31.5.09

Sobrenome duplo

Que Churchill nos ajude


      «À medida que Mary fazia mais perguntas, Helen amealhava mais ponto: um marido contabilista numa empresa da City, uma velha mansão, um sobrenome duplo, um potro na cavalariça» (Adultério para Principiantes, Sarah Duncan. Tradução de Ana Mendes Lopes, com revisão da tradução de Ana Maria Chaves. Porto: Asa Editores, 2006, p. 18). A personagem chama-se Helen Weedon-Smith. Analisemos a questão recorrendo a um sobrenome semelhante, por exemplo o dos duques de Marlborough, Spencer-Churchill. George Spencer (1766–1840), 5.° duque de Marlborough, obteve uma licença da Coroa para poder acrescentar o sobrenome Churchill ao sobrenome da família, Spencer, passando a assinar George Spencer-Churchill. Ora, o que sucede é que a segunda filha do primeiro duque de Marlborough, Lady Anne Churchill, se tinha casado com Charles Spencer, 3.° conde de Sunderland (1674–1722). Com a licença real, Spencer-Churchill passou a valer como um só sobrenome — é um apelido composto. O sobrenome Weedon-Smith terá, provavelmente, a mesma génese. À face da lei portuguesa (que reflecte, já aqui o dissemos, regras gramaticais), o conceito de sobrenome duplo designa uma realidade diferente. Sobrenome duplo — um apelido da mãe e um apelido do pai — quase todos os cidadãos portugueses têm, o que se recomenda até para diminuir as probabilidades de homonímia.

30.5.09

Léxico: «butô»

Do Japão

«O seu último álbum contém várias referências à dança — a começar pela capa, foto do mestre japonês do butô Kazuo Ohno — mas o bailarino que surgiu em palco ensaiou movimentos teatralizados e exteriores, longe da dimensão enxuta e interiorizada do butô e, principalmente, da música de Antony» («A nova natureza de Antony», Vítor Belanciano, Público/P2, 16.05.2009, p. 14). O termo «butô» designa uma dança contemporânea japonesa que combina teatro e mímica. A palavra tem origem em bu, «dança, mover-se com elegância» e toh, «passo, pisar».

Léxico: «chicoronho»

Tribu branca da Huíla


      «Vêem-se muitos brancos da terra, aqui chamados chicoronhos, corruptela irónica para “senhor colono”» (As Mulheres do Meu Pai, José Eduardo Agualusa. Revisão de Fernanda Abreu. 3.ª edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007, p. 81). A palavra, que eu desconhecia, e designa mais propriamente os descendentes dos colonos madeirenses que se tinham estabelecido nas Terras Altas da Huíla na década de 1880, está registada em alguns dicionários, e até na MorDebe. Henrique Galvão (História do nosso tempo. João de Almeida (sua obra e acção). Lisboa: AGC, 1931, p. 353) chamava-lhes a «tribu branca da Huíla».

29.5.09

Locuções toponímicas

O mundo ainda não sabe

      «Ao nível diplomático, a principal meta seria a de ser reconhecida como uma potência nuclear internacional e obrigar os Estados Unidos a dialogar directamente com Pyongyang, em vez de negociarem no quadro do grupo dos seis (EUA, China, Rússia, Japão e as duas Correias), cujas negociações para a desnuclearização da península coreana estão paradas» («O mundo ainda não sabe como vai parar a Coreia do Norte», Miguel Gaspar, Público, 27.05.2009, p. 18). Já se sabe (mas boa parte dos jornalistas ignora) que se deve empregar a minúscula «nos substantivos que significam acidentes geográficos, tais como arquipélago, baía, cabo, ilha, mar, monte, península, rio, serra, vale e tantos outros, quando seguidos de designações que os especificam toponimicamente», como se lê na página 337 do Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves. Pergunto a mim mesmo é se península coreana não se integra nas excepções que o autor apresenta de seguida: «Há combinações vocabulares que não se integram no preceito anterior, porque, apesar de baseadas em palavras designativas de acidentes geográficos, formam no seu conjunto locuções toponímicas e, consequentemente, não dispensam a maiúscula inicial naqueles elementos: Grandes Lagos, Península Ibérica […], etc. Além disso, como é sabido, há combinações similares que formam, não simplesmente locuções, mas verdadeiros compostos toponímicos, e que, com maior razão ainda, não podem dispensar a maiúscula nos elementos básicos: Costa do Ouro, Monte Redondo, Serra de El-Rei, etc.» (pp. 338-39).

