30.11.09

«Preço compreensivo»

Compreende-se, mas mal

      Um leitor pede-me que comente o seguinte assunto de uma circular normativa (n.º 10 de 2009) da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS): «Facturação e pagamento por preço compreensivo dos cuidados de diálise em programa ambulatório prestados a doentes crónicos (beneficiários do SNS ou de subsistemas públicos aderentes à modalidade de pagamento por preço compreensivo) em unidades convencionadas.» O leitor refere-se ao uso do adjectivo «compreensivo», pois que termina a mensagem perguntado-me: «Compreende-se?» Bem, «compreensivo», no contexto, só pode significar «que abrange ou contém». Parece-me, porém, que estamos perante uma expressão («preço compreensivo») anteriormente objecto de definição. Assim, neste diploma legal, publicado em 2008, lê-se que preço compreensivo se configura «como um preço global por semana e por doente hemodialisado, abrangendo todos os encargos relativos directamente às sessões de diálise e, bem assim, ao respectivo acompanhamento médico dos doentes, seu controlo e avaliação, aos exames, análises e medicamentos necessários ao tratamento da insuficiência renal crónica e suas intercorrências passíveis de serem corrigidas nas entidades convencionadas de diálise».

[Post 2862]

Tradução: «data mining»

Toma lá, dá cá

      «O que posso contar, baseando-me em outras declarações de responsáveis europeus, americanos, e da própria empresa, é o seguinte: os americanos afirmam que leram só 0,5% da informação a que acederam; afirmam que não fizeram garimpo de dados (data-mining) e muito menos espionagem industrial; afirmam que só consultaram informações sobre indivíduos suspeitos de terrorismo; e afirmam ainda que essa informação ajudou a evitar ataques terroristas» («Coisas que acontecem nas nossas costas», Rui Tavares, Público, 30.11.2009, p. 32). Fica a sugestão de tradução. Em troca, o reparo: é uma locução, não uma palavra composta.

[Post 2861]

Neologismo: «nutriterapia»

Fazer as coisas a meio

      «Tem anemia? Coma beterraba. Os seus rins funcionam mal? Consuma feijão. E que tal ingerir nozes para ajudar as funções cerebrais? Antes de prosseguir, é necessário avisar o leitor de que está a entrar num território desconhecido, e aparentemente estranho, que dá pelo nome de nutriterapia. Não vale a pena perder tempo a procurar a palavra num dicionário, pois não está lá» («Quando o teu alimento é o teu medicamento», Carlos Pessoa, Público/P2, 30.11.2009, p. 7). É verdade: não está nem talvez alguma vez venha a estar. Mais à frente, é dito que uma das receitas para combater o stress é «consumir millet, um cereal rico em fósforo, acompanhado de um legume rico em elementos de protecção do sistema nervoso, como a pastinaca (espécie de cenoura), nabo, amêndoas». Ora, millet, um termo francês, tem tradução: milho-miúdo, milho-painço. Se o jornalista se preocupou em ir ver se a palavra «nutriterapia» estava dicionarizada (ou foi mero palpite?), porque não procurou a tradução de millet?

[Post 2860]

Sujeito indeterminado

Vergonha nacional

      Ainda não tive oportunidade de ouvir o programa 59 de Em Nome do Ouvinte, em que Adelino Gomes iniciava, lê-se no blogue, a «abordagem de uma outra questão, objecto frequente de reparos de ouvintes: o carácter repetitivo das informações sobre trânsito». Como é habitual, nunca falam do mais grave. Mais do que a repetição, grave é dizerem (só sei que é um jornalista, não uma jornalista) repetidamente isto cada vez que há acidentes: «Neste momento, procedem-se a trabalhos de limpeza na via.» É uma vergonha um jornalista dar semelhante erro. Correcto é: «Neste momento, procede-se [ou procedem] a trabalhos de limpeza na via.» O sujeito é indeterminado e só há duas maneiras de o indeterminar: a) com o verbo na 3.ª pessoa do singular mais o pronome se; b) com o verbo na 3.ª pessoa do plural, sem o se. Vamos lá ver se aprende, senhor jornalista.

[Post 2859]

29.11.09

Neologismo: «spintrónica»

E mais uma     


      «Dizem que a próxima geração de computadores será “spintrónica” — ou seja, que a informação digital (os zeros e os uns) será transportada pelo spin dos electrões e não pela sua carga eléctrica, como é o caso hoje. O spin é um estado quântico dos electrões que só tem dois valores possíveis, o que o torna prático para codificar dados sob forma binária» («Computador do futuro pode ser “spintrónico”», Ana Gerschenfeld, Público/P2, 29.11.2009, p. 3). Não estou à espera que se lhe dê o nome de girotrónica, por mais português, mas os Espanhóis, por exemplo, escrevem espintrónica.

[Post 2858]

Neologismo: «republimonarquia»

E outra amálgama

      «O neologismo joumloukia — união das palavras árabes joumhouria (república) e mouloukia (realeza) — é atribuído ao jornalista argelino Mohamed Benchicou. Escreveu o ex-director do diário Le Matin, várias vezes preso pelos seus artigos críticos do poder: “Joumhouria [diferente de jamahiria, ou ‘Estado das massas’, que Kadhafi inventou na Líbia] é, literalmente, a apropriação de um país pelo povo (joumhour). Mouloukia é a apropriação de um país por um só homem: o malik, ‘proprietário’.” O conceito de joumloukia, ou “republimonarquia” começou a ser posto em prática na Síria, em 2000, quando Bashar al-Assad sucedeu ao seu defunto pai, Hafez» («As novas joumloukias (republimonarquias) do mundo árabe», Margarida Santos Lopes, Público, 29.11.2009, p. 18).

[Post 2857]

Neologismo: «açucarólico»

À falta de melhor

      Encontrei no Facebook os AA — Açucarólicos Anónimos. Mas estou a adiantar-me. «O Paquistão é uma nação de assumidos “açucarólicos”. O açúcar pode ser menos importante do que o trigo e o óleo alimentar na dieta alimentícia, mas tem grande influência na psicologia nacional. E, embora o sistema judicial seja visto como instrumento ao serviço de elites rurais no poder, os tribunais têm decidido a favor dos consumidores» («Paquistão teme que escassez de açúcar possa abalar o regime», Pamela Constable, Público/The Washington Post, 29.11.2009, p. 17). No original, o trecho em causa era este: «Pakistan is a nation of unabashed sugarholics, who heap the crystals in their breakfast tea and devour cakes at every special occasion» («In Pakistan, much bitterness over sugar crisis», 28.11.2009). É mais uma amálgama, à semelhança de workaholic (que alguns pretendem traduzir por «trabalhólico», quando já temos «ergomaníaco»).

[Post 2856]

28.11.09

Neologismo: «virtópsia»

Não se vão queixar

      «Não é para já, mas é provável que um dia deixe de ser preciso abrir um cadáver para conhecer a causa da morte. Michael Thali, da Universidade de Berna (Suíça), e os seus colegas, noticia o Telegraph, já realizaram centenas de autópsias virtuais, ou “virtópsias” [virtopsy], em pessoas que morreram subitamente ou de causas não naturais. Combinam scanner óptico 3D (para a superfície), TAC (para ver os ossos e o cérebro), RMN (para ver os tecidos moles), angiografia (para ver o sistema vascular) e biópsia (recolha de células com uma seringa). Tudo em 30 minutos. Segundo Thali, os militares norte-americanos já estão a utilizar uma versão mais simples do sistema para autopsiar soldados» («A “virtópsia” vai substituir a autópsia?», Ana Gerschenfeld, Público/P2, 28.11.2009, p. 3).

[Post 2855]

Lacunas lexicográficas


Pirilampos de plástico

      «Ao cair da noite o cenário quase parecia de filme: duas dezenas de bombeiros, várias ambulâncias do INEM, carros de desencarceramento do Regimento de Sapadores, óleo, vidros e pedaços de plástico pelo chão, e uma grua para retirar o carro do MAI. Pirilampos azuis rivalizavam com as iluminações de Natal que já enfeitam toda a Avenida da Liberdade» («Acidente que feriu responsáveis do MAI terá sido causado por excesso de velocidade», Maria Lopes, Público, 28.11.2009, p. 15). Esta é uma acepção arredada dos dicionários. Para estes, pirilampos são somente os insectos coleópteros.


[Post 2854]

Ortografia: «cranioencefálico»

Podia ter sido pior

      «A viatura do MAI ficou de tal modo destruída que foi necessário desencarcerar dois dos feridos, segundo o INEM. Os quatro feridos foram levados para a urgência do Hospital de S. José, onde Mário Mendes entrou com “perdas de conhecimento”, anunciou o INEM, e chegou a suspeitar-se de traumatismo crânio-encefálico» («Acidente que feriu responsáveis do MAI terá sido causado por excesso de velocidade», Maria Lopes, Público, 28.11.2009, p. 15). Mas concluiu-se que não podia ser, pois escreve-se cranioencefálico.

