31.5.06

Uso do itálico

Ah, isso…

Decerto que há aspectos bem mais graves nos jornais — a começar na pontuação, desleixada ou ignorante. Hoje, porém, quero abordar o uso do itálico. Os casos que apresento são diferentes: no primeiro, o jornalista (ou o revisor) poderia ter usado a palavra portuguesa, evitando assim o itálico. Embora seja uma forma de destaque, perturba a leitura. No segundo caso, o jornalista (ou o revisor) não deveriam usar o itálico.

O caso. «A colecção, que abrange brinquedos das mais variadas origens, materiais e temas da última metade do século XIX e do século XX, tem como ex-libris um triciclo em ferro, madeira e couro», «Museu de (a)brincar de Arronches candidato a prémio europeu», Hugo Teixeira, Diário de Notícias, 13.05.2006, p. 44.

A solução. ex-líbris s.m.2n. vinheta desenhada ou gravada que os bibliófilos colam ger. na contracapa de um livro, da qual consta o nome deles ou a sua divisa, e que serve para indicar a posse. (Dicionário Houaiss)

O caso. «Apesar de ter conseguido o tempo mais rápido nos treinos disputados ontem, o piloto da Ferrari foi considerado culpado por ter atrasado deliberadamente os adversários», «Schumacher é o último no Mónaco», 28.05.2006, p. 48.

A solução. De facto, Schumacher conduz um Ferrari, mas a equipa é a Ferrari, isto é, só as marcas é que são destacadas a itálico. É uma boa prática, mas não é seguida por todos os jornais.

Tradução de «polipasto»

Imagem: http://www.proyectosfindecarrera.com/

Desunião ibérica

Não duvido, caro Luís Ramos, que tenha lido num dicionário que a tradução do espanhol «polipasto» é… «polipasto». Não apenas não conhecia a palavra como portuguesa como confirmei em todos os dicionários que tenho *. Pelo que posso ver no Diccionario de la Real Academia Española, «polipasto» ou «polispasto» provém do latim polyspaston, e este do grego πολúσπαστον. Pela definição — «aparejo de dos grupos de poleas uno fijo y otro móvil», o que corresponderá à imagem —, creio que se pode traduzir por guincho ou cadernal.


* No Brasil sim, usam a palavra, mas só a vejo na Internet. Em inglês, existe o vocábulo polyspaston, que provém do mesmo étimo: «Weight-lifting machine typically composed of a pair of pulley-blocks (one fixed, one mobile) housing sheaves, with a rope running in their grooves. The polyspaston performs the same function as the tackle, but the sheaves are arranged end-to-end in two parallel rows instead of rotating on a common axle as in a standard block.»

30.5.06

Expressão: cutelo da mão

Se não sabe, invente

      Recentemente, um consulente do Ciberdúvidas perguntava como se designa a parte carnuda da mão, acrescentando que em inglês é heel *, pelo que em português poderia ser «calcanhar da mão». Isto fez-me lembrar outra coisa relativa à mão. Embora a primeira vez que vi a expressão tenha sido numa tradução, não consigo localizá-la, mas em meu auxílio vem uma anotação que fiz a Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto, de Mário de Carvalho, em que se pode ler: «com o cutelo da mão». É com o cutelo da mão, por exemplo, que se mata um coelho. Trata-se de uma muito engenhosa e perspicaz catacrese, como asa do nariz, perna da mesa, nariz do avião e de outras. Catacrese que já devia estar dicionarizada. Na língua, a analogia é um filão inexaurível.


* Por exemplo, na frase «Place heel of hand nearer victim’s head on breastbone next to index finger of hand used to find notch».

29.5.06

Locução «a sério»

À parva

Ultimamente, entrou em voga a locução «à séria», usada e difundida por gente snobe (e snobe, etimologicamente, significa «sine nobilitate» [sem nobreza], não esqueçamos). Entre as pessoas simples — excepto as mais permeáveis à mediocridade exibida nos reality shows —, o despautério não criou raízes, felizmente.
Felizmente também, alguma imprensa vai denunciando a snobeira, ainda que de forma demasiado subtil: «Passemos, então, a M.R.P. [Margarida Rebelo Pinto]. Não vejo como possamos acusá-la de fraude. Fraude, metaforicamente falando, significa vender gato por lebre. É verdade que tem mostrado desejo de ser reconhecida como escritora “séria” (ou será “à séria”?). […] Mas o que interessa é saber se, apesar das pretensões da autora, a devemos levar a sério (ou será “à séria”?)» («A falta que faz o “je ne sais quoi”», Ana Cristina Leonardo, Expresso/Actual, 20.05.2006, p. 58).

Léxico: xauter


Como as palmas das mãos

      Se numa cidade precisamos de guias, com maior e diversa razão precisamos deles num deserto. O vocabulário da língua portuguesa inclui uma palavra que designa o muçulmano que guia os viandantes nos desertos da Arábia — xauter (do árabe xater, homem perfeito).
      Curiosamente, o profeta nomeado por Deus para guiar aqueles que viviam a leste do monte Sinai, o povo de Mudyan e Aykah, chamava-se Xuaib, que significa «aquele que mostra o caminho certo».

Abuso do elemento mega-

Mania das grandezas

Nos tempos que correm, já nada é grande ou muito grande ou mesmo enorme: agora, tudo é mega-qualquer-coisa. Venha lá de onde vier a mania, o certo é que são os jornalistas que a estão a difundir. Só temos de esperar, com paciência, que passe. Vejamos alguns exemplos.

«Para trás, ficam 13 anos de trabalhos de construção — a barragem arrancou em 1993 —, muita polémica e algumas pressões internacionais, devido aos estragos ambientais e ao impacto humano da megabarragem denunciados ao longo da última década e meia por inúmeras organizações ambientais e por múltiplos observadores (ver texto em baixo)», «Maior barragem do mundo já está construída», Diário de Notícias, 20.05.2006, p. 24.

«Megarrebelião de criminosos já matou 52 pessoas em São Paulo», Diário de Notícias, 15.5.206, p. 23.

«É que, depois da megaoperação de fiscalização lançada pela autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) na última semana de Abril, que levou à apreensão de mais de 800 mil litros de combustível, oito bombas de gasolina, na maioria em Lisboa, foram encerradas entre sábado e quarta-feira», «Meia centena de postos de combustível fechados em Lisboa», Francisco Neves, Público, 5.5.2006, p. 57.

«Megachurrasco e exposição sobre a Ota na feira de Alenquer», Público, 26.05.2006, p. 65.

28.5.06

Figura de retórica: paralipse

Não dizer dizendo


     Uma vizinha minha (não, não é a do «estendedal») usa, inconscientemente, uma figura de retórica de magnífico efeito, que é a paralipse. Esta figura consiste em fingir-se querer omitir o que todavia se vai dizendo. Como fala pelos cotovelos, diz-nos amiúde (isto não é um plural majestático: é, mais precisamente, no sentido de dizer a todos os presentes) «não querendo interromper, mas já o fiz…», o que irrita um pouco toda a gente. Nem quero falar, porque é mais privado, da mania que esta senhora tem de se pretender colega de faculdade de vários ministros, de gerações muito distantes entre si… Viram? Comecei por escrever «nem quero falar», mas falei: isto é uma paralipse.
      Também referida nos antigos manuais de retórica como paraleipsis, paralepsis, preterition e occupatio, a palavra chegou-nos através do latim paralipsis, mas o étimo é grego, de para, «lado», e leipein, «deixar». Entre nós é também conhecida como preterição.



Elemento pseudo-

Erros populares

Ainda a propósito do vocábulo «jacobino», no site do CDS-PP fui encontrar a transcrição do que o deputado Nuno Melo afirmou na Assembleia da República sobre a proposta de alteração socialista do protocolo de Estado: «É um diploma que resulta de um impulso socialista nascido do pseudo laicismo jacobino.» Ora, como quase toda a gente sabe, unem-se por hífen os compostos formados com os elementos de origem grega auto, neo, proto e pseudo, quando o segundo elemento tem vida à parte e começa por vogal, h, r ou s. Logo, pseudo-aleatório, pseudo-epígrafe, pseudo-randómico, pseudo-sábio; contrario sensu: pseudolaicismo.