Actualização em 14.1.2010

      «Estendendo-se pelo calcanhar meridional da Península Arábica e albergando 23,8 milhões de pessoas, o Iémen é um dos países mais pobres do Médio Oriente» («O aliado mais frágil», Andrew Lee Butters, Visão, n.º 880, 14.1.2010, p. 60).

28.5.09

Léxico: «precariado»


Nova classe social



      Foi automático: mal me ocorreu a palavra «alumprar», veio-me à mente a palavra «lumpemproletariado» e, de seguida, o neologismo precariado (de precari(edade) + (prolet)ariado). «Mayday é a chamada via rádio para emergência ou ajuda (deriva do francês m’aidez). A expressão deu nome ao movimento/ideia/marcha contra a precariedade laboral, que em 2001, em Milão, ocorreu pela primeira vez no dia 1 de Maio, Dia Internacional do Trabalhador. Em 2007, chegou a Lisboa e, neste ano, ao Porto. A nível internacional, já passa por Toronto, Helsínquia ou Tóquio, entre muitas outras cidades. Por cá, o grito de guerra será “o precariado dá luta”» («‘O precariado dá luta’», Bernardo Aguiar, Tabu, 24.04.2009, p. 17).


Léxico: «arremprar»

«Arrempra-se»

Li no Destak e arrepiei-me: «Em tempos de crise há que ser imaginativo. Foi com essa premissa em mente que a Sociedade Gestora da Alta de Lisboa (SGAL) criou o conceito imobiliário de “arremprar”, ou seja, conjuga o arrendamento com a possibilidade de comprar o imóvel até ao 60.º mês de contrato» («Em tempo de crise ‘arremprar’ uma casa na Alta de Lisboa», Inês Santinhos Gonçalves, Destak, 27.05.2009, p. 2). É um neologismo rebarbativo, é certo, mas em termos gramaticais de formação irrepreensível: é mais uma amálgama: arre(ndar) + (co)mprar. E já temos sorte não lhes ter saído alumprar, que soaria muito mais sinistro.

Sobre «restaurador»

Conservação e restauro

Já tínhamos restauração na acepção, que eu detesto particularmente, de sector de actividade relacionado com a exploração de restaurantes e outros estabelecimentos afins, do francês restauration. Agora, Miguel Esteves Cardoso foi mais longe: foi buscar ao francês restaurateur a acepção de pessoa que tem um restaurante («personne qui tient un restaurant; traiteur chez lequel on trouve des aliments servis par portions et dont l’espèce et le prix sont indiqués sur une sorte de pancarte», in TLFI) e traduziu-a: eis aí restaurador: «Daí que diga já: são estúpidas (e perdulárias) as pessoas que comem robalos, sargos e douradas antes de Setembro. E são maus os restauradores que os recomendam» («As novidades do peixe», Miguel Esteves Cardoso, Público, 27.05.2009, p. 39). A juntarem-se a D. João IV e ao Restaurador Olex, temos agora milhares de restauradores pelo País fora. Só por uma dessas coincidências raras é que algum será formado pela Escola Superior de Artes Decorativas (ESAD) da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva.