[Post 2853]

Actualização em 21.1.2010

      Mas também se encontra correctamente ortografado na imprensa: «Vítor Gonçalves, de 40 anos, sofreu um traumatismo cranioencefálico, diversos ferimentos nos braços e uma fractura num pé» («Quando soube pensei no pior», Luís Oliveira, Correio da Manhã, 21.1.2010, p. 26).





«Amplicíssimo»?

Simplex para o PGR

      Já aqui tenho referido como se forma o superlativo absoluto sintético de certos adjectivos. Sim, a forma mais abundante é pela adjunção do sufixo -íssimo ao adjectivo no grau normal. Mas há casos de superlativos eruditos que recuperam parte do radical latino, como chão (chaníssimo), respeitável (respeitabilíssimo), simples (simplicíssimo ou simplíssimo) e outros. Ora, ontem, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, falou aos jornalistas na Guarda, nas cerimónias comemorativas do 810.º aniversário da cidade e na atribuição do Prémio Eduardo Lourenço 2009 ao penalista Jorge Figueiredo Dias, e usou o superlativo «amplissimo». Donde vem a sílaba ci, pode saber-se? O adjectivo latino é amplus, a, um, ao contrário do étimo de «simples», que é simplex, plĭcis. Logo, o superlativo absoluto sintético de amplo só pode ser amplíssimo. Lapso ou convicção? Nunca saberemos (pelo menos sem escutas telefónicas).

[Post 2852]

27.11.09

Revisor filológico

Que revisores são esses que...

      Acabo de saber pelo jornal O Figueirense que hoje à tarde, no Casino Figueira, António Bettencourt, que é o revisor filológico da obra, apresentará o último romance de António Lobo Antunes, Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar. Já tinha lido no diário i um artigo de Luís Leal Miranda («António Lobo Antunes: Anatomia de um romance», i, 1.10.2009) em que se falava da função deste revisor: «Para preservar a vontade do autor, todos os livros são passados a pente fino por um revisor filológico — de seu nome António Bettencourt. A função deste último par de olhos é verificar que todas as frases, parágrafos e páginas correspondem à última vontade do seu criador.» Bem, a minha função é mais a de verificar que todas as frases, parágrafos e páginas correspondem às regras gramaticais. A minha conversa é com a gramática e com os dicionários. Com quem conversa o revisor filológico?

[Post 2851]

Sobre «incestuário»

Hitler e as vírgulas

      O original diz: «So he was ready to assume that promising children when found in low, nondescript families could be “incestuaries.” The word in German, as he coined it, was Inzestuarier. He did not like the more common term of such disgrace, Blutschande (blood-scandal), or as it is sometimes employed in polite circles, Dramatik des Blutes (blood-drama).» E o tradutor verteu assim: «Assim, estava pronto a assumir que as crianças promissoras, quando oriundas de famílias inferiores e indeterminadas, podiam ser “incestuárias”. A palavra em alemão, tal como ele a cunhou, era Inzestuarier. Ele não gostava do termo mais comum para desgraças destas, Blutschande, (escândalo de sangue), ou, como é por vezes empregue nos círculos educados, Dramatik des Blutes, (drama de sangue)» (O Fantasma de Hitler, Norman Mailer. Tradução de Octávio Gameiro e revisão de João Vidigal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007, p. 15). Incestuoso também a língua inglesa tem (incestuous). Naturalmente, a uma palavra cunhada tem de se fazer corresponder outra invenção. (Só um reparo, colega revisor: as vírgulas antes dos parênteses de abertura servem para quê?)

[Post 2850]

Léxico: «subtexto»

Fica a ideia     


      «Penso que todos os que estávamos presentes conhecíamos o subtexto subjacente a estes comentários» (O Fantasma de Hitler, Norman Mailer. Tradução de Octávio Gameiro e revisão de João Vidigal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007, p. 18). Ainda recentemente usei também o vocábulo «subtexto» para designar o conjunto das didascálias de uma peça dramática. E onde pára ele, nos dicionários? Em lado nenhum, os dicionários gerais não o registam. Com os vocábulos que faltam nos dicionários, eu fazia um dicionário.

[Post 2849]

Pronúncia do verbo «adquirir»

Distintos

      O advogado Magalhães e Silva, que foi candidato a bastonário da Ordem dos Advogados nas últimas eleições, foi ontem convidado de Mário Crespo no Jornal das 9, na Sic Notícias. Por duas vezes, pronunciou claramente o u do verbo adquirir. É, em toda a minha vida, a segunda pessoa a quem o ouço fazer. A outra também é da área do Direito: o Prof. Pedro Romano Martinez.
[Post 2848]

26.11.09

Léxico: «femicídio»


Imagem: 4.bp.blogspot.com/


E vão 45

      Nem na minha lista figurava. «O departamento de psicologia da Polícia Judiciária está a estudar um novo tipo de crime. Os investigadores chamam-lhe femicídio e definem-no como todo o homicídio nas relações íntimas. A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) já pediu ao Governo para introduzir o conceito no Código Penal» («Morte em relações íntimas pode vir a ser considerada “femicídio”», Sónia Simões, Diário de Notícias, 25.11.2009, p. 3).


[Post 2847]

Actualização em 1.5.2010

      No Público de hoje, foi usada a variante feminicídio: «Segundo o relatório elaborado pela Universidade Internacional de Valência e pelo Instituto Centro Rainha Sofia (ICRS), entre 2000 e 2006 os casos de feminicídios, a designação das Nações Unidas para a violência contra as mulheres, diminuiu na generalidade dos países do Sul do continente europeu e aumentou nalguns do Norte e do Centro, como a Áustria e em algumas das antigas repúblicas comunistas» («Mais violência contra as mulheres no Centro e Norte da Europa do que no Sul», Nuno Ribeiro, 1.5.2010, Público, p. 18).


Léxico: «sobreembalagem»

O excesso de vazio

      «“A sobreembalagem [espaço vazio entre a embalagem e o produto] e vários tipos de material são falhas comuns na concepção das embalagens”, o que, além de consumir muitas matérias-primas, dificulta a separação doméstica e a reciclagem, conclui um estudo da DECO PROTESTE ao impacto ambiental de 14 produtos embalados» («DECO alerta para abuso na sobreembalagem e diversidade de materiais», Jornal de Notícias, 24.11.2009). Li a notícia em vários meios, no jornal Metro, no sítio da Rádio Renascença, da TVI, e só no JN se ensaiou uma tentativa de definição — e está errada. Vejamos. O elemento de formação de palavras sobre- tem origem latina (super) e exprime a ideia de além de, posição superior, por cima, demasiado, como em «sobreexcelência», «sobreexaltação», «sobreexcitação»... (No sítio da Rádio Renascença, lê-se «sobre-embalagem», o que é incorrecto.) No caso, transmite claramente a ideia de excesso, pelo que a definição «espaço vazio entre a embalagem e o produto» não tem pés nem cabeça.

[Post 2846]

Conceito: «dífono»

Di quê?

      Andava aqui às voltas com os conceitos de digrama (que alguns borra-botas escrevem «diagrama») e de dígrafo para uma crónica que estou a escrever, e eis que encontro o conceito de dífono: o grafema que representa dois sons. Na língua portuguesa só temos um, que é o x quando usado com valor de /cs/, como nos vocábulos «complexo», «reflexo», «sexo», «táxi».
[Post 2845]

25.11.09

Ortografia: «ponto-morto»

Mecânica

      É como diz, caro M. L.: se se escreve marcha-atrás (e agora já penso que devemos grafá-la assim), então também devemos escrever ponto-morto. É como registam vários dicionários e como se vê na imprensa: «As posições são P, R, N, D, S e L. As primeiras quatro são comuns: travado (P), marcha-atrás (R), ponto-morto (N), e condução normal, em frente (D). Quanto ao S, é para uma circulação mais rápida, quando a economia de combustível não é importante, enquanto que o L serve para as subidas íngremes, como as mudanças ‘baixas’ de um jipe ou veículo pesado» («Pela ecologia», Emanuel Costa, Tabu, 3.07.2009, p. 58).

[Post 2844]

Ortografia: «sem-papéis» II

De certeza que não

      «O Presidente Nicolas Sarkozy rejeitou ontem a regularização maciça de imigrantes ilegais — que podem ser 400 mil em França. O debate foi relançado pela greve dos “sem-papéis” que trabalham em empresas francesas, que decorre desde 12 de Outubro, e pelo anúncio do ministro da Imigração, Eric Besson, de que iria preparar uma lei que previa o encerramento das firmas que empregassem imigrantes ilegais» («Governo quer punir patrões que empregam “sem-papéis”», Clara Barata, Público, 25.11.2009, p. 17). Será mesmo preciso copiarem-se no pior?

[Post 2843]

Tradução: «francité»


Que é isso?