26.5.06

Léxico: engástrio

Imagem: http://easyweb.easynet.co.uk/

Teratologia

Apesar de todos padecermos mais ou menos de dismorfofobia, certo é que também nos atrai o disforme, o anormal, o diferente. Há dias, um consulente do Ciberdúvidas quis saber «o termo linguístico correcto da ausência de pernas e braços ou/e da ausência de membros inferiores e superiores», que não conseguia encontrar no dicionário. Logo me lembrei de ter lido, há poucos anos, a notícia de uma mulher chinesa, com cerca de 40 anos, que na sequência de uma consulta médica, por suspeitar de gravidez ou de algum padecimento gástrico, foi fazer uma ecografia. Para espanto dela, e talvez mesmo horror — e êxtase do médico, que via assim concretizado o que estudara sobre teratologia (teratos, monstro; logos, estudo) nos manuais —, soube então que tinha dentro de si o seu irmão gémeo! É o que se designa por engástrio: monstro duplo em que um dos fetos está contido no abdómen do outro.
A Antiguidade clássica transformou alguns destes seres em personagens fantásticas: Argos, Cérbero, Quimera, Equidna, Górgonas, Hidra de Lerna, Minotauro, Polifemo, Sereias, etc. Por um infausto acaso, a nossa realidade é mais pífia: de vez em quando, surge (surgia, melhor) a notícia de ter nascido no Entroncamento uma cabra com sete pernas ou um gato com três caudas.

Elementos cis- e trans-

Aquém e além, outra vez

cisalpino → transalpino
cisandino → transandino
cisatlântico → transatlântico
cisdanubiano → transdanubiano
cisgangético → transgangético
cisjordano → transjordano
cisjurano → transjurano
cispadano → transpadano
cispirenaico → transpirenaico
cisplatino → transplatino
cisrenano → transrenano
cistagano → transtagano
...

Ortografia: Pirenéus

Aquém e além

Embora este erro seja relativamente comum na imprensa, o exemplo que dou chegou-me por outra via. «Já só lhe faltava reconquistar o condado da Sardenha e as terras catalãs de além-Pirinéus: o Rossilhão.» A grafia correcta deste topónimo é Pirenéus. Já vi professores (o que é que eu não vi?) errarem a grafia deste vocábulo. Como também já vi alunos acertarem na sua grafia. O adjectivo correspondente é
transpirenaico: que fica situado para além dos Pirenéus.│Que atravessa os Pirenéus.

Que se opõe ao adjectivo

cispirenaico: que fica aquém dos Pirenéus.

25.5.06

Verbo haver

Cães e gatos


      Várias vozes lamentam que tenha sido o 24 Horas a adquirir os direitos de publicação da tira cómica Mutts, de Patrick McDonnell, considerada uma das melhores da actualidade. Apesar de também eu lamentar, decerto que não é pelos mesmos motivos. Recentemente, podia ler-se num dos quadradinhos: «Embora tenham havido suspeitas de abuso de esteróides.»
      Já aqui dei conta por duas vezes dos erros ortográficos no Calvin & Hobbes, publicado no Público (1). A minha argumentação é a mesma de sempre: tendo em conta que as tiras poderão ser o único motivo de interesse num jornal para as crianças até certa idade (2), que péssimo serviço estes jornais estão a prestar.
      O verbo haver é impessoal quando exprime existência e vem acompanhado dos auxiliares ir, dever, poder, etc.: «Embora tenha havido suspeitas de abuso de esteróides.»


(1) Na edição de 4.5.2006, podia ler-se na tira do Calvin & Hobbes: «Posso ver o filme “A Jovem Raínha Assassina” na TV?»

(2) Na Inglaterra surgiu, no início deste mês, um semanário, o First News, com 24 páginas, para crianças dos 9 aos 12 anos. Custa uma libra e a tiragem é de 300 mil exemplares.

Vírgula com sujeito posposto

Virgulação duvidosa

Uma leitora pergunta-me se o sujeito posposto, nas vozes activa e passiva, deve ser antecedido de vírgula, e junta dois exemplos: «São três [,] os exemplos que...» «É estabelecido [,] o regime que...»
Para os exemplos que dá, a resposta é não. Como sabe, o sujeito imediatamente a seguir ao verbo é a segunda posição natural deste sintagma (a ordem canónica, relembro, é SVO, isto é, sujeito-verbo-objecto/complemento), pelo que não admite uma vírgula a separá-los. Apenas nos casos de deslocações e intercalações muito mais radicais — interposição de vocativo, complemento directo, predicativo do sujeito, adjuntos adverbiais deslocados, etc. — é necessária a vírgula. Alguns exemplos:

«Tem piada, isso que me dizes: eu também reparei nesses tiques de ajeitar o casaco de Manuel Maria Carrilho.»
«Desabafa Eduardo Prado Coelho, colunista habitual da nossa imprensa, que os jornalistas escrevem muitas vezes com os pés.»
«Grande treinador, o Mourinho!»

Léxico: caparão

Imagem: http://stanislavsfalconry.com/hoods.html

Altos voos

      Um leitor pergunta-me o nome da carapuça ou capuz de couro que se costuma pôr, em altanaria (falcoaria ou cetraria), nos falcões, açores e noutras aves semelhantes para permanecerem quietas. Quando vejo uma ave com esta carapuça, lembro-me sempre de um carrasco ou de Hannibal Lecter. Esse nome é caparão. As correias do caparão, que se podem ver na imagem, denominam-se cerradouros.

Em espanhol: caperuza (ou capirón, termo antigo)
Em francês: chaperon
Em italiano: cappuccio
Em inglês: hood
Em alemão: Haube

24.5.06

I dinastia de faraós

Do Egipto

Caro João Lopes: aqui ficam os nomes dos faraós da I dinastia, como me pediu:

Hórus Aha (Menés?)
Hórus Atoti
Hórus Djer
Hórus Uadji (Djet)
Hórus Den (Udimu)
Hórus Adjib (Anejib)
Hórus Semerkhet
Hórus Kaa

Utilizei para a redacção desta nota o Dicionário do Antigo Egipto, com direcção de Luís Manuel de Araújo, Caminho, 2001, p. 644 (verbete «Onomástica real»).

Elevados e expoentes

Aquelas letrinhas que…

Um leitor pergunta-me que nome têm os algarismos e as letras que ficam elevados, em especial nas abreviaturas. Embora se veja muitas vezes atribuir-se-lhes, indiferenciadamente, a designação de «expoente» ou «potência», há um nome mais abrangente, que é


Elevados m. pl. Algarismos ou letras muito menores do que os tipos com os quais se empregam, e que se compõem alinhados à parte superior do corpo, em abreviaturas e potenciais aritméticos, separadamente ou em combinação com os descidos.

Exemplos: Art.º, arq.º, C.ª, etc.

23.5.06

Estrangeirismo: «parti-pris»

Tomar partido


      Ricardo Costa, no último e nada esclarecedor Prós e Contras, falou de uma jornalista que «partiu para uma entrevista com um parti-pris contra o entrevistado». É verdade que o programa é visto por uma minoria (a maioria que não vê não perde muito), mas nunca minoria se pode confundir com instrução ou compreensão. No meu entender, um jornalista deve falar e escrever para se fazer entender. Se o improviso ou a precipitação o atira para palavras, expressões ou conceitos menos usuais ou claros, deve emendar, elucidar, voltar atrás.


Parti-pris — Já é tempo de devolvermos definitivamente à procedência este inútil galicismo. — Em vez de dizermos, por ex., «ele sempre discute os assuntos com parti-pris», diga-se: «ele sempre discute os assuntos com parcialismo ou com parcialidade, ou com ideias preconcebidas, ou com preconceitos, ou coisa equivalente» (Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, Rodrigo de Sá Nogueira, Lisboa, Clássica Editora, 4.ª ed., 1995, p. 325.).

Léxico: iucateco

Luzes, câmara, quietos!

«O realizador parece apostado em obrigar os americanos a ler legendas. Depois do aramaico, em A Paixão de Cristo, [Mel] Gibson decidiu dirigir um filme falado em yucatec, um dialecto maia. Apocalypto conta a queda da civilização maia e, como A Paixão, está cheio de imagens de violência explícita» (Visão, n.º 687, 4 a 11.05.2006, p. 98). E a Visão parece apostada em pôr-nos a desaprender português. Tinha, em vez de yucatec, «iucatano», «iucateco», «iucateque» e «iucatego», todas palavras registadas em dicionários da língua portuguesa, mas por preguiça do senhor jornalista o leitor perdeu mais uma oportunidade de aprender qualquer coisa de útil. É pena.

22.5.06

Doente, enfermo e paciente

Doentes, enfermos e pacientes

Os Espanhóis, a par da palavra «paciente», usam a palavra «enfermo»; embora também a tenhamos, só a aproveitámos para referir aqueles que tratam deles: os enfermeiros. Etimologicamente, «enfermo» é «aquele que não está firme», que «não tem firmeza», do latim infirmus, composta pelo prefixo privativo in- e o adjectivo firmus, isto é, «falta de firmeza». Os doentes, está-se mesmo a ver, são os que sofrem, os que sentem dor — dolens, dolentis* — do particípio presente do verbo doleo, dolere. Finalmente, temos os pacientes. Do latim patior, pateris, passus sum, que significa sofrer. Qualquer paixão, mesmo a de Cristo, vem daqui e é apenas sofrimento. Todos, porém, quer doentes, quer pacientes, precisam de ter muita paciência e firmeza.

