correction kit”): marcadores, giz, canetas, lápis e corrector Wite-Out. Jeff Deck, o mais mediático, descreve-se como um «grammar vigilante». Fazem ambos parte de uma estrutura maior, a TEAL (Typo Eradication Advancement League). Não sei como conseguem financiar o périplo, tirando a venda de T-shirts, mas estamos a falar da América, claro. A cobertura que os meios de comunicação têm feito do trabalho da TEAL tem sido amplíssima, como se pode ver aqui.

Acordo Ortográfico

Outros retoques


      Há muitos anos que leio a imprensa regional. Por vezes, leio o Diário do Minho. Na edição de quinta-feira passada, dia 9, a surpresa foi ler na crónica de Rita Cunha, intitulada «(Des)acordo ortográfico» (p. 2), a seguinte pergunta: «Por que teremos de ser nós, portugueses, a adaptar a nossa língua ao português do Brasil, quando nós é que usamos a verdadeira Língua Portuguesa?» Eu podia começar por perguntar se acha que a «verdadeira Língua Portuguesa» inicia assim as interrogativas, mas não o faço. Pergunto antes o que a leva a pensar e a escrever que somos os únicos donos da língua. Tanto quanto sei, a língua é de todos os falantes. A autora conclui admitindo que não é contra alguns «retoques» na língua portuguesa, mas não os do Acordo Ortográfico de 1990. Já vi por aí este argumento cosmético, sempre desacompanhado de programa, para podermos avaliar.

Acordo Ortográfico

Nada mudou

Rui Tavares vem hoje lembrar, com a sua habitual lucidez, na sua crónica no Público, outra tentativa de reforma ortográfica: «Na década de 1770, o Marquês de Pombal pediu aos censores do rei que tomassem uma decisão entre as várias propostas de ortografia que então surgiam — a de Luís António Verney, a de António José dos Reis Lobato e a de João Pinheiro Freire da Cunha, entre outras — para que a coroa a pudesse utilizar nos seus documentos oficiais. Depois de dois anos em discussão, os censores discordavam de quase tudo e baixaram os braços. Havia apenas uma decisão tomada: uma vez que a letra y não tem, em português, uma pronúncia diferente da letra i, poderia com vantagem ser abolida. Até que alguém se lembrou: não podemos! Não podemos, porque el-rey se escreve com ípsilon... e sua majestade “assim escreve na sua real firma”. […] A obsessão com o que não se pode fazer, em Portugal em geral e em particular, ganha sempre à ideia do que se pode fazer» («O y do rey», Público, 14.4.2008, p. 42). Vale a pena ler toda a crónica.

13.4.08

Silabadas

Não é grave…

… é esdrúxula. O radialista António Macedo, da Antena 1, tem uma voz poderosa, cheia, grave. Indesmentível. Contudo, talvez a facilidade contribua fortemente para as frequentes silabadas em que vai caindo. A palavra «África», por exemplo, nunca sai lá muito escorreita. E todos os dias a profere. Ontem, na Festa da Voz, ao conversar com Nicolau Breyner, avançou ostensivamente a tónica da palavra «estereótipos» para a sílaba ti. Há quem diga que este é um fenómeno linguístico que se vem impondo há algum tempo. Pois é. Então, pergunto eu, como é que essas pessoas escrevem o vocábulo? «Estereotipo», acaso?

Etimologia: «cocó»

Hã?!