      Éric Besson, o ministro da Imigração e da Identidade Nacional francês, quer agora saber o que é ser francês. «O ambiente nos media, percebe-se bem, não é favorável a este debate, que é recusado pela esquerda. Mas muitos intelectuais e académicos têm oferecido um contributo que passa mais por arrasar os motivos do debate do que por oferecer ideias para definir a “francidade” (“francité”, como se diz em vários textos publicados, num tom mais ou menos jocoso)» («Definir o que é ser francês servirá apenas para cortar na imigração?», Clara Barata, Público, 25.11.2009, p. 16).

[Post 2842]

Aportuguesamento: «paparaço»

Em 2019

      Lá para os lados de Sintra, nasceu uma nova palavra: melhor, foi aportuguesada uma palavra que lemos todos os dias: «Nessas revistas tenho descoberto o ritmo iô-iô. Para aparecer, a pessoa engorda e é apanhada por um paparaço. Depois, aparece e jura que vai emagrecer. Emagrece e aparece, pela 3.ª vez. Emagrece de mais e reaparece, como anorética, pela 4.ª» («Um pânico feliz», Miguel Esteves Cardoso, Público, 25.11.2009, p. 43). De paparazzo, paparaço. Assim, já podemos ter um plural regular — paparaços —, e não a estupidez *paparazzis. Vai pegar? Falamos daqui a dez anos. (Mas é anoréctica ou anoréxica, como já aqui vimos.)

[Post 2841]

Semântica: «fenómeno»

Veja bem

      Uma leitora, professora de Português reformada, diz-se indignada por ter ouvido na Antena 1 que o PSD quer constituir uma comissão parlamentar eventual para acompanhar o fenómeno da corrupção. «Fenómeno, tanto quanto sei», argumenta, «só se aplica à Natureza; a corrupção é um acto voluntário do Homem.» Lamento contrariá-la, mas uma das acepções do vocábulo «fénomeno» aplica-se inteiramente no contexto: «tudo o que a nossa consciência ou os nossos sentidos podem apreender».

[Post 2840]

Léxico: «mobilete»

Mais uma

      «Um homem de 56 anos apresentou na última semana uma queixa relativamente a outro homem (que só conhece pela alcunha) que alegadamente terá caído da sua mobilete» («Agredido por homem que tinha tentado ajudar», Jornal do Fundão, 19.11.2009, p. 9). Mobilete começou por ser uma marca de um ciclomotor que existiu no Brasil. Tinha 49,9 cc, e por isso não exigia habilitação nem placa de matrícula. À semelhança de outras marcas, vimo-lo aqui recentemente a propósito de chiclete, tornou-se nome comum, fenómeno designado derivação imprópria.

[Post 2839]

24.11.09

Infinitivo: qual deles?

Podes crer

      «Markie, tu estás aqui para ser um estudante e para estudar o Supremo Tribunal e para estudar o Thomas Jefferson e para te preparar para entrar na faculdade de Direito» (Indignação, Philip Roth. Tradução de Francisco Agarez e revisão de Clara Joana Vitorino. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 132). Se for regido de preposição (neste caso, «para»), o infinitivo pode ser flexionado ou não. Logo, o tradutor poderia ter optado por escrever: «Markie, tu estás aqui para seres um estudante e para estudares o Supremo Tribunal e para estudares o Thomas Jefferson e para te preparares para entrar na faculdade de Direito.» E seria mesmo desta forma que eu poria a falar a mulher de um talhante, kosher ou não.

[Post 2838]

Léxico: «grafitar»

Picha-me aí essa parede

      «As latas de spray no chão, junto à mochila, despertam olhares curiosos em alguns clientes do supermercado. Nomen vai preenchendo com tinta os espaços entre as linhas desenhadas na parede de betão que separa o parque de estacionamento da zona comercial do IC19. Desta vez não tem que se preocupar com a polícia, uma vez que está a graffitar muros do itinerário que liga Lisboa a Sintra por conta da Estradas de Portugal» («IC19 vai ter muros decorados com graffiti», Luís Filipe Sebastião, Público, 24.11.2009, p. 25). «Graffitar»? Se para o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora grafitar é somente «revestir de grafite (a superfície de um objecto) para o tornar condutor eléctrico» ou «lubrificar com pasta de grafite», para o Dicionário Houaiss também é «executar grafites em; riscar, rabiscar, pichar». Mais um erro do Departamento de Dicionários da Porto Editora, tanto mais que regista, por exemplo, «grafiteiro», o «autor de grafitos». Erro, sim. Leiam o que escrevem Maria Helena Mira Mateus e Alina Villalva na obra O Essencial sobre Linguística (Lisboa: Editorial Caminho, 2006) sobre os dicionários: «A ausência de uma palavra num determinado dicionário não deve, pois, ser interpretada ligeiramente como indiciadora da sua inexistência: pode tratar-se de uma palavra que cai fora do escopo do dicionário; que, por erro, não foi incluída; ou, ainda, que não precisa de estar dicionarizada por ser um produto previsível dos recursos morfológicos disponíveis (como sucede com a maioria dos advérbios em –mente, como necessariamente, ou com diminutivos em –inho, como livrinho)» (pp. 85-86).

[Post 2837]


Actualização em 28.11.2009

      «Convidaram alguns bons grafitters (eu cá preferia grafitistas ou grafitógrafos) para pintar (e não decorar) alguns muros. Acho bem. Acho que a única maneira de impedir os taggings mais feios (a que chamaria rubricas murais) é apelar ao gosto dos rubricadores e assinantes» («Em algo bonito», Miguel Esteves Cardoso, Público, 28.11.2009, p. 51).

Ortografia: «lipoaspiração»

Mas não é

      «Isto para pseudo-embelezar idiotas de ambos os sexos que provavelmente gastam fortunas para que lhes seja extraída a gordura, por lipo-aspiração, sem ter sequer o cuidado de pedir que a ponham num garrafãozinho, para levar para casa» («Da gordura humana», Miguel Esteves Cardoso, Público, 24.11.2009, p. 39). Talvez tenha sido culpa do revisor, mas está errado: é lipoaspiração. Nunca o antepositivo lipo- é separado por hífen do segundo elemento. A propósito: já viram a diferença entre lipoaspiração e lipoescultura? Esta é uma espécie de transfusão autóloga.

[Post 2836]

«Da cabeça aos pés»

Comparemos

      No exame nacional de Francês de 1997, pedia-se aos alunos que traduzissem para português um pequeno texto de Jean Guéhenno (1890−1978), extraído da obra Journal des années noires. Esta era uma das frases: «Je te vois de pied en cap, dans ton uniforme un peu fripé désormais et pas mal élimé aux genoux et aux coudes […].» Reparem na expressão «de pied en cap». Da cabeça aos pés ou de alto a baixo, traduziríamos nós. Em latim, por exemplo, também havia pelo menos duas maneiras de dizer o mesmo: a vertice ad talos e a calce ad caput. O que é interessante é isto: a língua inglesa foi buscar a expressão ao francês médio e hoje regista o advérbio cap-a-pie, derivado de de cap a pé. Actualmente, porém, como pudemos ver, os termos inverteram-se na língua de origem: em vez de ser da cabeça aos pés, é dos pés à cabeça. A língua inglesa tem, tem sempre, várias formas de dizer o mesmo: from head to toe, from head to heels...

[Post 2835]

Abreviaturas e plurais


Nunca visto

      De vez em quando, leio o semanário Jornal do Fundão. Quanto à correcção com que a língua é usada, é tão bom ou tão mau como outros — com a diferença de que tem revisor. Entre muitos, muitos erros, a minha atenção foi atraída para o que a imagem ilustra: a abreviatura da palavra «telefones» e o plural da palavra «fax». Valha-me Deus, caro Jerónimo Rondão Clemente, senhor revisor, então acha mesmo que a abreviatura de «telefones» é *telf.’s e o plural de «fax» é fax’s? E onde é que aprendeu isso?


[Post 2834]

Nome de doenças II

Hão-de aprender

      «Vítima de um Acidente Vascular Cerebral, o idoso vivia debilitado» («Taxista mata idoso», Henrique Machado, Correio da Manhã, 21.11.2009, p. 11). É a terceira vez que abordo aqui esta questão. O nome das doenças, repito, não é grafado com inicial maiúscula. No caso, admito que a confusão se deva ao facto de a doença ser mais conhecida pela sua sigla, AVC. O mesmo se passa com o desdobramento do acrónimo (ou sigla, para alguns) ONG, o que leva alguns falantes, jornalistas, a escreverem *Organizações Não Governamentais.

[Post 2833]

23.11.09

Sobre «overbooking»

Estou que não posso

      Ainda não me recompus completamente das opiniões abstrusas do provedor do ouvinte da RDP (pobre ouvinte!) sobre o uso de estrangeirismos na rádio. A linguista Regina Rocha disse que «overbooking em português significa “sobrelotação”... Mas soa pesada, horrorosa…». Réplica do provedor: «O avião está sobrelotado e as pessoas pensam assim: mas porquê? Leva bagagem a mais? E quando a gente ouve “overbooking”, sabemos logo: “Olha, estão lá outras pessoas que não cabem lá”.» Pois eu, e garantidamente a maioria dos falantes, penso algo diferente: que quem usa estrangeirismos desnecessários é pedante e desconhece a língua portuguesa. Se se tratar de um jornalista, lamento também o azar dos destinatários, leitores, ouvintes ou telespectadores.