* Do mesmo étimo latino, temos igualmente o vocábulo divergente «dolente»: triste, magoado.

21.5.06

Conceito: gralha

Rigor faunístico

A leitora Luísa Coelho, que participa regularmente neste blogue com questões e dúvidas, pede-me que esclareça o conceito de gralha, que considera envolto em alguma mistificação. «Para o erro mais grosseiro», escreve-me, «há agora a desculpa de que é uma gralha. E então a ignorância, já não existe? Os computadores, essas máquinas estúpidas, vieram substituir outros bodes expiatórios.»
Lanço mão da definição que encontrei na obra Correcção de Provas Tipográficas, de Manuel Pedro (Pai), cuja oferta agradeço ao meu amigo João Costa:
«A “gralha”, verdadeiramente dita, consiste na troca de uma letra por outra, na repetição ou falta de uma palavra, na omissão de um vocábulo, ou nas palavras mal ortografadas ou por grifar» (p. 14).
Como se concluirá, fica de fora do conceito muita ignorância, muita estupidez confrangedora que se vê plasmada diariamente em livros e na imprensa escrita.

Ortografia: «militar-industrial»

Da boca para o papel


      Não é a primeira vez que vejo este erro na imprensa, mas eis que surgiu a oportunidade de falar sobre ele. «Num livro publicado em 2002, o jornalista francês Thierry Meyssan garante que o ataque ao Pentágono não passou de uma encenação elaborada por um grupo militaro-industrial próximo do Presidente Bush», «EUA divulgam vídeo do 11-S», 17.05.2006, p. 48.
      «Militaro-industrial»? De onde vem aquele «o»? Sim, porque «militaro» não é um elemento de formação de palavras que exprima a ideia de militar ou referente à vida militar, como acontece com outros: euro, luso, etc. Também não é — ainda é menos, ia escrever — um adjectivo reduzido, como em corto-perfurante («Empunhando um objecto corto-perfurante, presumivelmente uma faca ou navalha, que trazia consigo, o arguido desferiu com o mesmo golpes em B., atingindo-o do modo descrito nos autos.»), luso-descendente, herói-cómico, afro-americano, israelo-palestiniano, entre muitos outros primeiros elementos de adjectivos compostos. Parece, na verdade, ter origem na oralidade, como vogal de ligação. Na escrita, é completamente espúrio. De qualquer modo, vou voltar a este assunto, que me parece suficientemente importante para pensar melhor nele.

Abreviatura: Dr.

Dr. Quem


      É infelizmente muito comum — o que o não torna menos grave — escrever com minúscula inicial a abreviatura de «doutor», como se pode ver nesta frase, que serve de exemplo, de Mário Bettencourt Resendes: «O dr. Jardim tem o particular talento de ostentar, por norma, uma ausência gritante de senso comum» («As armas e os barões de Alberto João», Diário de Notícias, 18.05.2006, p. 11). Nos substantivos, adjectivos e locuções pronominais, escritos por extenso ou abreviadamente, que constituem formas corteses de tratamento deverá usar-se a maiúscula inicial, como preceitua, e bem, a Nova Terminologia Linguística, quando antepostos a nomes de pessoas. Logo, Dr. Jardim, Mons. Johann Geisler, Fr. Georg Angst, etc.

Verbo haver

Camarada linguagem


      O desventurado verbo haver nasceu para ser maltratado, está visto. Hoje foi o camarada Jerónimo de Sousa que lhe deu uns sopapos: «E se dúvidas houvessem […].» Claro que não ignoro que Jerónimo de Sousa não foi condiscípulo do Dr. Álvaro Cunhal na Faculdade de Direito, mas a verdade é que estava a ler o discurso, que alguém terá escrito ou revisto. O redactor é, pois, o responsável por erro tão grosseiro. Também eu já escrevi, noutros avatares, muitos discursos para políticos, e por vezes em circunstâncias pouco propícias, mas nunca ninguém me pôde apontar erros de tal gravidade.

Ortografia: Estugarda

Sem comentários

«Nascido em 1922, em Stuttgart, numa família de ricos industriais, Rau começou por estudar ciências económicas, mas interrompeu o curso em 1942 para ingressar no exército alemão» («O bom doutor», Alexandre Pomar, Expresso/Actual, 13.05.2006, p. 35).

«Problema cardíaco fora a causa aparente da morte de Gustav Rau, a 3 de Janeiro de 2002, perto da sua cidade natal de Estugarda, na Alemanha» («A misteriosa vida e morte do Dr. Rau», Paula Lobo, Diário de Notícias, 18.05.2006, p. 37).

Lógica


O Dilema do Prisioneiro


      Já ouviram falar no Dilema do Prisioneiro? Está explicado com clareza meridiana na obra O Universo, a Nossa Casa, de Stuart Kauffman, com tradução de Carlos Sousa de Almeida, publicado pela Editorial Bizâncio em 2005.
     
      «A ideia mais simples de um jogo é exemplificada pelo conhecido “Dilema do Prisioneiro”. O leitor e eu fomos detidos pela polícia. Fomos presos em celas separadas. A polícia diz-me que se eu o denunciar a si e você não me denunciar a mim, serei libertado. A si, dizem-lhe a mesma coisa. Se me denunciar e eu não tiver confessado nada, libertam-no. Seja como for, o vigarista leal, um dos que tiver ficado calado, apanha 20 anos de prisão. Se ambos nos denunciarmos um ao outro, temos ambos sentenças duras, mas não tão duras se um falar e o outro não confessar. Digamos que ambos apanhamos 12 anos. Se ambos nos calarmos e não confessarmos, apanhamos os dois sentenças mais leves: 4 anos. Está a ver o dilema. Chamemos «cooperação» ao facto de não se falar, e ao de se delatar à polícia, “traição”. Um comportamento natural é ambos denunciarmo-nos um ao outro. Acho que é melhor denunciá-lo, visto que se você não o fizer, sou libertado. E mesmo que me denuncie, cumprirei uma pena inferior do que se não confessar e você me delatar. Você pensa a mesma coisa. Ambos nos traímos um ao outro e apanhamos 12 anos de prisão.»

20.5.06

Semântica: jacobino

Alma Nostra

Falando hoje sobre a questão das hierarquias protocolares nas cerimónias de Estado, Carlos Magno e Carlos Amaral Dias suspeitavam, quem sabe se com razão, que as pessoas não sabem o que significa «jacobino». Cumprindo a minha função e, quem sabe, a minha missão, quero esclarecer aqui o conceito.
Jacobino, que hoje em dia é uma formidável injúria na boca de alguns partidários da direita, mas atirada de forma inexacta, é um termo que nasceu com a Revolução Francesa. Em determinada altura desta, surgiu o chamado Clube dos Jacobinos, também conhecido como Sociedade dos Amigos da Constituição. Ora, este clube instalou-se num convento de frades dominicanos. E «jacobins» era uma alcunha que se dava em Paris aos frades dominicanos, porque ocupavam o convento de Saint-Jacques, que em latim — sempre o latim! essa forma mentis desgraçadamente proscrita do ensino — se diz Jacobus.
Não deixa de ser irónico que um grupo que ficou conhecido pelas suas atitudes de sectarismo contra toda a religião tenha tomado o nome de um santo.
Aos Jacobinos opunham-se os moderados Girondinos, porque a maioria dos seus chefes provinha da região francesa da Gironda.

Etimologia: miopia

Um míope no Paraíso

Tal como os rajás e os marajás da Índia tinham enxota-moscas, o emir Isoarre, que era míope, dispunha de um solícito porta-óculos que o acompanhava até nas batalhas. Como os óculos eram de vidro, era quase inevitável que em cada recontro um par se partisse. Numa batalha, porém, a última para o emir, a lança cristã de Rambaldo foi cravar-se no peito de Isoarre — não sem antes ter quebrado o novo par de lentes que o porta-óculos pedia para entregar ao seu senhor. Morto este, o porta-óculos, que era solícito, lembremo-nos, já não tinha razões para não se mostrar inteligente, pelo que afirmou: «Agora a sua vista já não tem necessidade de lentes para contemplar as huris do Paraíso.» Esporeou o cavalo e foi-se embora. (Il Cavaliere Inesistente, Italo Calvino; usei a versão portuguesa, O Cavaleiro Inexistente, tradução de Fernanda Ribeiro e Herberto Helder, Portugália Editora, 1965.)
A palavra «miopia» provém do grego myops, formada pelo grego myein (semicerrar os olhos) e ops (olho), como em «piropo», «hipermetropia» e em «presbiopia», por exemplo.