«“No final do século XIX, início do século XX, havia um bolo cilíndrico de amêndoa, muito escuro, que era o cocó”, contou-lhes [aos autores do livro Fabrico Próprio, Pedro Ferreira, Rita João, Frederico Duarte] a olisipógrafa Marina Tavares Dias, feito na extinta confeitaria Rosa Araújo, na Rua de São Nicolau n.º 31. “A palavra vem do bolo e não o contrário. Dizia-se eufemisticamente que um bebé tinha feito um cocó.” A história não entra no livro, por falta de espaço. Fabrico Próprio é um work in progress e uma segunda edição será certamente revista e aumentada» («Portugal é mais… bolos», Joana Amaral Cardoso, Público/P2, 13.4.2008, pp. 6-7).
Ainda bem que não entra. Se bem que controversa, a origem é anterior. Antenor Nascentes considera que o vocábulo — com o significado de «fezes», «excrementos», pois claro — é proveniente da linguagem infantil, tese com a qual concordo. A propósito de hipocorísticos, já aqui abordei a questão das sílabas de redobro em palavras da linguagem infantil como «caca», «chichi», «cocó», «mamã», «memé», «papa», «papá», «pipi», «popó», «titi» e outras. O escritor brasileiro Nei Lopes atribui-lhe uma possível origem banta.
Voltando ao livro, devo dizer que já fazia falta algo no género. Segundo o Público, «é uma espécie de enciclopédia, inédita, da pastelaria semi-industrial portuguesa. Um glossário de jesuítas, brisas, alsacianos, esquimós, com muito creme e açúcar. Folheá-lo é fonte de fome e descoberta — 92 bolos, mais seis espécies raras como a rosa da Holanda ou os queques gigantes, fotografados na versão “mais estereotipada possível”, como explica Pedro Ferreira». «Semi-industriais porque “não são feitos por máquinas, são feitos com máquinas”, distingue Frederico Duarte».

«Negritude»: uma criação colectiva

Da Martinica

O Público de hoje escreve que «Aimé Césaire [poeta e ex-presidente da Câmara de Fort-de-France, na Martinica, com 94 anos] dedicou a sua vida à poesia, escrevia ontem o jornal Le Monde, que lembrava que foi numa obra de 1939 que Césaire empregou pela primeira vez o termo “negritude”. Além de ser um incansável promotor da autonomia, e não da independência da Martinica, esteve sempre presente nas lutas contra o colonialismo e o racismo». Na verdade, parece ter sido a dupla Senghor-Césaire a inventar, aí pelo início da década de 1930, a palavra, habitualmente definida como o conjunto de valores culturais e espirituais da civilização negro-africana. O Le Monde dizia algo mais: «Aimé Césaire a consacré sa vie à la poésie et à la politique. C’est en 1939, dans son célèbre recueil Cahier d’un retour au pays natal qu’il entre en poésie et emploie pour la première fois le terme de “négritude”. Le Sénégalais Léopold Sédar Senghor a attribué la paternité de ce concept (qui signifie : la conscience d'être noir) à Césaire, mais ce dernier préférait parler de “création collective”» («L’état de santé d’Aimé Césaire reste “stable” mais “préoccupant”», 12.4.2008).

Léxico: «tirefonadora»

Tirefonadora: http://www.oasisengenharia.com.br/

A fundo


      A propósito de dresinas, lembram-se de já aqui ter falado dos tirefões? Não sejam mentirosos. A máquina que crava os tirefões chama-se tirefonadora. A da imagem é fabricada por uma empresa brasileira, a Oásis, Engenharia e Comércio, Lda. Num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, pode ler-se: «M. O A. teve conhecimento do uso pela Empresa-C de pás, bitas, máquina tirefonadora e reboque de dresina, pertencentes à R., no período compreendido entre 20 de Outubro e 3 de Novembro de 2001, sem que disso tenha dado conhecimento ao seu superior hierárquico.»

12.4.08

Semântica: «dresina»

Imagem: http://www.tvi.iol.pt/

Não descarrilem


      «O descarrilamento do veículo de inspecção ficou a dever-se à queda de pedras na via» («Linha do Tua novamente encerrada devido a acidente de uma dresina», Global/Jornal de Notícias, 11.4.2008, p. 7). Os sites das televisões, como a RTP e a TVI, querem que seja uma «Dresina», com uma respeitável maiúscula inicial, como se fosse, já pensaram?, o nome da dresina. Como acontece com os aviões. A TAP tem um Airbus 320 baptizado Sophia de Mello Breyner, como também tem aviões com os nomes Eusébio, Almada Negreiros, Florbela Espanca, Vasco da Gama, Bartolomeu Dias…
      TVI: «Os três homens seguiam numa máquina chamada Dresina, utilizada para fazer serviços na linha. A Refer já adiantou que ainda não sabe quando será retomada a circulação entre a Brunheda e o Tua.»
      RTP: «O desabamento de terras que atingiu a Dresina — uma máquina da REFER utilizada para transporte e vistorias — ocorreu na mesma zona do anterior acidente, junto a Santa Luzia.»