[Post 2832]

«Dupla ocultação»

Mais inglesias

      Um tradutor, Gonçalo Sousa Pinto, pergunta ao Ciberdúvidas se não deveria traduzir a expressão inglesa «double blind trial» por «ensaio clínico com dupla ocultação», em vez de traduzir como é habitual: «duplo cego» «duplamente cego», «de duplo-cego», «com duplo cego», etc. O consultor, Carlos Marinheiro, responde que o «Dicionário Eletrônico Houaiss regista o termo duplo-cego (da medicina), considerando-o redução de “método duplo-cego”; a comunidade científica desta área também o usa generalizadamente, de modo que não me parece que haja vantagem em chamar-lhe “ensaio clínico com dupla ocultação”. O termo está praticamente consagrado pelo uso.» Bem, o que vejo é que a comunidade científica também usa generalizadamente «dupla ocultação» — que o consulente afirma, e bem, que está menos colado ao original inglês. Assim, à locução ensaio clínico aleatorizado com dupla ocultação (que é utilizada aqui, por exemplo), aposto que o consultor prefere ensaio clínico randomizado de duplo-cego. O que posso afirmar é que é muito frequente ver nas traduções «dupla ocultação» para «double-blind». Apesar de tanta certeza, o consultor ignorou o último pedido do consulente: «Agradeço o vosso esclarecimento e também que me possam indicar alguma publicação ou site de referência em português para o léxico próprio dos ensaios clínicos e publicações científicas da área da saúde.» Talvez não tenhamos tal, mas temos textos de consultores científicos em que se usa a locução «dupla ocultação».

[Post 2831]

Mácron e braquia

Duração das vogais

      Maria Helena Mira Mateus e Alina Villalva lembram, e é útil comprová-lo, que em português «o tom e a duração não permitem distinguir significados», ao contrário de outras línguas, como o mandarim e o latim. Nesta língua, «a duração da vogal numa mesma sequência pode indicar a função sintáctica da palavra — rosă, com vogal final breve, é nominativo (tem função de sujeito) e com vogal final longa, rosā, é ablativo (tem uma função complementar)» (O Essencial sobre Linguística. Lisboa: Editorial Caminho, 2006, p. 60). Na verdade, com vogal final breve tanto pode ser nominativo como vocativo, o que não altera em quase nada a verdade da afirmação. O mandarim tem quatro tons, mas o cantonês e o vietnamita, por exemplo, com seis tons, ainda são mais ricos. Já agora, para os leitores que desconhecem tudo do latim, convém dizer que apenas em obras didácticas se costuma apor um acento sobre as vogais para indicar a sua duração. As vogais longas são representadas com o acento conhecido como mácron — ā, ē, ī, ō, ū —, e as breves são marcadas com um sinal chamado braquia: ă, ĕ, ĭ, ŏ, ŭ.

[Post 2830]

Selecção vocabular

Esboços e rascunhos

      «A maioria democrata, responsável pelo rascunho da proposta, fez valer a sua força para fazer avançar o processo» («Senado ultrapassa primeiro obstáculo da reforma do sistema de saúde norte-americano», Rita Siza, Público, 23.11.2009, p. 16). Rascunho parece-me a primeira palavra que nos ocorre quando queremos traduzir a palavra inglesa draft. Em português, ocorre com muito mais frequência «esboço de proposta». Draft também se pode traduzir por «anteprojecto», como na expressão draft bill.

[Post 2829]

22.11.09

Abatjoureiros e revisores

Quebra-luzeiros

      Qual é a primeira profissão da Classificação Nacional de Profissões (CNP), sabem? Abatjoureiro. Muito pior, acho eu, do que dizer que se trabalha num centro de apoio ao cliente (mas o provedor do ouvinte da RDP prefere todos os estrangeirismos à língua nacional e, neste caso, prefere call center). Mas isso agora não interessa. Os revisores de provas fazem parte desta lista? Sim, senhor. Figuram assim: Codificadores, Revisores de Provas e Similares. Portanto, o nosso sindicato exclue outros revisores: os revisores oficiais de contas e os revisores de bilhetes dos caminhos-de-ferro. Damo-nos melhor com os codificadores e com os nossos similares. Na obra O Essencial sobre Linguística (Lisboa: Editorial Caminho, 2006), Maria Helena Mira Mateus e Alina Villalva afirmam que a «profissão de linguista é tão recente que, em Portugal, ainda não aparece registada» na CNP.

[Post 2828]

Corpo tipográfico

Com um tipómetro

      «O Aviso n.º 4/2009 obriga as instituições a prestar diversas informações numa ficha de informação normalizada num momento anterior ao do depósito e, para evitar as tão mal-afamadas “letras pequenas”, a entidade presidida por Vítor Constâncio vai ao ponto de definir que o tamanho da letra não poderá ser inferior a corpo 9» («Maior rigor nos depósitos bancários», Diogo Lopes Pereira, Diário de Notícias/DN Bolsa, 20.11.2009, p. 11). Doravante, os advogados têm de munir-se de um tipómetro — uma régua para verificação das medidas tipográficas — para verificarem o corpo do texto dos contratos bancários. O que irá decerto servir de pretexto para o aumento dos honorários...

[Post 2827]

Nomes chineses

Chineses, coreanos...  


      «Uma semana depois de ser demitido, MacArthur depôs perante uma sessão conjunta do Congresso; defendeu o bombardeamento das bases aéreas da China na Manchúria e o uso das tropas nacionalistas chinesas de Chiang Kai-Shek na Coreia, antes de concluir o discurso com a sua famosa despedida, comprometendo-se a “pura e simplesmente desaparecer, um velho soldado que tentou cumprir o seu dever de acordo com a luz que Deus lhe deu para entender esse dever”» (Indignação, Philip Roth. Tradução de Francisco Agarez e revisão de Clara Joana Vitorino. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 37).
      No Manual de Redação e Estilo do jornal Estado de S. Paulo, pode ler-se: «O Estado adota a grafia atualizada (e convencional) dos nomes chineses: Deng Xiaoping, Zhao Ziang, Hua Kuofeng. 2 — Exceções: Mao Tsé-tung, Chiang Kai-chek e Chu En-lai. 3 — Nos nomes em que haja um elemento composto, o segundo termo tem inicial minúscula: Tsé-tung, Kai-chek, En-lai, Yang-tse (rio), Kai-fong (cidade), Ki-lin (província). 4 — Como o sobrenome, nos nomes chineses, vem antes do nome, nos títulos ou na segunda referência dos textos use Mao (e não Tsé-tung), Deng (e não Xiaoping), Chu (e não En-lai), etc.»
      Com nomes coreanos, também é habitual proceder-se da mesma forma: «A última paragem, ontem em Seul, velho aliado dos EUA, foi uma pequena amostra do que havia sido toda a semana. Depois de uma reunião com o Presidente sul-coreano Lee Myung-bak, Obama visitou os militares americanos estacionados na sombra da ameaça nuclear da Coreia do Norte» («Obama deixa a Ásia com uma mão-cheia de quase nada», Hugo Coelho, Diário de Notícias, 20.11.2009, p. 29). Já agora, aproveito para dizer que, segundo as normas de catalogação, em relação aos autores chineses não se inverte o nome.

[Post 2826]

O latim na universidade

Forma de citação

      Com o semestre já bem adiantado, muitos estudantes universitários que escolheram o Latim ainda não sabem que a forma de citação e de enunciação dos verbos nesta língua não é igual à portuguesa (o infinitivo impessoal), antes se faz pelos chamados tempos primitivos: 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo, 2.ª pessoa do singular do presente do indicativo, o infinitivo presente, o perfeito do indicativo e o supino. Como, por exemplo, instillō, ās, āre, āvi, ātum, «derramar, instilar».

[Post 2825]

O latim nos jornais

Para a próxima, já sabe

      «Com Pergolesi, aplica-se como uma luva o conhecido dictum, segundo o qual “partem cedo aqueles que os deuses amam”. […] Em 1752, uma companhia itinerante de ópera italiana apresenta na parisiense Académie Royale o seu intermezzo (pequena ópera de cariz ligeiro) La serva padrona» («Uma vida demasiado breve salva pela fama póstuma», Bernardo Mariano, Diário de Notícias, 20.11.2009, p. 54). O jornalista explica, e muito bem, o que significa «intermezzo», mas usa uma palavra em latim, dictum, como se esta fosse a língua materna dos leitores. Dictum significa «sentença, dito engenhoso».