19.5.06

Concordância

Ai que confusão

A falta de concordância é recorrente em muitos textos da imprensa. Vejamos este caso surgido no Expresso: «Depois de ter anunciado — na comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros — que delegara a reestruturação consular no subsecretário de Estado-adjunto, Bernardo Ivo Cruz, Freitas do Amaral resolveu consultar directamente embaixadores e outros chefes de missão, solicitando-lhes que se manifestassem quanto à importância das respectivas Embaixadas, bem como ao número de trabalhadores adequados às tarefas de cada posto», «Freitas quer “ranking” de Embaixadas», Isabel Oliveira, 29.4.2006, p. 12.
Como se vê, o sujeito é o substantivo «número», que se encontra no singular; logo, o adjectivo «adequado» tinha de estar no masculino singular. É verdade que existem muitos tipos de concordância, mas no caso em apreço esta é a única admissível.

Léxico: levirato

Cunhados e ferros de arado debaixo da terra são logrados

Numa conversa informal, surgiu a história, que merece um romance, de grandes proprietários brancos que, em Angola, quais régulos, são intocáveis precisamente porque respeitam a cultura local, o que se manifesta, por exemplo, no facto de acolherem as viúvas e os filhos de trabalhadores seus que tenham falecido. Embora haja aqui algo semelhante a uma organização baseada na escravatura, não falta também um sentimento de humanidade, pelo que me lembrei imediatamente da instituição chamada levirato, que existiu entre os Judeus* e que persiste em África, entre certas tribos. Levirato provém do latim, língua em que se formou a partir de levir, «cunhado, irmão do marido». Vejamos o que diz a Bíblia:
«Quando dois irmãos residirem juntos e um deles morrer sem deixar filhos, a viúva não irá casar com um estranho; o seu cunhado é que se unirá a ela e a tomará como mulher, segundo o costume do levirato» (Deuteronómio, 25,5). Na Vulgata: «Quando habitaverint fratres simul et unus ex eis absque liberis mortuus fuerit uxor defuncti non nubet alteri sed accipiet eam frater eius et suscitabit semen fratris sui.»

* Entre os quais também existia o rito designado Halitzah, através do qual uma viúva cujo marido tivesse morrido sem descendência seria desobrigada do vínculo do casamento de levirato.

18.5.06

Léxico: «enfarna»

Imagem: http://www.cuyamaca.net


Verde-prateado


      «Depositei a minha esperança na linguagem ― daí o pânico quando uma simples palavra me escapa, quando olho para um pedaço de material florido em frente a uma janela e não sei que nome lhe dar. Cortinado. Graças a Deus. Consigo controlar o mundo desde que possa dar-lhe um nome.» Quem escreveu este texto? Podia ter sido eu, mas não: trata-se de um excerto da obra, vencedora do Booker Prize, Anel de Areia, de Penelope Lively, e foi publicado pela editora Civilização recentemente.
      Vamos então controlar o mundo. Agora que o pólen da oliveira irá aumentar, segundo o Diário de Notícias de anteontem, no decurso da semana, podendo atingir níveis elevados, é altura de falar da flor da oliveira. Quase todos sabemos que ao conjunto da flor, à floração, da oliveira se dá o nome de candeio. Pois, e a própria flor? Essa tem o nome de enfarna.

Ortografia: «volte-face»

Vira-casacas

Quer queiramos quer não, o termo «volte-face» é um estrangeirismo: vem do italiano «voltafaccia», através do francês «volte-face». Com o significado de mudança brusca de opinião ou de atitude, reviravolta, tem um uso relativamente alargado no português, e, apesar de o Dicionário da Academia o registar como vocábulo aportuguesado, a verdade é que só a semelhança fonética com o português permitiu que tal acontecesse. Deverá ser grafado como estrangeirismo, das formas habituais: ou itálico ou aspas.
«O volte-face aconteceu em 2003, quando o líder líbio, Muammar Khadafi, renunciou ao seu programa de armas de destruição maciça e aceitou entregar os responsáveis por Lockerbie e pagar as indemnizações às famílias das 203 vítimas do atentado» («EUA restabelecem relações com a Líbia», Helena Tecedeiro, Diário de Notícias, 16.5.2006, p. 16).

17.5.06

Etimologia: oleoduto

Vamos olear a máquina

Comparando com a actualidade, a frequência com que nos anos 80 e 90 se usava, em Portugal, a palavra inglesa pipeline era muito maior. Contudo, ainda há quem a use, desnecessariamente, como Nicolau Santos: «Não deu grande importância a uma breve sobre o ataque dum tal de Movimento da Libertação para o Delta do Níger a um “pipeline” da Shell. […] Por isso, no dia 12 de Janeiro, não deu conta de uma nova acção do Movimento da Libertação para o Delta do Níger, desta vez contra um petroleiro e um “pipeline”» (Expresso, «Conspiração contra o sr. Silva», 6.5.2006, p. 12).
E já que falo de petróleo, é interessante ver como em espanhol o vocábulo «aceite» serve para tudo, mesmo para os óleos minerais, derivados do petróleo. Isto traz, como era de prever, dificuldades aos nossos tradutores menos experientes, que não raro tomam uma coisa por outra. A língua portuguesa, pelo contrário, reservou o vocábulo «azeite» unicamente para o óleo extraído da azeitona. «Óleo», vocábulo que nos veio do latino oleum, tomado do grego elaion, com o mesmo significado, serve para o resto. Em espanhol, por sua vez, «óleo» é palavra de escasso uso no sentido de óleo alimentar, estando o seu uso praticamente restringido à expressão «santos óleos» e para designar a pintura.
Apesar de tudo isto, também no espanhol se formou a palavra «oleoducto» e não outra que tivesse tomado por base a palavra «aceite», provavelmente por razões de eufonia. A sua formação, já se vê, é o latim oleum mais ducto, particípio passivo do verbo ducere (conduzir), como acontece, por exemplo, com a palavra aquaeductus (aqueduto).

16.5.06

Tradução

Actos e actas

Falava-se do cardeal Richelieu (1585-1642): «Falsificou o seu acto de baptismo para poder ser nomeado bispo aos 22 anos» («O país das punhaladas», Ferreira Fernandes, Sábado, n.º 106, 11 a 17.5.2006, p. 70). Ferreira Fernandes é um dos jornalistas que eu mais admiro; tanto que compro jornais e revistas que não aprecio nem um pouco só para ler artigos escritos por ele. Neste caso, estamos perante uma má tradução do francês «acte de baptême». Em português, diz-se correntemente «certidão de baptismo» ou «assento de baptismo».
«Comme elles tardaient à venir, le jeune prélat, impatient, alla lui-même trouver Paul V; il est faux qu’il ait à cette occasion falsifié son acte de baptême; le pape l’ordonna avant l’âge, en considération de son mérite, à Pâques 1607» (L'Encyclopédie de L’Agora).

Estrangeirismo: «expertise»

Prós e Contras

Como é possível que Fátima Campos Ferreira, que vejo insistir muitas vezes com os entrevistados para serem claros, pôde usar duas vezes seguidas, no Prós e Contras de ontem, a palavra «expertise»? A dúvida dela era sobre se o Hospital de Barcelos teria a «expertise» necessária para realizar partos. «Perícia» ou «capacidade técnica», entre outras palavras e expressões, não ocorreram à jornalista?
Quanto aos telespectadores, como diz um amigo meu, «por uma tiram as outras», porque na verdade o telespectador comum, médio, não sabe realmente o que é «expertise». E talvez não precise de saber — os jornalistas é que precisam de se exprimir melhor.

Leituras


O Código de S. Paulo

Um leitor recomenda-me que eu aborde aqui «essa obra incontornável» (ou será «incontrolável?) que é O Código Da Vinci, de Dan Brown. Pronto, já abordei.
Já agora, aproveito o ensejo e digo mais qualquer coisa. Mais do que uma vez Jorge Luis Borges usa a metáfora do espelho, presente na Primeira Carta aos Coríntios, 13,12: «Videmus nunc per speculum in enigmate tunc autem facie ad faciem nunc cognosco ex parte tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum.» O que é que S. Paulo nos quis dizer? Tem razão: talvez a tradução nos ajude. Lanço mão da versão dos Capuchinhos: «Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido.»* A colocação sistemática, pese embora a génese do texto, dos versículos e o espírito do texto sugerem-nos que se trata do conhecimento que os homens têm de Deus, que agora (presente) é imperfeito; depois (futuro) será perfeito, pleno, graças à fé que nos permitirá contemplar Deus directamente. Enigmática embora, a metáfora do espelho sugere, pois, essa forma imperfeita, mediada, de conhecer a realidade. Nem sempre, porém, é assim. Lembremo-nos da palavra «ambulância» escrita — ao contrário — nos referidos veículos. Porquê ao contrário? Porque o retrovisor, um espelho, do nosso carro nos restitui, de forma perfeita, uma realidade pretendida e não enunciada.