      Dresina é isso mesmo que as notícias dizem: um veículo ligeiro utilizado na manutenção e inspecção das vias férreas. Dresina vem do francês draisine, e este, por mudança do sufixo, de draisienne. Na origem, está um nome próprio, o do inventor: barão Drais von Sauerbrunn (1785-1851). Em português, draisienne deu draisiana, que o Dicionário Houaiss regista. Foi a draisiana, um veículo precursor do velocípede, que o barão inventou.

11.4.08

Revisão

A importância da revisão

Como sucede com tantas coisas na vida, por vezes só pela sua ausência (ou deficiência, no caso) se avalia a importância de algo. A propósito da publicação da obra Kursk, o romance de uma execução, de Marc Dugain, com tradução de Magda Bigotte de Figueiredo, editada pela Ambar (e já que falamos de revisão, na Ípsilon aparece «Âmbar»*. Também as recensões literárias mereciam uma cuidada revisão), lê-se na Ípsilon de hoje: «E a escrita é aqui pesada, cinzenta, soturna — à moda soviética —, com depurado sentido de intriga e doseamento do ritmo da narrativa, que flui como um metal pesado a correr pelas veias. Merecia uma revisão da tradução bem mais cuidada do que a que lhe foi dada» («Naufrágio da paranóia russa», Dulce Furtado, Público/Ípsilon, 11.4.2008, pp. 48-49).

* «Fundada em 1939 por Américo Barbosa, o seu nome deriva das duas primeiras sílabas do nome do fundador: Am - Bar.»

Notas do tradutor

Explicação

      A propósito da tradução, por Carlos Correia Monteiro de Oliveira, da obra O Romance do Genji, de Murasaki Shikibu (editada pela Relógio d’Água), diz o crítico literário Francisco Luís Parreira: «No caso do “Genji”, também os anexos e as notas do tradutor são uma grata e preciosa adição. Certo beato preconceito actual é desfavorável às notas explicativas, porque mancham ou anulam a suficiência literária do texto; explicar, porém, não é estragar o mistério das coisas: é antes a condição para que ele não seja esquecido» («O desejo entre os crisântemos», Francisco Luís Parreira, Público/Ípsilon, 11.4.2008, pp. 46-47).

10.4.08

A etimologia de «sertão»

É o sertão


      Um arquitecto brasileiro (Vitória da Conquista, Bahia), Orlando Ribeiro de Oliveira, perguntou ao Ciberdúvidas qual a etimologia da palavra «sertão». A resposta ficou-se pela consulta de dois dicionários. Já não digo que se esperava mais, mas parece-me evidente que o consulente merecia mais. Para ser subtil.
      Nunca li explicação mais completa do que a do Prof. Vasco Botelho de Amaral, na obra Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 476-481).

«Sertão. Duas hipóteses etimológicas. A língua portuguesa é cheia de mistérios. E todos os que se dedicam ao seu estudo de alma e coração quanto mais a investigam tanto mais a ignoram. Às vezes basta uma palavra só para se erguer uma tremenda dificuldade, um complicado problema, um enervante enigma. Porquê? Porque a origem de grande número de palavras da nossa língua está para descobrir. E, em virtude da universalidade do Idioma, há verdadeiros enigmas no vocabulário relacionado com a nossa expansão por terras de além-mar.
Vou considerar uma palavra que todos os Portugueses conhecem, embora mais se aplique a terras ultramarinas.
E não fui eu o inspirador deste assunto. O ilustre escritor brasileiro Dr. Pedro Calmon, Presidente da Academia Brasileira de Letras, escreveu-me, formulando o seguinte problema da língua portuguesa:
“… poderia dar-me a etimologia mais aceitável da palavra sertão, que tanto ocorre na nossa linguagem, sem que ainda a tenhamos devidamente esclarecido no Brasil? Diz o refrão que a rico é quem se pede…”
Ora, a este provérbio gentil com que o douto académico me cativou para me obrigar ao exame de um intricado problema ocorreu-me opor um refrão, que diz — cada um dá o que tem e não é a mais obrigado. Vamos a ver, pois, o que, de boa vontade, se pode arranjar:

1.ª hipótese.
Quem abrir o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa do filólogo brasileiro Antenor Nascentes lê o seguinte:
Sertão — Forma aferética de desertão, segundo Maximino Maciel, Gram. Descr., 44, v. Afrânio Peixoto, Poeira da Estrada, pág. 51. É de explicação difícil o ensurdecimento do s sonoro.”
Se abrirmos também o Dicionário de Caldas Aulete e Valente, veremos que, semelhantemente, aí se dá para raiz da palavra sertão o latim desertus, isto é, deserto.
A opinião dos etimólogos tem sido, portanto, esta, segundo a qual o sertão é um deserto grande. Desertodesertão e, caída a sílaba inicial, desertão teria ficado reduzido a sertão. Como já se notou é, porém, difícil de explicar a mudança da pronúncia do s, pois em deserto e desertão o s é sonoro, como z, e em sertão é surdo, como c.
Antes de pretender entrar na origem da palavra, faço-me esta pergunta: Que é o sertão?
Eu gosto de ir ao velhinho do Dicionário de Morais e Silva buscar a definição das palavras, porque esse léxico tem um sabor especial de singeleza concisa:
Sertão, s. m. O interior, o coração das terras, opõe-se ao marítimo, e costa… O sertão toma-se por mato longe da costa. O sertão da calma; i. é, o lugar onde ela é mais ardente. Lobo “metendo-se pelo sertão da calma, que naquele tempo fazia.”
Além disto que se lê em Morais, analisando autores portugueses antigos (Barros, Mendes Pinto, Tenreiro, etc., etc.), vemos que sertão se aplicou, por vezes, às próprias cidades e a sítios povoados, embora de gente selvagem.
É fácil ler-se: “sertam da cidade” — “Dentro no sertam desta cidade está outra cidade muito mais nobre…” (Tenreiro, apud Domingos Vieira).
Pelo que, o sentido mais ajustável a sertão é o de interior.
Tomando o vocábulo neste aspecto, lembrei-me de relacionar o sertão com a ideia de quentura, de região quente; e, assim, quem sabe se a palavra sertão não se relaciona etimologicamente, de algum modo misterioso, com a palavra sertã. Explicação arrojada? Sem dúvida. Estou mesmo a adivinhar o sorriso dos linguistas que se esquecem de que a linguagem é um produto da imaginação humana e, sem imaginação, não se estuda a língua convenientemente, no campo misterioso das origens.
Pois é assim mesmo: imagino entre sertão e sertã uma possível irmandade etimológica.
Vejamos, ou, por outra, raciocinemos e imaginemos.
À medida que se caminha para o interior das terras ultramarinas, a temperatura é natural que seja mais elevada e, a certa altura, podia haver-se confundido a ideia de sítio quente com a de sítio interior, região longe da costa; isto é, prevaleceria o sentido de localização, atenuando-se a ideia de calma, ideia mantida, porém, na locução referida de sertão da calma. Sendo assim, o facto de os nossos escritores antigos (como Barros, Góis, etc.) usarem de sertão, no sentido de interior, não determina a exclusão da ideia de quentura que, talvez, primeiro estivesse em sertão.
Quero dizer, nós podemos relacionar o sertão com a ideia de sítio, longe da costa, onde há grande calor; e a expressão sertão da calma (isto é, o lugar onde a calma é mais ardente) pode ajudar a formular esta relação.
Aliás, os Portugueses aplicaram a expressão ao interior das terras africanas, asiáticas, brasílicas e até ao interior de ilhas. Tanto assim que em Fernão Mendes Pinto se lê (cap. 143):
“A terra em si é quase do teor do Japão, algum tanto em partes montanhosa, mas no interior do sertão é mais plana…”
Se a palavra sertão apenas pudesse significar interior, a expressão interior do sertão era igual… a interior do interior.
Nada impede que entre sertão e sertã tivesse havido algum dia qualquer relacionação etimológica e até analógica.
A palavra sertã (que se deve escrever com s, e não com c) que quis dizer? Donde veio? Que outras formas teve? Eis perguntas importantes, no lance, e às quais adiante se responde.
Dir-me-ão que sertã é frigideira, torradeira, etc., mas, além de se poderem lembrar frases como — aquele sítio é um forno, acrescento isto da Vida de S. Paulo Eremita (citado por Morais, s. v. Sartém):
“vencido de tantos tormentos e sarténs de fogo.”
É que sertãs eram lâminas ou chapas ardentes com que se abraseavam os mártires. E a palavra aparecia em formas como sartagem, sartaem, sartãa, sartan, sartam, sartã.
O sertão, por seu turno, também se escreveu sartam, sertam, etc.
Meras coincidências? Talvez, Mas quem conhecer mais, que o diga.
O mais difícil é isto: a sertã é feminina; e o sertão, masculino. Mas podia ter havido qualquer desconhecida metonímia. Ademais, eu estou apenas a relacionar as palavras, quanto à etimologia e quanto à possível transição semântica.
A ideia de ardência, de calor grande está, aliás, na origem que considero comum a sertã, a sertão, e também comum ao espanhol sartén. É o latim sartago, sartaginis, frigideira, sertã.
Algum português nos primeiros contactos com a quentura das terras do interior da África, da Ásia não podia um dia ter relacionado a forma sertão com a ideia dessa quentura sentida?
A mim me parece possível.