«Há anos atrás»…

Poupem-nos

«Há semanas atrás, no início do novo ano, Malcolm enviou-me um mensageiro com uma peça de seda verde, bordada a ouro, e potes de especiarias e perfumes, juntamente com um pedido da minha mão em casamento» (Lady Macbeth, Susan Fraser King. Tradução de Maria José Santos e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Bertrand Editora, 2009, p. 15). Independentemente de considerações sobre a correcção gramatical desta construção, verdadeira praga dos últimos anos, a que poucos se mostram imunes, parece-me inequívoco que é deselegante. Até, como se vê, em obras revistas ela surge. Recentemente, Ferreira Fernandes assestou-lhe o seu olhar de jornalista sensível à língua: «Há uns anos (há tantos que ainda não se dizia “há uns anos atrás”), eu e uns maduros fomos a Barcelona prestar homenagem ao nosso prazer» («Se o futebol não é um prazer, para que serve?», Notícias Sábado, 9.05.2009, p. 4).

27.5.09

«Reboliço» e «rebuliço»

Colarense ou colarejo?

A colareja



      «Sabe apenas que o computador “é daqueles mesmo originais, que o Ministério da Educação dá aos miúdos”. E, para que não restem dúvidas, liga o aparelho, no meio do reboliço da feira, só para o comprovar» («Computador ‘Magalhães’ é estrela do mercado negro», Joana Pereira Bastos, Expresso, 1.05.2009, p. 22). No campo das homófonas, é um dos erros mais comuns. Já o vi em traduções e mesmo em autores portugueses habitualmente cuidadosos. Reboliço é o que tem forma de rebolo, arredondado; que rebola. Quando me vem à mente a palavra «colareja», é sempre encarnada por uma matrona reboliça, dada, pois claro, a grandes rebuliços: grandes bulícios; grandes desordens e vozearia; balbúrdia, confusão, agitação. «Venha cá, ó freguês!»

«Banco de baleias»?

Outros bancos



      «Ao largo das costas da Cornualha, na Inglaterra, os bancos de baleias e de orcas coabitavam com os tubarões azuis. Isso acabou» («Já não há pescadas nem bancos de baleias como havia, afirmam investigadores», Público, 25.05.2009, p. 13). Os dicionários que consultei afirmam que um banco é um «cardume de peixes à superfície da água». Há, assim, bancos de sardinhas — mas haverá bancos de baleias e de orcas? Tratando-se de cetáceos, isto é, mamíferos adaptados ao meio aquático, não se aplica o termo com propriedade. Não é por acaso que o colectivo de baleia não é cardume (como se pode dizer «cardume de tubarões»), mas baleal. Neste caso, dado o uso, creio que é a definição desta acepção do vocábulo «banco» que precisa de uma redacção diferente e mais abrangente.
      As baleias já antes, a propósito de do termo «recolho», tinham passado pelo Assim Mesmo.

Léxico: «bosquete»

Em Queluz

«O que foi determinante para avançar com a reabertura, há pouco mais de uma semana, foi o trabalho feito no chamado coberto vegetal — os bosquetes foram limpos, os buxos aparados, houve uma tentativa de recuperar algumas espécies e outras novas forma introduzidas, na zona dos jardins superiores, os mais próximos do palácio» («Jardins de Queluz», Alexandra Prado Coelho, Público/P2, 25.05.2009, p. 6). É palavra rara e nem todos os dicionários a registam. Designa o aglomerado artificial de árvores de tipo florestal e arbustos silvestres em jardins, casas de campo, etc. Pequeno bosque.

«Quintaneiro»?

Trocar os enes pelos eles

      «A colega [do arquitecto-paisagista Gonçalo Ribeiro Telles] de profissão Margarida Cancela d’Abreu conta que uma das excepções [à inexistência de hortas urbanas] ocorre em Évora, onde aos sábados e domingos há bancadas de madeira à porta do mercado para os “quintaneiros” que cultivam hortas à volta da cidade e que ali comercializam os seus produtos, por sinal muito procurados» («Lisboa vai ter mais e melhores hortas urbanas até 2011», Inês Boaventura, Público, 25.05.2009, p. 14). Nunca antes ouvi ou li o vocábulo «quintaneiro». Ainda me ocorreu que pudesse ser um regionalismo, mas o facto de «quintaleiro», que significa «hortelão», existir e estar registado levou-me a crer que terá sido erro da jornalista.