[Post 2824]

Léxico: «dismorfofobia»

Imagem: http://www.italway.it/

Azar

      «Aconteceu em 2006. Uma jovem de Penafiel que sofria de depressão e dismorfofobia (fobia de deformação física) recorreu a um hipnoterapeuta que numa das consultas, aproveitando o seu estado hipnótico, abusou sexualmente da paciente» («Psiquaitra violou paciente que estava grávida», Alfredo Teixeira, Diário de Notícias, 20.11.2009, p. 22). Explicado, como eu recomendo sempre, mas mal explicado. O Dicionário Houaiss, por exemplo, define assim a dismorfofobia: «medo patológico de ser ou se tornar disforme».


[Post 2823]

21.11.09

Ortografia: «mal-empregado»

Mal-empregado!

      No programa 55 de Em Nome do Ouvinte, a linguista Regina Rocha explicou porque se deve usar mal-empregado, e não, como um ouvinte pretendia, mal empregue: «Ou seja: deverá dizer-se, neste caso, realmente “mal-empregado”. Por exemplo: “Com o currículo que tem, aquele rapaz é mal-empregado a servir café.” Ou então: “Este casamento não vai dar certo. Aquela rapariga é mal-empregada naquele homem.” Esta expressão “mal-empregado” ou “mal-empregada” foi sendo utilizada antes do aparecimento do tal termo “empregue”. E ganhou um significado próprio. Significa, sei lá, “imerecido”, “desaproveitado”, “desperdiçado”, constituindo-se mesmo como um termo composto — que aliás até vem já nos dicionários como adjectivo até com hífen: mal hífen empregado. Ora portanto temos aí já um termo com uma identidade própria, pelo que não ficaria aqui bem utilizar “mal empregue”. Sim, alguns dicionários registam-no. No Dicionário Houaiss: «que poderia ter melhor uso ou destino». No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora: «empregado em vão; mal aplicado; desperdiçado».

[Post 2822]

20.11.09

Melhor/mais bem

Mais uma lição

      «O “homem” (no sentido “velvetundergroundsiano” e heroinómano de Waiting for the man) podia ter-se escondido “mais bem”. Melhor, diriam algumas almas gramaticalmente enganadas e mais escravas do momento» («O peixe dos arguidos», Miguel Esteves Cardoso, Público, 19.11.2009, p. 39). E bem enganadas, pelo menos pela eufonia e pelo uso, pois melhor é comparativo de bom e mais bem é comparativo de bem. Assim, «ter-se escondido mais bem».

[Post 2821]

19.11.09

Léxico: «esparrela»

Todos caem

      «A GNR de Faro deteve em Almancil dois homens por captura ilegal de aves. Os detidos tinham na sua posse 32 armadilhas e 14 aves, entre tordos-pintos, toutinegras-debarrete-preto, felosas-assobiadeiras e piscos-de-peito-ruivo. Os suspeitos, de 34 e 57 anos, usavam armadilhas artesanais, também conhecidas como esparrelas» («Dois detidos no Algarve por captura ilegal de aves», Público, 19.11.2009, p. 27). Mais usada, na oralidade, é a expressão «cair na esparrela», que significa ser logrado. Os dicionários dizem que o vocábulo é de origem obscura.

[Post 2820]

18.11.09

«Desamigar», uma proposta

Chegam atrasados

      No Ciberdúvidas, vi agora, também falam das novas palavras do New Oxford American Dictionary, e especificamente da palavra do ano, unfriend. E rematam: «Ficamos a aguardar, então, a recepção de perguntas sobre como traduzir ou adaptar a palavra unfriend para português.» Bem, como vimos, é tão intuitivo que não me parece que venha a registar-se uma avalancha de perguntas. O jornalista do Público também indicou a possível tradução: «desamigar». O vocábulo, além disso, já está registado nos dicionários, como o Houaiss: «interromper a amizade (de); desamistar(-se), desavir(-se)» e «cessar a relação (entre amantes); separar(-se)», ambos transitivos directos e pronominais.

[Post 2819]

Novas palavras inglesas

Desamigar

      Com a devida vénia, reproduzo, pela sua importância, um artigo publicado hoje no jornal Público, relativo às novas palavras registadas no New Oxford American Dictionary: «Unfriend — verbo, retirar alguém de uma rede social da Internet como por exemplo o Facebook, removendo o seu estatuto de “amigo”. Unfriend, que se poderia traduzir muito livremente por “desamigar”, é a palavra do ano 2009, segundo o New Oxford American Dictionary.
      A palavra é baseada no universo do Facebook, que tem mais de 300 milhões de utilizadores em todo o mundo, e ganhou a outras concorrentes como sexting (envio de sms sexualmente explícitos), funemployed (pessoa que aproveita estar desempregada para se divertir) ou birther (refere-se a quem acredita nas teorias da conspiração sobre a autenticidade do certificado de nascimento do Presidente norte-americano, Barack Obama).
      No blogue do New Oxford American Dictionary chama-se ainda a atenção para palavras compostas a partir de outras, destacando as relacionadas com o serviço de microblogging Twitter (twiterature, tweetaholic) e com o Presidente Obama (Obamanomics, Obamacons, Obamalicious).
      Noutros anos, o dicionário escolheu palavras como hypermiling (estratégias de aumentar o rendimento do combustível de um carro, poderia ser traduzido como “hiperquilometrar”), locavore (pessoa que consome apenas comida produzida localmente, em português seria qualquer coisa como “locávoro”), carbon neutral (neutro em termos de emissões de dióxido de carbono) ou podcast (registo áudio acessível através da Internet).
      As palavras do ano são incluídas nas versões actualizadas do New Oxford American Dictionary on-line. O anúncio da palavra do ano é sempre uma altura para discutir tendências sociais em blogues, jornais, no Twitter, até no Facebook. Nos últimos anos as palavras escolhidas têm vindo de áreas como economia, ecologia e tecnologia» («Unfriend é a palavra do ano e nasceu no Facebook», M. J. G., Público, 18.11.2009, p. 18).

[Post 2818]

17.11.09

Ortografia: «neonatologia»


Eles sabem lá

      «Acha possível que um dia», pergunta-me um leitor, «nas maternidades, os Serviços de Neonatalogia corrijam as tabuletas?» Não vejo que esse dia chegue. Na Universidade de Coimbra, a única portuguesa a figurar em tabelas internacionais dos melhores estabelecimentos de ensino superior, em Pediatria também há aulas de «Neonatalogia». Tantas sumidades por ali passam e nenhuma vê o disparate? Donde vem aquele a, se a formação da palavra é neonato+-logia. (No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora lê-se que os elementos são neo-+nato+-logia. Mas como pode ser assim, se existe o vocábulo, adjectivo e substantivo, «neonato»?) Ultimamente tenho visto erros sem conta em manuais disponibilizados pelos docentes de certas disciplinas numa universidade cujo nome agora não me ocorre.



[Post 2817]

«Eficaz»/«eficiente»

Eficácia versus eficiência     


      No metro, dois estudantes universitários, um branco e um negro, discutiam acaloradamente a resposta a uma questão de um teste, talvez de Economia ou de Gestão. A empresa referida seria eficaz ou eficiente? Um, o branco, dizia que tinha respondido, e era, eficaz, porque a empresa geria bem os recursos. O outro dizia o contrário: eficiente é que diz respeito aos recursos. Estive para intervir, como tantas vezes faço, mas não o fiz. Embora tenha estudado os conceitos em disciplinas económicas, nem é preciso tanto: os conceitos tal como os registam os dicionários gerais chegam. Assim, para o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, eficiência é o «poder de realizar (algo) convenientemente, despendendo de um mínimo de esforço, tempo e outros recursos». Para o mesmo dicionário, eficácia é a «força para produzir determinados efeitos». Verba mollia et efficacia, diziam os Romanos. Ou seja, palavras suaves e eficazes, que produzem o seu efeito. Os conceitos andam, é verdade, muito confundidos.

[Post 2816]

«Meios de progressão»

É o progresso
     

      «Foram sete dias a percorrer quase ininterruptamente 900km [sic], quase sempre fora da estrada e recorrendo à orientação. A pé, de BTT e de canoa (sem desdenhar de outros meios de progressão, como os patins e a natação, por exemplo), 59 equipas (de quatro elementos) lançaram-se a caminho para conquistar o Campeonato Mundial de Corridas de Aventura 2009, que este ano decorreu em Portugal» («Helly Hansen, uma equipa de resistentes de nível mundial», A. M. P., Público, 15.11.2009, p. 35). Não sei, mas a expressão «meios de progressão» parece ter origem militar. O Dicionário Houaiss apenas regista as locuções «progressão aritmética», «progressão geométrica» e «progressão harmónica».