2.ª hipótese
Visto que ninguém sabe nada quanto ao mistério da palavra, já que estou em campo de hipóteses, outra hipótese formularei para origem de sertão: o latim sertus, isto é, entrelaçado, particípio de sero, entrelaçar, enredar, etc.
Para isso, convém lembrar que sertão pode ser floresta, mata densa no interior.
As terras interiores de África e Ásia muita vez se apresentavam aos Portugueses como entrelaçadas ou densas florestas virgens. Quem sabe se, por outra hipótese que também formulo, à ideia de sertão, originariamente, se ligava a ideia de mata densa e grande? Chi lo sa?

Apenas com esta formulação e dedução de duas novas hipóteses respondo à dificílima consulta que me fez o eminente Dr. Pedro Calmon, grande escritor do Brasil.
[Como vimos, há quem, aliás precariamente, relacione este vocábulo com deserto. Não me parece.
Que é um deserto? Propriamente, um deserto é sítio abandonado, pois o latim desertus é um particípio de de sero, abandonar, deixar. Deserto é solitário, e daí vieram as ideias de lugar inculto, silvestre. Ora, sertão é só deserto grande?]
Se para mais não servir, sirva esta minha resposta como homenagem renovada ao grande interesse com que altos espíritos, qual o de Pedro Calmon, se entregam ao estudo da Língua Comum.
Um aspecto que devo ainda focar: é o da portuguesidade deste termo.
Se é hoje mais brasileiro que português, note-se que, antes de se aplicar às grandes regiões interiores do Brasil, referiu em bocas portuguesas sítios africanos e asiáticos.
Estupenda língua, a nossa! Verdadeiro documento da presença lusíada por terras de além os mares! Como não hão-de ser misteriosas muitas palavras portuguesas, se elas ainda mantêm o mistério das terras que fomos encontrar no enigma das plagas longínquas?»


Informação


Ficção e Matemática

O escritor e matemático Denis Guedj, professor de História e Epistemologia das Ciências na Universidade Paris-VIII, vai estar hoje, quinta-feira, às 19 horas, no Institut Franco-Portugais, em Lisboa (Avenida Luís Bivar, 91), para o lançamento da edição portuguesa, pela Editorial Bizâncio, do seu romance Uma Janela para o Infinito.
A apresentação da obra será feita pela Professora Natália Bebiano, do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra. De seguida, o autor proferirá uma conferência, no âmbito do ciclo «Bar des Sciences», sob o tema Science-Littérature: Divorce? Mariage d’Amour ou de Raison?, que abordará a relação da ficção com a matemática.

9.4.08

Acordo Ortográfico

Perfeito, perfeito…

No programa Opinião Pública, na Sic Notícias, debatia-se ontem o Acordo Ortográfico. O convidado era o Prof. Carlos Reis. A determinada altura — até para justificar o título do programa —, o jornalista Miguel Ribeiro apresentou uma telespectadora, Maria Pires, que participava por telefone, como sendo licenciada em «Línguas Românticas». O Acordo Ortográfico não pode resolver estes problemas.
E a propósito do que este acordo não pode dar, também interveio Rui Beja, responsável da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). Está contra este acordo em concreto, não contra qualquer acordo ortográfico, realçou. Viu-se, porém, pela argumentação, que estaria contra qualquer acordo que alterasse a língua… Ou seja, todos. Preferia um acordo que obrigasse os Portugueses a dizerem «mouse» ou os Brasileiros a dizerem «rato». Esse seria o acordo perfeito. Mas isso não é matéria para um acordo ortográfico, já reparou? E qual seria o objectivo pretendido?