* Tenho à minha frente uma preciosa edição, que comprei na Salvation Army, em Cambridge, do início do século XX da obra The New Testament, a New Translation, de James Moffatt (1870-1944), cuja versão diz: «At the present we only see the baffling reflections in a mirror, but then it will be face to face; at present I am learning bit by bit, but then I shall understand, as all along I have myself been understood.»

15.5.06

Utilidades: «site»

Vizinhança é meia parentela

      Descobri recentemente, e a «questão ibérica» reavivada pelo ministro Mário Lino confere-lhe actualidade e interesse, uma secção do site do Instituto Cervantes sobre calinadas na língua espanhola. Seria ocioso demonstrar que a reflexão sobre problemas linguísticos, em geral, nos conduz ao aprofundamento da nossa própria língua. Assim, e pese embora o «editorial» que encima este blogue, estão agora e para sempre justificadas as referências que passarei a fazer ao espanhol, ao galego e a todas as demais línguas. Todos ganharemos com isso.

Ortografia: pólipo

Erros médicos

Uma pessoa amiga perguntou-me porque é que os médicos insistem em pronunciar e escrever «polipo» em vez de «pólipo». Eu não poria a questão nesses termos: generalizações à parte, eles não insistem, porque isso pressupõe que sabem que é incorrecto ou que alguém alega que é incorrecto; eles simplesmente ignoram a forma correcta de grafar e pronunciar o vocábulo. Ora, o vocábulo veio-nos do grego, através do latim, língua em que também é esdrúxulo. E o português, como se sabe, segue normalmente a acentuação dos vocábulos em latim. «Pólipo» é, pois, a forma correcta.
O erro não é de agora: já o professor Vasco Botelho de Amaral, nas suas Palestras de Língua Portuguesa, em 1951, criticava este erro de acentuação.

14.5.06

Lógica

Teorema de Gödel

Já há uns tempos pensava escrever este texto sobre o Teorema de Gödel, e o facto de Fernando Venâncio se ter referido, hoje, à tese deste lógico (1) sobre o decorrer do tempo ser uma ilusão determinou-me a fazê-lo mais rapidamente. Refiro-me à também chamada Teoria da Incompletude. O que mais me interessa nela é a sua origem numa afirmação de Paulo na Carta a Tito (1,12): «Aliás, como disse um deles, que era profeta, “os cretenses são sempre mentirosos, bestas más e ventres preguiçosos”.»(2) Ora, o mais interessante é isto: se a afirmação é verdadeira, então é falsa. Explico melhor: dado que o autor da frase é um cretense, se o que ele afirma for verdade, então é mentira, pois que «os cretenses são sempre mentirosos». Se, pelo contrário, for falsa, então é verdadeira. Em ambos os casos, os paradoxos provêm da referência a si próprios: ambas as afirmações procuram dizer algo sobre si próprias. Foi este um dos grandes contributos de Gödel para as ciências matemáticas, e não só, do século XX: demonstrar que qualquer sistema formal que contenha aritmética elementar é incompleto.

(1) Kurt Gödel (1906-1978).
(2) A acusação é atribuída a Epiménides de Creta (séc. VI a. C.).

Ortografia: Hong Kong



Está tudo ligado…

Tal como as criancinhas que copiam mal as palavras que têm à frente, alguns tradutores também têm tendência a grafar — copiando mal o original que seguem — o topónimo Hong Kong com hífen. Pois fazem mal e o que devem fazer é lembrar-se da personagem King Kong, nome igualmente sem hífen.

13.5.06

Nomes dos reis

Com rei e com roque

Ao leitor que me deixou aqui um comentário acerca dos nomes dos reis. Respiguei o que se segue de Jorge de Sena, ainda que não saiba, ao certo, em que obra se encontra, mas provavelmente em Sobre Literatura e Cultura Britânicas:

«Como geralmente não é sabido, a Ínclita Geração foi, por acordo entre os esposos [D. João de Portugal e D. Filipa de Lancaster], baptizada alternadamente com nomes portugueses e ingleses. E é por isso que, em memória de Eduardo III, avô da rainha, tivemos um rei D. Edward, ou Duarte como se ficou dizendo» (Destaque meu).

12.5.06

Leituras

Jaime Brasil

Ando a ler, por motivos profissionais, a obra Zola, o escritor e a sua época, da autoria do escritor e jornalista Jaime Brasil. É a 2.ª edição revista da Portugália Editora, vinda à luz em Abril de 1966. O que mais me surpreende é o uso criterioso, preciso, hábil da pontuação, e em especial da vírgula. Por outro lado, com uma ou duas falhas, a própria paginação é um modelo para alguns paginadores dos nossos dias. (Isto muito antes dos computadores, meus amigos, só chumbo.) Como a própria pontuação — vergonhosamente incompetente na mão de muitos dos que escrevem actualmente — é um modelo que todos deviam seguir. Darei aqui, brevemente, alguns exemplos com um intuito didáctico.

Verbo faltar

O que faz falta

A propósito dos comerciantes da Feira Popular, a jornalista Fátima Cavaleiro, no programa Portugal em Directo (Antena 1), ontem, rematava: «Faltam pagar as indemnizações.» Deveria ter dito: «Falta pagar as indemnizações.» O sujeito, nesta frase, é «pagar». Se o verbo «pagar» está no infinitivo, o verbo faltar tem de estar no singular. É um dos erros mais comuns, tanto na oralidade como na escrita.

Opus Dei

A Obra de Deus

      «Não imagino, por exemplo, assassinos a soldo da Opus Dei em deambulação pelo mundo para resguardar a “vida secreta” de Jesus Cristo», escrevia ontem Mário Bettencourt Resendes no Diário de Notícias (11.5.2206, p. 9). Em português é que «obra» é do género feminino; em latim, «opus» é do género neutro, que em português dá masculino. Logo, o Opus Dei. É também um erro muito comum.
      E isto faz-me lembrar o caso da Caritas, que aparece tantas vezes escrita «Cáritas». «Ah, o senhor trabalha na Caritas! É aquela agência de modelos infantis, não é? A minha mulher está na agência Face.» Caritas, caritatis, à semelhança de sanitas, sanitatis, de vanitas, vanitatis, não precisam de acento gráfico, pois que em latim não existiam acentos. Também há, ou havia, um laboratório farmacêutico chamado Sanitas. Embora aqui o equívoco fosse ainda mais arreliador, ninguém pôs um acento na palavra. «Ah, o marido da senhora trabalha na Sanitas! Um cunhado meu trabalhou 37 anos nas louças Valadares. Ele era mais urinóis.»

Meia dúzia

Estranhas estranhezas

Duarte Calvão, crítico gastronómico do Diário de Notícias, está no Brasil. «Por falar em boas fórmulas para almoço, não podia deixar de visitar o Bistrô 66. Lê-se “meia-meia”, já que os brasileiros, por motivos misteriosos, tratam o seis por meia-dúzia. Como consideram a palavra comprida, abreviam para “meia”» (11.5.2006, p. 33). Não percebo a estranheza: do lado de cá do Atlântico não se «trata» também assim, ocasionalmente, o seis? Com mais razão teria escrito ser estranho dizer «meia» em vez de «seis». Mas a isto já Duarte Calvão respondeu: «Como consideram a palavra comprida, abreviam para “meia”.» Vamos ver o que dizem os dicionários.

Houaiss:
meia num. n. card. B red. de meia dúzia. Uso empr. esp. no discurso oral para diferençar o som da pal. seis do da três, como, p. ex., na frase: o prefixo dois-meia-três (263) é dos telefones da zona central do Rio.

Aurélio (2.ª ed. revista e ampliada):
meia. Num. O número 6, usado na fala, para evitar confusão com o número três: O ônibus da linha quatro-três-quatro (434) e quatro-meia-quatro (464) unem o Grajaú ao Leblon.

Entretanto, ficou resolvida outra confusão: nem lá, nem cá, nem pelo caminho se escreve «meia-dúzia» com hífen. Consultados o Aurélio referido, a 6.ª edição do minidicionário Aurélio (2004) e o libérrimo Dicionário da Academia, não se vê a locução registada com hífen. O que se verifica é precisamente o oposto: dicionários como o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, ter, à cautela, um verbete autónomo para
Meia dúzia, s. f. Colecção de seis.│Pequena quantidade; pequeno número.

11.5.06

Gralhas místicas

Acautelem-se

«Entre os cabalistas e os hassidianos crê-se que o mal se infiltrou no nosso mundo através da frincha minúscula de uma simples letra errada», George Steiner.