[Post 2815]

«Anóxia» e «anoxia»

Diga lá, João

      «O bebé que morreu no útero da mãe em Portalegre terá sido vitimado por alterações na circulação sanguínea que apontam para mais um caso de morte fetal súbita. O relatório da autópsia é inconclusivo quanto às causas que provocaram aquelas alterações (anoxia aguda)» («Autópsia revela que feto de Portalegre foi vítima de morte súbita», Natália Faria, Público, 17.11.2009, p. 9). O vocábulo tanto se pode escrever anoxia como anóxia — não podemos é lê-lo da mesma maneira. Gostava de saber que palavra estava escrita no guião que João Adelino Faria, o pivô da RTPN, leu ontem no À Noite, as Notícias. A forma que mais se encontra é anoxia, mera variação prosódica de anóxia, que nada tem que ver, em termos de etimologia, com vocábulos terminados em -ia, como anorexia.

[Post 2814]

Género de «tesão» II

Rijezas gramaticais     


      Na sua crónica de hoje, Miguel Esteves Cardoso também fala da campanha da Junta da Extremadura, e remata assim o seu texto: «A puberdade leva à loucura hormonal e, mesmo que não ensinasse nada de novo aos loucos e às loucas adolescentes, pelo menos o carácter oficial da campanha contribuirá para remover qualquer culpabilidade — e mesmo um pouco daquela constante tesão» («Mãos à obra», Público, 17.11.2009, p. 40). Pode dar jeito imaginar que o vocábulo «tesão» é do género feminino — mas não é. Vimo-lo aqui.


[Post 2813]

16.11.09

Léxico: «tabaco picado»

Mar picado? E tabaco?

      «Se a receita fiscal tende, este ano, a ser inferior, assim como os cigarros introduzidos no consumo, por que razão acredita a Tabaqueira que o mercado está a estabilizar? Porque, e também como diz o presidente da Associação de Grossistas de Tabaco do Sul, João Passos, “2009 foi um ano atípico”: “Os Governos não puderam pôr em prática a gula fiscal relativa ao tabaco, até porque havia uma grande diferença entre Portugal e Espanha no que toca ao preço do tabaco”, afirma. Acrescenta que o impacte da crise se nota “numa maior flutuação semanal”: “No fim do mês, as nossas vendas são 10 por cento inferiores ao início, mas há deslocalização para os picados [tabaco de enrolar], que duplicaram as vendas. “O comércio de tabaco picado aumentou 100 por cento”, diz, explicando que, em vez de deixarem de fumar, os consumidores optam, por exemplo, pelo tabaco de enrolar, por ser mais barato» («Crise económica leva fumadores a optar pelos cigarros de enrolar», Maria João Lopes, Público, 16.11.2009, p. 8). Alguns dicionários, como Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, registam que picar é «cortar em pequenos bocados (alimentos)», mas é claro que não se aplica apenas a alimentos.


[Post 2812]

Formatação de texto

«Eu ainda sou do tempo...»

      Clara Pinto Correia, que tem 56 livros publicados, comparou, no programa Os Dias do Futuro, como era escrever antes e como é agora: «Hoje em dia espera-se de nós que a gente entregue o romance à editora num instantinho, já todo formatado, com as imagens lá inseridas, com as legendas postas, com as notas de rodapé já todas muito bonitinhas... […] nós temos de trabalhar que nem uns cães.» Com 56 livros publicados, já devia saber que quase toda — repito: quase toda — a formatação é trabalho inútil. Pior: vai dar mais trabalho ao paginador. A meio da conversa, ia jurar que ouvi um «prontos», mas pronto.

[Post 2811]

15.11.09

Tradução: «massive offensive»

Somos todos padeiros

      Admito: nem sempre é possível deixar de incluir alguma «massa» na tradução do omnipresente «massive» inglês. Mas poucas vezes. Vejamos este exemplo de um dos melhores tradutores portugueses: «A guerra tinha então entrado num segundo ano horrível, com três quartos de milhão de soldados da China comunista e da Coreia do Norte a desencadear constantes ofensivas em massa e as forças das Nações Unidas, encabeçadas pelos Estados Unidos, a responder desencadeando contra-ofensivas em massa depois de sofrerem pesadas baixas» (Indignação, Philip Roth. Tradução de Francisco Agarez e revisão de Clara Joana Vitorino. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 35). No original há-de estar massive offensives e massive counteroffensives.

[Post 2810]

Sobre «Amish»

Essa é que é essa

      «No Spectator de 7 de Novembro, Sarah Churchwell chamava a atenção para a moda dos romances Amish e das virgens castas da série Twilight» («Antes assim», Miguel Esteves Cardoso, Público, 15.11.2009, p. 37). Pois é, mas numa notícia («Atirador mata três alunas numa escola amish dos Estados Unidos») do mesmíssimo Público de 3 de Outubro de 2006, assinada pela jornalista Isabel Leiria, lia-se: «A escola tinha apenas uma sala, frequentada por 27 alunos, do 1.º ao 8.º ano, da comunidade amish — cristãos evangélicos que vivem da forma mais simples e austera possível.» Se não está aportuguesado, não deveremos escrever como Miguel Esteves Cardoso — com maiúscula inicial, porque se trata de um adjectivo próprio, categoria que não existe na nossa gramática? No texto citado por Miguel Esteves Cardoso, a autora usou quinze vezes a palavra, sempre, naturalmente, com maiúscula.

[Post 2809]

Rectificação de erros no «Diário da República»

Não havia papel que chegasse

      José Manuel Meirim, docente de Informação e Documentação Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, escreve hoje no Público sobre erros e rectificação de erros no Diário da República e da lei que disciplina as rectificações. «Trata-se da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, já objecto de alterações, a última das quais concretizada pela Lei n.º 42/2007, de 24 de Agosto. No n.º 1 do artigo 5.º afirma-se que as rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma publicado na 1.ª série do Diário da República» («A legislação a que (não) temos direito», José Manuel Meirim, Público, 15.11.2009, p. 37). Alguma vez terá sido publicada uma rectificação relativa ao erro legis artis, por exemplo? Duvido.


[Post 2808]

Tradução: «suponer»


Suposições

      A Junta da Estremadura espanhola lançou uma campanha, financiada pelo Governo, sobre educação sexual. «As sessões de formação», lê-se na notícia do Público, «são itinerantes e incluem demonstrações com uma série de “brinquedos sexuais”, incluindo vibradores e bolas chinesas» («Extremadura quer ensinar jovens a masturbarem-se», Susana Almeida Ribeiro, Público, 15.11.2009, p. 20). Escreve a jornalista: «Também as associações de pais Cofapa e Concapa já denunciaram que a campanha supõe uma intromissão no direito das famílias à formação sexual dos seus filhos.» «Supõe»? Má tradução do espanhol: «Las asociaciones de padres de alumnos COFAPA y CONCAPA han denunciado hoy que la campaña “El placer está en tus manos”, promovida por el Consejo de la Juventud y el Instituto de la Mujer de Extremadura, supone una intromisión en el derecho de las familias a la formación sexual de los hijos» («COFAPA y CONCAPA denuncian intromisión de Extremadura en educación sexual», 15.11.2009, ADN, aqui). A jornalista devia ter visto o verbete «suponer» num dicionário de língua espanhola e o verbete «supor» num dicionário de língua portuguesa. Chegaria a uma conclusão muito simples: são tantas as semelhanças quanto as diferenças. Sim, o étimo, supponĕre, é o mesmo. Suponere, no contexto, traduz-se por «representar».


[Post 2807]

Luisiana e Louisiana

Como calha

      «O antigo congressista democrata do estado do Louisiana, William Jefferson, foi condenado a 13 anos de prisão num processo de corrupção que as autoridades descreveram como o “mais extenso de sempre” no Congresso norte-americano» («Antigo congressista do Louisiana condenado a 13 anos por corrupção», Público, 15.11.2009, p. 15). Porque não Luisiana? Até no Público, quando calha, escrevem assim: «Barack Obama obteve vitórias esmagadoras nos caucus nos estados de Washington, Nebrasca, Ilhas Virgens Americanas e nas primárias da Luisiana, ultrapassando Hillary Clinton em número de delegados» («Obama ultrapassa Hillary em número de delegados», Público, 11.2.2008, p. 1). Sim, o leitor atento reparou: «do Louisiana»/«da Luisiana».

[Post 2806]

Tradução: «to design»

Esboços

      «O custo de 5,3 mil milhões de dólares das eleições de 2008 (Casa Branca e Congresso) foi um recorde absoluto nos EUA e um sinal de como a lei do financiamento se tornou obsoleta. “Esse sistema não está a cumprir nenhum dos objectivos para que foi desenhado”, diz John Stamples, do think-tank libertário Cato Institute» («Campanhas americanas financiadas em exclusivo por privados», Rita Siza, Público, 15.11.2009, p. 4). Ainda que, em sentido figurado, desenhar seja «conceber, idear», a verdade é que é sempre mais conveniente usar um sentido próprio. Então, dir-se-ia: «Esse sistema não está a cumprir nenhum dos objectivos para que foi concebido.» Nas traduções do inglês, abusa-se desta acepção quando se traduz o verbo to design. Outro exemplo da edição de hoje deste jornal: «Mas a questão mantém-se: como reagirá se Obama não lhe der as tropas que precisa para pôr em prática a sua estratégia que desenhou?» («McChrystal, o guerreiro furtivo que quer ganhar o Afeganistão», Ana Fonseca Pereira, Público, 15.11.2009, p. 18). Claro que algo mais está mal na frase: ou sobra o pronome «sua» ou a forma verbal «desenhou».