Milhão e bilião

Ilusões

«Na Galp costuma ser tudo em grande. Da valorização em bolsa, que triplicou desde a estreia, até aos muitos milhões de barris que estarão algures no Atlântico Sul. Certamente contagiado por tanta grandeza, Ferreira de Oliveira apresentou esta semana os investimentos com referência a biliões. Só que os bi do gestor sãos os billions ingleses que em português correspondem a mil milhões. Uma “pequena” diferença de três zeros à direita» (Galp. A arte de multiplicar os zeros», Diário de Notícias/Bolsa, 14.3.2008, p. 5).

Acordo Ortográfico

Consonantização

Segundo o jornal Meia Hora, Vasco Graça Moura terá afirmado anteontem na Assembleia da República que «“a aplicar-se o acordo, não tardará a dar-se a supressão na grafia — e portanto também na pronúncia — das consoantes ‘c’ e ‘p’ nos casos em que continuam a ser pronunciadas ou semiarticuladas em Portugal”» («Opositores do Acordo Ortográfico têm “comportamentos autistas”», Maria Nobre, Meia Hora, 8.4.2008, p. 4).
Já Fernando Venâncio, no Expresso/Actual de sábado passado, escrevera: «Dá-se, no nosso português, desde há séculos, um lento processo de fechamento (os linguistas falam em elevação) das vogais que, num vocábulo, precedem a sílaba tónica. Veja-se como pronunciamos “despertador”, “adormecer”, “metamorfosear”, e como os pronuncia um brasileiro. Este processo de obscurecimento e consonantização da nossa fala vai seguramente prosseguir. E uma coisa parece certa: o novo Acordo Ortográfico vem dar-lhe um valente empurrão.» A conclusão, porém, admite matizes de tendência, no que coincide com a minha opinião: «Daqui a anos, num mesmo jornal, na mesma página, um jornalista escreverá “cepticismo”, “intelectual”, “característico” e o colega “ceticismo”, “inteletual”, “caraterístico”» («Caro Acordo», p. 60). O mesmo é dizer, continuará a ser um processo lento, demorará gerações. E, se o fenómeno já vem de trás, não podemos atribuir a culpa ao Acordo Ortográfico de 1990.

8.4.08

Acordo Ortográfico

Vá para casa estudar

O Público de hoje fala do debate sobre o Acordo Ortográfico na Assembleia da República, como não podia deixar de ser. Entre muitas outras imprecisões, a merecerem uma nova tiragem do jornal, lê-se isto: «As letras “k”, “w” e “y” são oficialmente acolhidas no alfabeto português. É mais uma oficialização do que uma mudança, já que a prática há muito consagrou o seu uso, designadamente em vocábulos derivados de nomes próprios estrangeiros. Os dicionários registam, por exemplo, as palavras “kafkiano”, “wagneriano”, ou “yoga”, esta última como alternativa legítima a “ioga”» («Letras que caem, duplas grafias que ficam», L. M. Q., Público, 8.4.2008, p. 3). Não é verdade. O Acordo Ortográfico de 1945, que está em vigor, estabelece: «O k, o w e o y mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes próprios estrangeiros que se escrevam com essas letras: frankliniano, kantismo; darwinismo, wagneriano; byroniano, taylorista. Não é lícito, portanto, em tais derivados, que o k, o w e o y sejam substituídos por letras vernáculas equivalentes: cantismo, daruinismo, baironismo, etc.» (Base I) Logo, não foi o uso, foi a lei a estabelecê-lo.
Mais uma imprecisão grave, e um jornal responsável não devia deslizar nestas ligeirezas: «A generalidade dos topónimos mantêm a maiúscula, mas esta torna-se facultativa em nomes de ruas, praças, etc. Vai ser possível, portanto, escrever-se avenida dos aliados ou rua augusta.» Não é verdade. Pior: é ridículo. Consigna o texto do novo acordo na Base XIX, n.º 2, al. i): «Opcionalmente, em palavras usadas reverencialmente, aulicamente ou hierarquicamente, em início de versos, em categorizações de logradouros públicos: (rua ou Rua da Liberdade, largo ou Largo dos Leões), de templos (igreja ou Igreja do Bonfim, templo ou Templo do Apostolado Positivista), de edifícios (palácio ou Palácio da Cultura, edifício ou Edifício Azevedo Cunha).» E será bom que na mente do jornalista aquela «generalidade» não signifique «a maioria»…
E fala o editorial — também sobre o debate — de desatenções e erros no texto do acordo… «O próprio texto do acordo de 1990 que a CPLP divulgou e que continua na Net (cheio de desatenções e erros, prova de pressa e mau trabalho) mantém, por assim existir em Portugal e no Brasil, duplas acentuações: antropónimos/antropônimos, tónicas/tônicas, bibliónimos/bibliónimos» («A língua que se fala e a língua que por aí se vende», Nuno Pacheco, 8.4.2008, p. 42).