Ortografia: autocaravana

Senhores revisores do DN

Cuo amentiae progressis estis? Perdão! Não vão alegar que não corrigem «auto-caravana» só porque o Dicionário da Academia o não regista, ou vão? É verdade que abrimos esta obra e ficamos a patinar entre a «autobomba» e o «autocarro», sem resolvermos a vida. De permeio, o Houaiss conseguiu enfiar mais quatro verbetes, um desnecessário aquém-Atlântico: «autobonde». Pois, sim, e a «autocaravana»? Bem, enquanto não é registada — e se falta espaço no Dicionário da Academia, eliminem verbetes absolutamente inúteis, resultado de precipitações pouco louváveis —, socorramo-nos da analogia: se se escreve «autocarro», por exemplo, está mesmo a ver-se que não se pode deixar de escrever «autocaravana».

«Com receitas de 11,6 milhões de dólares (9,2 milhões de euros), United 93 foi batido apenas pelo mais recente filme de Robin Williams — RV, comédia sobre uma família que decide passear no campo com uma auto-caravana problemática», «”United 93” obteve bons resultados na estreia», 2.5.2006, p. 30.

Léxico: flictena

Bolhas

É preciso vir um membro da Equipa Coordenadora da Assistência aos Peregrinos a Pé para a palavra «flictena» ser usada. Sem peregrinos deixaremos de ter flictenas, pelo menos nas plantas dos pés (palmas das mãos, pelmas dos pés, sabia?*). Também existe o diminutivo «flicténula».


Flictena s. f. Pequena ampola vesiculosa, transparente, formada pela epiderme descolada da derme, por hemorragia ou por serosidade.


* «Ser português é fingir que se sabe tudo mas querendo saber umas coisinhas ao mesmo tempo», «Estava-se mesmo a ver», Miguel Esteves Cardoso, Expresso/Única, 22.4.2006, p. 14.

Etimologia: peregrino

Imagem: http://www.marianistas.org

A caminho de Fátima

Agora que temos muitas centenas de peregrinos a caminho de Fátima, pus-me a pensar e a investigar. Ora vamos lá ver: porque é que alguns peregrinos são atropelados nas estradas? Pois simplesmente porque, etimologicamente, peregrino vem de peregrinus, a contracção latina de per (através) e ager (terra, campo), que originou o adjectivo pereger (viageiro, viandante) e o advérbio peregre (no estrangeiro), que por sua vez deu origem a peregrinus (estrangeiro) e peregrinatio (viagem ao estrangeiro). Para evitar maus encontros, os peregrinos iam pelos campos, atalhando caminho *. O mesmo étimo originou no francês peligrim, que evoluiu para o actual pélerin, e no inglês, inicialmente pilegrim e depois pilgrim.
Quem fala de peregrinos não pode deixar de referir os lugares santos, e entre eles Roma. E do nome desta cidade se formou romeiro, um sinónimo de peregrino. Os poetas também usavam romípeta.


* Como passavam semanas e meses no caminho, tinham de estar atentos às condições atmosféricas. Há mesmo um provérbio francês que diz: Rouge soir & blanc matin, c’est la journée du pélerin. Que é como quem diz: o céu avermelhado à tarde e esbranquiçado de manhã é presságio de bom tempo. Temos algo semelhante: «Vermelho no poente, no outro dia bom tempo.» Aliás, já que falo neste aspecto, devo dizer que as próprias gabardinas têm algo que ver com os peregrinos. De facto, a palavra «gabardina» vem do francês galvardine, «capa de peregrino», que veio do germânico wallevart, «peregrinação», de walle, «errar, vagabundear, andar sem destino», mais fahren, «jornadear, viajar». É verdade que alguns dicionaristas portugueses não concordam, afirmando que a nossa «gabardina» vem do espanhol gabardina (gabán + tabardina). Tal argumentação não me convence, pois que ficaria por explicar a proximidade do vocábulo francês gabardine, que consabidamente não provém do espanhol. A maioria das palavras começadas por w em alemão começa por g em francês, como acontece com esta, que anteriormente se grafava gaverdine. Em italiano fixou-se com a forma garvardina. Em inglês, temos Shakespeare, por volta de 1590, n’O Mercador de Veneza, a escrever gaberdine, para designar uma espécie de sobretudo ou capa usado por pobres, pedintes e, como estereótipo, pelos judeus. Numa fala de Shylock, lê-se: «You call me misbeliever, cut-throat dog,/And spit upon my Jewish gaberdine,/And all for use of that which is mine own.» Voltarei a este assunto.

10.5.06

Pronúncia: número


Alegrias

      Numa fila, ouço, extasiado, uma miúda com cerca de dez anos confessar para outras duas colegas ou amigas que andava a arranjar coragem para dizer à professora de Inglês que não se diz «númaro», mas «número». Eu nem quero saber como é que essa professora escreve a palavra. Até talvez a escreva correctamente, mas pronunciá-la como fica escrito é lamentável.
      Na universidade, também tive um coleguinha, menino bem, que hoje deve ser juiz severo e inflexível, que pronunciava «númaro», até que um assistente perdeu a paciência e lhe apontou o erro em plena aula.

Ortografia: Beijing ou Pequim?

Chinesices? Não!

Um leitor pergunta-me se deve «escrever-se Pequim, como sempre escreveu, ou Beijing, que actualmente lhe recomendam». Bem, caro amigo, para nós, Portugueses, como para todos, a cidade é a mesma, pelo que nada deverá mudar. Repare como também agora já se escreve com grande frequência Mao Zedong em vez de Mao Tsé-tung. Embora, na verdade, não se trate exactamente de um caso semelhante, já que estes últimos são dois nomes chineses, ao passo que «Pequim» é um nome português.
O que deve saber é que o Governo chinês adoptou, em 1979, uma transliteração oficial — conhecida como «Pinyin» — para caracteres latinos, baseada no dialecto de Pequim. Anteriormente, usava-se outro sistema de romanização, o de Wade-Giles, desenvolvido no final do século XIX por dois sinólogos britânicos, que continua, porém, a ser largamente usado.
«Beijing» e «Mao Zedong» são os nomes resultantes da utilização da transliteração pelo sistema Pinyin. Por isso, escreva como sempre escreveu, mas saiba mais sobre Pinyin.

Será brent, «brent» ou Brent?

Pluralidade

«O preço do petróleo atingiu ontem novos máximos em Londres com o barril de Brent a ser transaccionado a 69,97 dólares», «Petróleo faz subir preços dos voos», Correio da Manhã, 13.4.2006, p. 19.

«O brent do mar do Norte acabaria por corrigir perto do final da sessão e, à hora do fecho desta edição, negociava nos 69,4 dólares por barril», «Petróleo atinge novo máximo com queda de “stocks” de gasolina nos EUA», Diário de Notícias, Caderno Economia, Pedro Ferreira Esteves, 13.4.2006, p. 8.

«Os preços spot tanto do West Texas Intermediate (petróleo de referência no mercado de Nova Iorque) como do Brent (referência para o mercado europeu) ultrapassaram 67 dólares, e é possível que atingam [sic] os 70», «Preços do crude aproximam-se dos 70 dólares o barril», Público, 4.4.2006, p. 34.

«De uma média de 30,7 dólares por barril em 2004, o preço do barril de brent (o crude extraído do mar do Norte, que serve de referência para a economia portuguesa) passou para 41,3 dólares em 2005, tendo saltado para os 64,11 dólares desde o início do ano até agora», «Novos recordes no petróleo», Público/Dia D, 24.4.2006, p. 7.

Estamos perante um exemplo de derivação imprópria. Brent é o nome de uma jazida petrolífera descoberta ao largo de Aberdeen, em pleno mar do Norte. Por derivação, passou a designar uma mistura da produção de 19 campos de petróleo situados no mar do Norte. Logo, por essa razão e por se tratar de um estrangeirismo, o correcto é brent.

9.5.06

Léxico: gurcas, outra vez

Imagem: http://enquirer.com

Gurcas no Ikea



      Há dias, falei aqui da palavra «gurcas», recomendando então a forma aportuguesada. Pois no mesmo dia, a edição do Courrier Internacional publicou esta notícia:
      «”Gurkhas. Em Nottingham, Ikea rima com “gurkhas”. Perante o aumento dos roubos, a cadeia sueca recrutou antigos soldados nepaleses para vigiarem a sua loja de Giltbrook. “Não há dúvida de que a minha experiência nas operações de manutenção da paz me está a ser muito útil”, diz Lal Bahadur Gurung, ex-membro do 10.º Regimento.»
      Olha se se lembram de pôr gurcas no Ikea de Alfragide! Haverá gurcas em Portugal? Sikhs há alguns. E os Sikhs eram, juntamente com os Gurcas, as melhores tropas do Império Britânico. Até tenho um vizinho que é sikh. De vez em quando, vejo um turbante cor de laranja passar debaixo da minha janela. Nunca o vi, contudo, usar o kirpan, o punhal cerimonial que são obrigados a transportar (1). Há até uma gurdwara, um templo sikh, em Portugal. É a Gurdwara Sikh Sangat Sahib e fica na Rua Padre Américo Monteiro Aguiar, na Pontinha.