[Post 2805]

13.11.09

Paralelo 38

Um paralelo

      Cara Luísa Pinto: recomendo que se escreva com minúscula inicial, como já tive oportunidade de dizer em relação aos pólos. Logo, paralelo 38. É também a opção tomada numa obra que estou a ler: «Cerca de dois meses e meio depois de as bem treinadas divisões da Coreia do Norte, armadas pelos soviéticos e pelos comunistas chineses, terem atravessado o paralelo 38 e entrado na Coreia do Sul, no dia 25 de Junho de 1950, e de terem começado os horrores da Guerra da Coreia, entrei eu em Robert Treat, pequena universidade do centro de Newark que recebeu o nome do homem que no século XVII fundou a cidade» (Indignação, Philip Roth. Tradução de Francisco Agarez e revisão de Clara Joana Vitorino. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 15).

[Post 2804]

12.11.09

«Questões domésticas»?

Muito lá de casa

      «Num discurso que abarcou as questões domésticas americanas e a política externa, Rahm Emanuel garantiu que a Administração Obama continua comprometida e esperançosa num “final feliz” para o processo de paz no Médio Oriente e corrigiu as leituras dos que encaram a abertura de Obama ao mundo árabe como um remoque a Israel» («Judeus dos EUA frustrados com relação entre a América e Israel», Rita Siza, Público, 12.11.2009, p. 16). Domésticas, só tarefas e animais. Para questões, é melhor internas. Claro que alguns jornalistas deliram com domestic flights, que traduzem por voos domésticos…

[Post 2803]

«Aos bochechos»

Expressões correntes     


      A propósito do processo «Face Oculta», Noronha do Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, disse ontem à RTP: «Aquilo que tem sido uma surpresa negativa é que o que tem chegado, digamos, é um pouco às bochechas, digamos, aos bocadinhos.» Nunca saberemos, nem isso interessa, se foi lapso ou se Noronha do Nascimento acha que é assim que se diz. O Público de hoje teve o bom senso de corrigir: «O presidente do STJ, Noronha Nascimento, disse à RTP que estranha que as certidões relativas ao processo Face Oculta lhe estejam a chegar aos “bochechos”. “Aquilo que tem sido uma surpresa negativa é que o que tem chegado tem sido aos bochechos, aos bocadinhos, não percebo por que é que não se envia tudo ao mesmo tempo”, afirmou» («Noronha estranha chegada de certidões aos “bochechos”», Público, 12.11.2009, p. 5).

[Post 2802]

11.11.09

«Decree-law» ou «executive law»?

Confesso

      Caro M. L.: eu também estou surpreendido. Nunca tinha visto o termo decree-law como equivalente do nosso decreto-lei. Até pensei, confesso a minha ignorância neste ponto, que fosse invencionice mal-enjorcada do tradutor (trata-se de uma tradução de português para inglês). Contudo, vejo que no nosso Parlamento traduzem (veja aqui na Base de Dados Terminológica e Textual) decreto-lei por executive law.

[Post 2801]

«Leges artis»

As regras da arte

      Um leitor, que me sabe «agora muito ocupado com o latim», pergunta-me como se deve escrever: leges artis, legis artis ou artis legis, porque já viu todas as variantes. Quer também saber se se deve escrever e dizer «este tratamento está de acordo com a leges artis» ou «este tratamento está de acordo com as leges artis». Depois de citar alguns exemplos colhidos em diplomas legais e em acórdãos, remata: «É preciso um prontuário de expressões latinas para uso nos tribunais por magistrados e médicos e, já agora, no DR?» Sem preâmbulos: deve dizer-se «as leges artis». Não há outra forma. Vejamos as coisas ao contrário: a tradução é as regras da arte [médica]. Lex, legis é um nome imparissilábico da terceira declinação. No nominativo plural, que é o caso do sujeito, é leges. A forma legis é o genitivo singular, que é principalmente o caso do complemento determinativo do nome, logo não se podia formar a expressão legis artis. Da arte diz-se em latim artis, genitivo singular de ars, artis, também da 3.ª declinação. É então leges artis. Quanto ao que pede, um prontuário de expressões latinas, já existe. Sobretudo no Brasil, há muitos e excelentes. Talvez os revisores da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, e alguns lêem este blogue, possam vir aqui explicar porque é que não corrigem estas barbaridades.

[Post 2800]

Abreviatura «cas.»

Não vemos o mesmo

      «Ana Manta Botelho, 30 anos, nunca foi de se imaginar a percorrer um altar, envolta em tules e sedas brancas, ou sequer de se pôr a pensar nas implicações de ver as iniciais “cas” estampadas no seu Bilhete de Identidade» («Casamos cada vez menos e só depois de testar a relação», Natália Faria, Público, 11.11.2009, p. 10). Ora, também sou casado, e no meu BI não vejo as «iniciais “cas”», mas sim a abreviatura cas., de «casado». Uma pequena imprecisão terminológica.

[Post 2799]

Os títulos dos jornais II

Depende de qual

      «Gosto», escreve Miguel Esteves Cardoso na sua crónica de hoje, «da sobranceria com que o PÚBLICO acompanha o New York Times, tanto como gosto da sobranceria do New York Times em relação a todos os outros jornais dos EUA e, a bem dizer, do mundo. Gosto deste hábito português de escrever em maiúsculas só o nome do jornal onde escrevemos e em itálico os nomes dos jornais estrangeiros onde, apesar de todos os nossos esforços, não. Isto é o PÚBLICO mas aquilo é o New York Times» («Os Bijagós e nós», Público, 11.11.2009, p. 39). Depende, como já aqui vimos, do jornal onde escrevemos.

[Post 2798]

Selecção vocabular

Língua do avesso     


      Isabel Stilwell, na emissão de ontem dos Dias do Avesso, falava sobre a educação. Dizia ela: «Por exemplo, mesmo, podemos dizer que a lei da educação sexual eventualmente será boa, a verdade é que já está em exercício desde o dia 15 de Setembro e ainda não foi regulamentada.» É como está na página da Internet do programa: «Dias do Avesso é uma conversa em sexta velocidade, no meio do trânsito». O perigo dos erros nos meios de comunicação social é o da sua propagação. Quem sabe se hoje mesmo não há por esse País fora pessoas a dizerem o mesmo disparate? Em exercício refere-se a pessoas, ao seu desempenho de uma actividade profissional. Isabel Stilwell deveria ter dito «em vigor», «em vigência».

[Post 2797]

10.11.09

Estrangeirismos na rádio

Língua rápida

      Ouvi e não queria acreditar: Adelino Gomes, provedor do ouvinte da RDP, defende que se usem estrangeirismos, porque «toda a gente diz isso, hoje, na Academia…». Estou mesmo a ver um «académico» desses que andam com uma enxada nas mãos e penduram um radiozinho na cerca enquanto cavam entender must e case study… Mas — preparem-se! — o provedor tem um argumento que ele julga imbatível: «o must é mais rápido» de pronunciar e «mais impactante». Bem, se quisermos uma língua sintética, o melhor é regressarmos ao latim, não ao inglês. Mas isto não ficou assim. O provedor, que debatia a questão do uso dos estrangeirismos com a linguista Regina Rocha, contra-atacou: «Mas deixe-me fazer aqui uma adversativa. E esta adversativa que eu queria trazer é a seguinte: quando nós dizemos must — “é um must” — toda a gente pode utilizar essa palavra e toda a gente compreenderá rapidamente o que se diz…» Tem um vasto programa: quer pôr-nos a todos a falar inglês, porque a língua portuguesa é manifestamente insuficiente para nos exprimirmos. Em suma, para o provedor, os jornalistas só pecam por defeito, deviam usar mais estrangeirismos. «Culpam excusare altera culpa est» (desculpar uma culpa é outra culpa), já diziam os Romanos. No próximo programa, ameaçou, vai voltar aos estrangeirismos. Ai, ai...

[Post 2796]

«Africano» e «anos atrás»

Há excepções

      Miguel Esteves Cardoso também escreve, ai de mim!, «há 20 anos atrás». Na crónica de hoje no Público, na página 39, «Não há excepções», escreve: «Um em cada três portugueses não aceitaria ter como chefe um imigrante. Por outro lado, dois em cada três aceitariam. Há 20 anos atrás seria ao contrário.» Umas linhas à frente, labora (é a primeira vez que uso a expressão) noutro erro: «Depois, à medida que se vai conhecendo mais africanos, as excepções começam a ser tantas e envolvem tantas variáveis (as nacionalidades, as tribos) que acaba por desabar todo o estúpido edifício do racismo.» Talvez, como eu, conheça pessoalmente mais africanos brancos que negros. São todos, brancos e negros, discriminados?