Acordo Ortográfico

E os estrangeirismos?

      Ora bem. Exceptuando os topónimos, nada no Acordo Ortográfico de 1990 se diz sobre a substituição de estrangeirismos por formas vernáculas. Entretanto, cá e além-Atlântico, os falantes vão fazendo esse trabalho. Como estou a reler a obra Primeiro as Senhoras, de Mário Zambujal (a 3.ª edição, de 2006, publicada pela Oficina do Livro), aproveito para mostrar como este autor veste de português alguns vocábulos estrangeiros. E digam-me depois: alguém fica com dúvidas?

«Custou-me, mas perdi com ferplei.» (p. 14)

«Fez-se roda em torno do ilustre. Prossegui marginal, chupando o último cigarro do maço e atacando o quarto uísqui.» (p. 29)

«Enquanto a Bruna bulia para lá do balcão, a prima acomodou-se na mesa mais próxima, sozinha, boa perna traçada, joelho redondo, a sorver o seu coqueteile pela palhinha.» (p. 34)

«Tudo isto educadamente, o Falinhas é um gentlemane.» (p. 35)

«Alternativa, o setripetise.» (p. 36)

«Um pouco piroso, aceito, mas é preciso atender às exigências do marquetingue.» (p. 43)

«São estas aparentes minudências que me encantam no metiê.» (p. 45)

«Corri a entrepor-me enquanto a mãe arrancava um cortinado para que descesse o pano sobre o setripe.» (p. 72)

«E agora deixo-o, mergulhado nos seus dossiês.» (p. 73)

«Admitamos, inclusivamente, que o figurão do vídeo, esse que confundem comigo, foi quem fanou o automóvel e, enfim, sábado à noite, apeteceu-lhe um drinque naquele bar simpático.» (p. 111)

«Nesta altura é indispensável meter o flechebeque.» (p. 121)

«Depois, Franquefurte, Bona, Dusseldorfe.» (p. 126)

«Com o amealhado e empréstimo do banco, adquiriu o apartamento onde mora, dispondo de mansarda que funciona como ateliê musical.» (p. 126)

«Acharia atrevimento da minha parte sugerir pausa curta, para mastigação, talvez ervilhas com ovos escalfados, no seneque em frente?» (p. 127)

«Mas hoje, enfim, é esposa e mãe no seu dupléquece a oitenta quilómetros de Antuérpia, e não se entretém a atirar namorados antigos para dentro de carrinhas cor de tijolo.» (p. 138)

«Impensável era a cambalhota que riscou o epiende.» (p. 140)

«A mala tinha-a no chão, protegida entre as pernas vestidas de jines.» (p. 146)

«Apreciaria saber como vai encaixar as peças que sobram do pâzele do rapto, alegado rapto, digamos.» (p. 150)


7.4.08

Regência do verbo «acabar»

E a gramática?

Título de uma notícia no Público de hoje: «Passagem da chama olímpica por Londres acaba com 35 detenções» (7.4.2008, p. 17). Se não lesse o corpo da notícia, qualquer leitor poderia suspeitar que a simples passagem da chama olímpica fizera sair das prisões 35 pessoas. À passagem da tocha por Victoria Embankment, os polícias abriam as celas, obnubilados por tão extraordinária visão. Acabar com é pôr termo a, senhor jornalista. «Acabemos com estas digressões», escreveu Garrett nas Viagens na Minha Terra. Despeço-me com amizade, até um próximo programa. Post, quero eu dizer.