(1) Sim, obrigados. Lembram-se do indiano Fauja Singh, de 94 anos, o mais velho atleta a correr a Meia-Maratona de Lisboa? Pois bem, ele e os 20 atletas da equipa Sikh Runners trazem o seu kirpan à cintura. O kirpan não é, contudo, uma arma, mas um símbolo religioso. A prová-lo, o facto de recentemente o Supremo Tribunal do Canadá ter autorizado um jovem sikh a usar o kirpan na escola ao anular uma decisão em sentido contrário do Tribunal de Recurso do Quebeque. O acórdão do Supremo Tribunal, votado por unanimidade, fundamenta-se na Carta de Direitos e Liberdades contida na Constituição canadiana.

8.5.06

Léxico: palavras em -astro

Estrelas cadentes

Alguém traduziu o inglês rhymesters por poetastro, e muito bem. Logo me tentei lembrar de algumas palavras portuguesas terminadas em -astro que têm sentido pejorativo ou depreciativo. Ei-las:

criticastro, s. m. Crítico reles, sem categoria; maldizente.
filosofastro, s. m. Mau filósofo; aquele que, julgando-se filósofo, discorre sem acerto.
medicastro, s. m. Deprec. Indivíduo que se mete a tratar doenças sem ter conhecimentos e sem possuir diploma médico; curandeiro.
politicastro, s. m. Mau político, politiqueiro, político ignorante que quer parecer versado na ciência política.
teologastro, s. m. Deprec. Mau teólogo.

7.5.06

Etimologia: tablóide


Para o jornalista JMS
Tablóide

Esta palavra designa um formato de jornal surgido em meados do século XX, no qual cada página mede aproximadamente metade do tamanho de um jornal convencional, as notícias costumam ser tratadas com menor extensão e o número de ilustrações costuma ser maior que o dos jornais de formato tradicional. Nas palavras de Mário Mesquita a propósito dos 30 anos do jornal espanhol El País, que considera «o primeiro “tablóide” de referência no espaço europeu», o termo remete para «um certo tipo de jornal designado por popular-sensacionalista». Contudo, há tablóides e tablóides. O semanário Sol, dirigido por José António Saraiva, terá um formato tablóide.
O nome deste formato provém do inglês tabloid, pois que foi em Londres onde se desenvolveram os primeiros jornais desse tipo, mas a origem dessa palavra é um pouco mais antiga. Em 1884, o laboratório farmacêutico inglês Burroughs Wellcome & Co., actualmente fundido com a GlaxoSmithKline, registou a patente da palavra tabloid para um formato de medicamentos condensados, a partir da palavra francesa tablette, diminutivo de table (mesa), que se usava como nome de uma peça plana de lousa ou uma tábua de mármore que era usada antigamente para escrever. De facto, foi o americano Henry Wellcome (1853-1936), sócio de Burroughs, a inventar a palavra.
Por volta do século XVI, a palavra tablette já tinha sido usada em francês como nome de pequenas peças de medicamentos, sabão ou alimentos, com a ideia de que se tratava de doses reduzidas de qualquer das três coisas.
No começo do século XX, já se falava, em inglês, de tabloid journalism para designar inicialmente não um formato, mas a ideia de publicar notícias em versões condensadas, algo como «jornalismo em pastilhas».

Dicionário da Academia:
tablóide adj. m. e f. (Do ingl. tabloid). 1. Que tem a forma de uma pastilha ou comprimido. 2. Diz-se da publicação que tem um formato pequeno.

tablóide s. m. (do ingl. tabloid). 1. Comprimido; pastilha. 2. Publicação com um formato pequeno.

Petit Robert:
tabloïd ou tabloïde adj. et n. m. (mil. xxe; mot angl. [nom déposé, 1884]). Anglicisme. Pharm. (Rare). V. Comprimé. 2 Américanisme. Quotidien de demi-format. — Par ext. Périodique de petit format. En appos. Format tabloïd.

Webster’s Comprehensive Dictionary:
tabloid n. A newspaper, one half the size of an ordinary newspaper, in which the news is presented by means of pictures and concise reporting. — adj. 1 Compact; concise; condensed. 2 Sensational: tabloid journalism.

Tabloid n. Proprietary name for any of various medical preparations and drugs in concentrated or condensed tablet form.

Diccionario de la Lengua Española (RAE):
tabloide. (Del ingl. tabloid). m. Am. Periódico de dimensiones menores que las ordinarias, con fotograbados informativos.

6.5.06

Canterbury ou Cantuária?

Vejamos

«Archbishop of Canterbury», pergunta-me o leitor João Lopes, «pode traduzir-se por “arcebispo de Cantuária”?» Claro que pode — e deve. (Espero que a dúvida não seja sobre a tradução de archbishop…) Pese embora o riso de alguns, as boas tradições devem ser mantidas, e esta de continuar a usar topónimos estrangeiros aportuguesados é uma delas. Claro que devemos conformar-nos minimamente com a opinião dominante, sem descurarmos o que julgamos o bom gosto. Ninguém, que eu conheça, usa o proposto «Oxónia» em vez de Oxford, ou «Lípsia» em vez de Leipzig. Afinal, talvez se perceba melhor esta perspectiva se avaliarmos que os Ingleses não dizem nem escrevem «Lisboa» e «Porto», por exemplo, mas «Lisbon» e «Oporto». Ou seja, adoptam formas próprias de topónimos estrangeiros.

Plural das siglas, outra vez

Opa!

Pior do que ter um critério errado, é não ter critério nenhum. E as coisas nem sempre se equivalem. Vejam-se estes exemplos retirados da revista Visão (n.º 683, 6 a 12.4.2006):

«Louçã quer impedir que fisco financie OPA’s» (p. 120).
«As OPAs e a economia» (p. 154).
«Esse é já um efeito positivo das OPA» (p. 154).

Afinal, em que ficamos? Com s ou sem s, com apóstrofo ou sem apóstrofo? Todavia, na página 32 da mesma edição pode ler-se:
«Os americanos largaram os DVD domésticos e os ecrãs de plasma e correram aos multiplexes mais próximos, para verem A Idade do Gelo 2: Descongelados, cuja estreia mundial ocorreu no dia 30.»

5.5.06

Ortografia: «gurcas»

O que é nacional é bom


      A regra deverá ser a de só usar um termo estrangeiro se não tivermos um equivalente ou aportuguesado. Como a maioria das regras, tem excepções. Leia-se este excerto de um artigo publicado no jornal Público: «Katmandu, a capital, foi o destino mítico dos hippies dos anos 1960-70. Foi definido “como uma terra de paz em que todas as pedras e paisagens têm uma carga sagrada”. Tem o Monte Evereste. É o país dos gurkhas, tropa de elite britânica» («De onde vem e para onde vai o Nepal?», 26.4.2006, p. 15.)
Ora, a verdade é que a forma «gurcas» está dicionarizada e, mais importante ainda, na última semana li-a duas vezes. Numa só semana.

Gurcas, s.m. pl. Etnog. Tribos montanhesas das vertentes meridionais do Himalaia, junto ao Nepal.
In Grande Dicionário da Língua Portuguesa

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Poluição

      Recentemente, alguém me recordava os slogans recusados de Alexandre O’Neill, entre os quais o famoso «Passe um Verão desafogado», preterido a favor de «Há mar e mar, há ir e voltar». Hoje em dia, alguns dos nossos publicitários mal sabem escrever. Nem quero falar dos erros de lógica (o famoso «testemunho» da Danone, de que fiz um post, motivou mesmo uma carta da Danone Portugal, assinada pelo Senior Brand Manager Actimel e pela directora do Departamento de Qualidade, em que me agradecem as minhas «observações pertinentes e informadas», mas já tinham despendido 5,5 milhões de euros e não seria eu a estragar a festa), das puras tontices, mas apenas dos erros ortográficos. Veja-se este anúncio, espalhado por Portugal, da margarina Planta. Por vezes, ouve-se falar da responsabilidade social das empresas, mas nunca ouvimos dizer nada sobre a poluição visual que produzem nas cidades e nas vilas e o que se propõem fazer para lhe pôr cobro. Não posso querer, é claro, que qualquer empresa aspire a ser um membro de impacto zero na sociedade, porque esse é o oposto dos seus objectivos, mas parece exigível, no mínimo, algum respeito pela língua, património de todos.

4.5.06

Semântica: isolado

Irmãs, mas pouco

Num site espanhol que se dedica à língua, li um texto em que se punha em dúvida a vernaculidade do uso do adjectivo «isolado» para qualificar as povoações que estão afastadas. «A mí», diz o autor do blogue, «me sonó inmediatamente a anglicismo (isolated = aislado) pero acudí al diccionario por si acaso tenía un uso conocido en castellano, aunque fuese como pedante cultismo. Y no lo encontré.» Em português, pelo contrário, este uso está sobejamente registado. E até os dicionários o referem expressamente. No respectivo verbete, o Dicionário Houaiss regista: «uma casa isolada», «um lugar isolado» e «um vilarejo isolado». O Dicionário da Academia, desta vez, não me desamparou, dando exemplos semelhantes aos do Houaiss.