[Post 2795]

9.11.09

Uso do hífen com o prefixo contra-

Ai que medo!

      José António Saraiva também escreve «contra-propaganda». Em qualquer caso, é sempre lamentável ver erros ortográficos, mas ainda será mais lamentável se se tratar de mero temor reverencial do revisor. Só se eu não tivesse trabalhado num jornal é que não sabia que «nos textos do director não se mexe». «Ou melhor, só se percebe tendo em conta que o PS dispõe hoje de uma grande e eficaz máquina de propaganda e contra-propaganda. […] A história de Cavaco e das escutas também mostrou a eficácia da máquina de contra-propaganda socialista — que, como sempre acontece nestas situações, conta depois com alguns idiotas úteis» («Está tudo doido em Portugal?», José António Saraiva, Tabu, 9.10.2009, pp. 64-65).
      Com o prefixo contra-, só devemos usar hífen se a palavra seguinte começar por h, r, s ou vogal: contra-haste, contra-reacção, contra-senha, contra-almirante, contra-espião, contra-indicação, contra-ordem... E assim: contrabaixo, contraceptivo, contracheque, contradança, contradizer, contrafilé, contragolpe, contramão, contrapartida, contrapeso, contraponto, contrapropaganda, contraproposta, contraprova, contraveneno…

[Post 2794]

«Primus super pares»

Argumento jurídico ou linguístico?

      «Os advogados de Berlusconi, por seu lado, centraram a defesa em dois pontos. Primeiro, a lei Alfano não dá imunidade vitalícia, mas apenas a suspensão temporária enquanto a pessoa estiver no cargo. Segundo, Berlusconi distingue-se dos restantes cidadãos pela importância das suas funções, que não pode exercer serenamente se estiver a preparar a sua defesa em tribunal. "O primeiro-ministro não pode ser tratado como um parlamentar comum, deve ser tratado como o primus super pares, o primeiro acima dos pares”, alegou Gaetano Pecorella» («Berlusconi de novo na mira da justiça», Helena Tecedeiro, Diário de Notícias, 7.10.2009, p. 25). O primus inter pares da tradição liberal passou, congeminado pelos advogados de Berlusconi, a primus super pares. Aqui, contudo, o latim não sai maltratado, pois apenas se substituiu uma preposição por outra, e ambas são regidas por acusativo.

[Post 2793]

Latim macarrónico

E mal agradecidos

      «Populares durante anos, os carros tornaram-se viaturas non gratas entre os condutores a favor do tom prateado, a cor que ainda domina as estradas, a par do preto. Até ganharam a alcunha de “frigoríficos”» («Carros brancos já não são frigoríficos pirosos», L. S., Diário de Notícias, 7.10.2009, p. 51). Não sei como é que os jornalistas se atrevem a escrever numa língua que não dominam. O latim é uma língua declinável — o plural não se obtém da forma como se obtém em português. Gratas, em latim, é acusativo plural. O nominativo plural é gratae, logo, o jornalista deveria ter escrito non gratae.

[Post 2792]

8.11.09

Bíblia. Uso do itálico

Só em inglês

      «Uma Bíblia “sem aditivos”. Foi assim que Timóteo Cavaco, da Sociedade Bíblica Portuguesa, se referiu à nova tradução da Bíblia ontem apresentada em Lisboa» («Apresentada edição da Bíblia “sem aditivos” com Samuel Úria a cantar “Saramago é bom”», António Marujo, Público, 21.10.2009, p. 10). É preciso consultarmos obras de referência anglo-saxónicas para saber que, com o nome de livros religiosos ou sacros, não se usa itálico: Bíblia, Alcorão. É uma excepção, pois, como sabemos, o itálico usa-se para realçar os títulos de obras literárias jornais, revistas e outras publicações de natureza semelhante. Tal como os livros da Bíblia também não são grafados entre aspas.

[Post 2791]

7.11.09

Judeu/judaico, de novo

É pena

      «Um ou dois deputados judaicos do Knesset tentaram ajudar — na sua maioria, os deputados mais liberais» (Palestina: Paz sim. Apartheid, não, Jimmy Carter. Tradução de Pedro Garcia Rosado e revisão de Luís Milheiro. Lisboa: Quidnovi, 2007, p. 108). Numa legenda de um mapa do Plano de partilha de ONU (1947), na página 11, por seu lado, podia ler-se: «Estado judeu». Ninguém viu que estava incorrecto. (Ou, para ser prudente e justo, talvez até alguém tenha visto, mas quem manda achou que não — como sucede também comigo…)

[Post 2790]

6.11.09

Tradução: «volatile»

Ainda explode

      De uma maneira geral, volátil é vocábulo que só vejo em traduções. E tenho sérias dúvidas sobre a propriedade com que é usado. Valha este exemplo: «O Médio Oriente talvez seja a mais volátil região do mundo e aquela cuja instabilidade é a ameaça mais persistente à paz global» (Palestina: Paz sim. Apartheid, não, Jimmy Carter. Tradução de Pedro Garcia Rosado e revisão de Luís Milheiro. Lisboa: Quidnovi, 2007, p. 23). O Dicionário Inglês-Português da Porto Editora dá como tradução de volatile «volátil», sim, mas, no âmbito da química, referido a um líquido. Referido à economia, ao mercado, a uma situação traduz por — instável. Referido, por fim, a uma pessoa, «volúvel», «inconstante». Volátil deve então ser por causa de a região ser rica em petróleo…

[Post 2789]

Uso das preposições

Pára, pára, pára!

      «Depois de nos juntarmos aos dirigentes da nossa delegação, para concluir a nossa apreciação das eleições, que era globalmente positiva, fui para Ramallah, para me reunir com Abbas e com os seus principais conselheiros» (Palestina: Paz sim. Apartheid, não, Jimmy Carter. Tradução de Pedro Garcia Rosado e revisão de Luís Milheiro. Lisboa: Quidnovi, 2007, p. 156). Três vezes a preposição «para» na mesma frase? Quando leio uma frase destas, lembro-me sempre do revisor antibrasileiro. Nunca ele deixaria passar uma frase assim tão desasada. E a pontuação está incorrecta. Proponho: «Depois de nos juntarmos aos dirigentes da nossa delegação para concluir a nossa apreciação das eleições, que era globalmente positiva, fui a uma reunião com Abbas e com os seus principais conselheiros.» O leitor perspicaz já reparou: não se trata, no caso, de uma questão meramente (e já era muito) estilística, mas também gramatical. O segundo para está usado incorrectamente pela preposição a. Sim, convém fazer uma revisão do uso de preposições com os verbos ir e vir, e especificamente do uso de ir para vs. ir a. Esta indica menos permanência; aquela indica mais permanência. Por exemplo: daqui a uns minutos vou ao Mercado de Benfica. Não vou para o Mercado de Benfica, pois não tenho lá banca. Não estou a ver Jimmy Carter, que me parece um homem tão pusilânime, a ir para Ramallah…

[Post 2788]

Tradução: «marine»

Fora com os marines!

      Concordo consigo, caro M. L.: nada há de tão específico na palavra inglesa marine que nos obrigue a não traduzi-la. Como eu, pensam outros revisores e tradutores. Só um exemplo: Pedro Garcia Rosado, tradutor da obra Palestina: Paz sim. Apartheid, não, de Jimmy Carter (Lisboa: Quidnovi, 2007), nunca usou, tanto quanto vi, o anglicismo marine. E assim deveríamos fazer todos. «Em Abril de 1983, um mês depois de eu ter visitado Beirute, foram mortas 63 pessoas pela explosão de uma bomba colocada na embaixada americana e, mais tarde, uma outra, e mais mortífera, explosão tirou a vida a 241 fuzileiros americanos, que se encontravam nos seus aquartelamentos» (p. 90). O Dicionário Inglês-Português da Porto Editora dá como tradução de marine «fuzileiro naval» e não meramente «fuzileiro».

[Post 2787]

5.11.09

«Aqui» e «ali»: dissílabos

Aprendizes

      Uma professora pergunta-me se os vocábulos «aqui» e «ali» são dissílabos ou monossílabos. Para ela, afirma, são dissílabos, mas, numa aula, três alunos do 2.º Ciclo «corrigiram-na». Sempre os considerei dissílabos, e fui confirmá-lo no Míni Aurélio e na MorDebe. Carlos Marinheiro, do Ciberdúvidas, afirma que a «confusão pode resultar do facto de, na translineação, uma vogal não dever ficar isolada numa linha, enquanto o resto da palavra vai para a linha seguinte». Admitiria tal argumento — se não soubesse que muitos professores ignoram essa regra, quanto mais os falantes comuns. Para mim, a confusão deve-se ao facto de, ao contrário da generalidade dos dissílabos, estes (e outros) serem constituídos por uma sílaba com apenas uma vogal, e não por duas letras (como em «casa», por exemplo). São, e é isso que interessa à minha leitora, dissílabos, pois a prolação desses vocábulos dá-se em duas emissões de voz: a.qui, a.li.

[Post 2786]