Etimologia: aleivosia

Toma lá

A palavra «aleivosia», tão da predilecção de escritores oitocentistas, provém do árabe hispânico al’áyb, e este do árabe clássico áyb, que significa «defeito, pecha ou nota de infâmia». Vou socorrer-me de Eça de Queirós, na magnífica carta a Camilo Castelo Branco (que nunca lhe chegou a enviar), para explicar melhor o seu significado:

«Aleivosia é um termo formidável e sombrio que, se me não engana o vetusto e único dicionário que me ampara nesta dura labutação do estilo, significa — “maldade cometida traiçoeiramente com mostras de amizade, insídia, perfídia, maquinação contra a vida e reputação de alguém, etc.” Tudo isto é pavoroso. Mas eu suponho que, sob essas vagas palavras de implicação e aleivosia, V. Ex.ª quer muito simplesmente queixar-se de que eu e os meus amigos o não consideramos um escritor tão ilustre, com um tão alto lugar nas letras portuguesas como o costumam considerar os amigos de V. Ex.ª Ora aqui V. Ex.ª se ilude singularmente.»

Léxico: «quiçá»

Samicas


      Não fico apopléctico nem nada que se pareça, mas não gosto nem um pouco da palavra «quiçá» (do latim quid sapit, «quem sabe»). Sempre que posso, e às vezes posso, altero para «talvez», e pessoalmente nunca a usei. Eu sei, eu sei: estou a contribuir para a morte de uma palavra, logo eu, o divulgador de palavras raras e em desuso. Penitencio-me, mas não vejo solução de compromisso possível. A minha intervenção, todavia, não é nem podia ser cega: ainda há dias alguém traduziu o inglês antigo mayhap por «quiçá» e eu não cortei, como não podia deixar de ser. Pelo contrário, achei que era a escolha mais apropriada no contexto. Mas estou sempre a temer que alguém use «samicas». Sei lá, há gente tão arreigada ao passado…

Derivação por parassíntese

E é pra já!



      Recentemente, um consulente brasileiro do Ciberdúvidas ordenava: «Quero três exemplos de derivação parassintética para a palavra “novo”.» Assim, sem mais, como quem diz: «Suas bestas, seus macrocéfalos desmiolados, passem já para cá o dinheiro!» Acho que, nas mesmas circunstâncias, não lhe responderia. Mas enfim, como não é comigo, eu também respondo à intimação. O que o consulente queria, decifraram os especialistas do Ciberdúvidas, era que lhe indicassem palavras derivadas por parassíntese da palavra «novo». Ao ler a resposta, lembrei-me de uma entrevista que a escritora Luísa Dacosta deu ao Expresso, na qual confessava que incorporara palavras inventadas pelos seus alunos nas obras que escreveu. Uma dessas palavras era «renovescer», em vez de «renovar». As árvores, escreveu uma menina numa redacção, estavam a renovescer. Ou seja, houve adjunção simultânea de um prefixo e de um sufixo a uma base, geralmente um adjectivo ou um nome: re+novo+escer. Ouçamos os nossos alunos.

3.5.06

Léxico: tirefão

Imagem: http://j.liennard.free.fr/

Olha o comboio!

      É o meu contributo não tanto para o TGV, mas para a língua: os parafusos que fixam os carris às travessas — às chulipas, pois claro — chamam-se tirefões, do francês tire-fond. Também temos, mais próximo do étimo, tira-fundo.

Etimologia: abacate


Com a verdade me enganas
     

      É sábia aquela autora que recomenda que nunca se deve levar uma criança a um hipermercado. Esquecido desta lição de bom senso e do próprio nome da autora, fui às compras com um sobrinho, criança de tenra idade. Na secção da fruta, por força o mafarrico quis comprar abacates. Achei que não e tentei argumentar: «Não vês que isto não são frutos, mas os tomates de um macaco sul-americano?» Eu sei que nunca devemos mentir, mas não é inteiramente mentira. A palavra «abacate» vem do nauatle ahuacatl, que significa precisamente testículo. «E são verdes?!»

«Pari passu»

Incerta

      Ultimamente, o Centro Comercial Colombo deixa-me aqui na caixa do correio a revista que publica quinzenalmente, a Certa. Se calhar fazem mal. Vejamos a edição n.º 69, de 25 de Abril a 7 de Maio. «Londres a par e passo», titulam na página 36. O texto é de Miguel Satúrio Pires. Acontece, porém, que a expressão correcta é «pari passu», que é uma locução latina e deverá ser grafada como tal. Se quiser escrever português, escreva «a par», «a passo igual», embora o contexto me pareça pedir outra coisa. E a propósito desta, lembro-me da também locução latina «grosso modo», que é quase sempre pronunciada e escrita como se de português se tratasse. Grossa asneira!

2.5.06

As várias acepções

Imagem: http://fumacas.weblog.com.pt/arquivo/083681.html


Puro e duro



      Entre os usos das aspas não está — e se estivesse, escrever estaria muito acima das nossas forças — o de assinalar que estamos perante uma acepção secundária de um vocábulo. Para começar, desde logo, porque não existe essa coisa de «acepção secundária». Alguns vocábulos são polissémicos, mas as acepções nos verbetes desses vocábulos poderão ter uma ordem diferente de dicionário para dicionário. Para me reconduzir ao exemplo que quero usar, pensemos no vocábulo «havano». Se consultarmos uma qualquer edição do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, lê-se: «havano, adj. e s. m. o m. q. havanês; diz-se de um charuto fabricado em Havana ou semelhante a este (De Havana).» Se optarmos, porém, por consultar o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências, podemos ver que as acepções se repartem por dois verbetes diferentes, e bem. Vamos ao exemplo.
      «Era uma vez Luciano Liggio, aliás Lucianeddu, pintor de quadros, fumador de “havanos” e leitor de textos de Santo Agostinho» (Expresso/Única, «Pobre mafioso», texto de Rossend Doménech, tradução de Aida Macedo, 22.4.2006, p. 26). Para que servem aqui as aspas? Afinal são havanos ou não são? Se não são, porque são apenas charutos semelhantes ao havano, isso está previsto na definição: «charuto fabricado em Havana ou semelhante a este». Ou pretender-se-á insinuar que o mafioso fumava outras coisas? Nesse caso, seria o verbo fumar que precisava das aspas. Mas não é assim, e por isso as aspas são completamente escusadas. Devo dizer que este uso abusivo das aspas não é tão raro quanto se possa pensar. Comecem a reparar nisso.


1.5.06

Ortografia: Chernobyl?


Um país, três línguas?

«Flores e velas relembram acidente nuclear de Tchernobil», Público, 27.4.2006, p. 26.
«Cancros de Chernobyl estudados em Portugal», Diário de Notícias, 26.4.2006, p. 14.
«Filhos de Chernobil», Expresso/Única, 22.4.2006, p. 45.

Parece, contudo, que não devia ser nada disto, mas Chornobyl, transcrito do vocábulo ucraniano Чорнобиль, com a ajuda da tabela de transliteração do alfabeto cirílico, acima. Seja como for, eu escrevo sempre «Chernobyl», embora não me repugnasse, naturalmente, escrever «Chernobil», por razões óbvias. Nunca escreveria, contudo, como faz o Público, «Tchernobil». E porquê, pergunta? É verdade que a primeira consoante é africada (1) (a mãe da minha sogra, beirã nascida em 1890, dizia convictamente «tchave»), mas que não tem actualmente representação gráfica nem linguística na nossa língua (2). O mais provável é o Público estar a seguir, como também faz em relação a «Tchetchénia», cegamente a transliteração francesa (3): «Le bilan de Tchernobyl s’alourdit en Europe», Le Figaro, 21.4.2006.

(1) Diz-se da consoante oclusiva de oclusão imperfeita.

(2) É de Paul Teyssier a afirmação (que não consigo localizar: será do Manual de Língua Portuguesa, da Coimbra Editora? Fica a dúvida) de que em galego-português e em leonês ocidental a consoante inicial seguida de l palatal deu origem à africada [ts], que foi transcrita em galego-português por ch, donde, por exemplo, chaga ([tsaga]), chave ([tsave]) e chama ([tsama]).

(3) Num site inglês, vejo (e traduzo): «CHERNOBYL, ver CZARNOBYL. Pequena cidade junto do rio Pripet, na Ucrânia, a 20 verstás [medida itinerária russa equivalente a 1067 metros] da confluência do Dnieper e a 120 de Kiev […].» A segunda forma pretende representar a africada, que nós não temos.