Ortografia: «anoréctico»

Mudo mas firme


      «Os Santos Populares que tenham paciência. Troquem-se bulímicos carapaus pelas sardinhas anoréticas» («Não à piscipedofilia», Miguel Esteves Cardoso, Público, 25.05.2009, p. 31). A propósito de torácico/toráxico, referi aqui os pares anoréctico/anoréxico e disléctico/disléxico. Como se pode ver, a partir de substantivos com x, formam-se adjectivos com ct, o que também se verifica em sintaxe/sintáctico, profilaxia/profiláctico, etc. Só depois de estar em vigor o Acordo Ortográfico de 1990 é que se passará a poder escrever sem o c mudo: anorético.

26.5.09

«Castle Stream»?

Stream of consciousness

O meu olhar pousou na palavra «rio» e foi imediato: lembrei-me logo do que tinha anotado há dias. Mas comecemos pelo princípio: se numa obra que estivessem a traduzir aparecesse o nome de um curso de água, Castle Stream, digamos, o que fariam? Deixavam assim, no original? Sim? Então também ficaria por traduzir, em qualquer texto, River Cam ou River Thames, é isso? (Ah, gostava mesmo de viver num narrowboat ancorado no Cam!) Vejo frequentemente este erro nas traduções: «Oferecera-me uma cana de bambu na semana anterior — não porque eu tivesse feito anos ou algo no género, mas apenas porque às vezes gostava de me oferecer coisas — e eu estava mortinho por experimentá-la em Castle Stream, que era de longe o riacho com mais trutas que conhecia» (Tudo É Fatal, Stephen King. Tradução de Luís Santos e revisão de Manuela Ramos. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 50).

«Fiscal» e «fiscalizador»


Caso único

A generalidade da imprensa prefere designar os agentes de fiscalização Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa (EMEL) como fiscalizadores, talvez porque ache que já há muitas entidades com fiscais. Embora sejam ambos substantivos, a verdade é que fiscal, que também é adjectivo (vide locuções conselho fiscal e paraíso fiscal, v. g.), tem um âmbito de aplicação mais abrangente.

Ortografia: «ai-jesus»

Ai-ai

      «Ou o de Patrícia Bragança, advogada, formada em Toulouse (França) e o “ai Jesus” dos empresários com negócios em Andorra e Portugal» («Andorra, o país dos portugueses», Filipe Luís, Visão, 2.04.2009, p. 60). Está mal, caro Filipe Luís: escreve-se ai-jesus e significa «o mais querido, o predilecto». Como interjeição, escreve-se da mesma maneira.

Actualização em 26.2.2010

      «O bombeiro José Manuel Ferreira é, por estes dias, o herói da aldeia. Desde segunda-feira que as águas do rio Tejo inundaram os campos e as estradas de acesso. “Somos o ai-jesus destas pessoas, quase todas já muito idosas e a precisarem de atenção, por isso, fazemos tudo para que as pessoas possam manter a sua vida o mais normal possível e não se deixem desanimar pelo isolamento”, diz ao DN o bombeiro de 52 anos. Vai buscar botijas de gás, avia receitas na farmácia, vai às compras à mercearia, regista o Euromilhões…» («Tejo transformou Reguengo em ilha sem qualquer ponte», João Baptista, Diário de Notícias, 26.2.2010, p. 21).

Léxico: «molinologia»

Ao vento

«Esta explicação é-nos dada por Jorge Miranda, 44 anos, um especialista nacional em molinologia, com formação em Antropologia, e um apaixonado por tudo o que diz respeito a estas máquinas» («Velas ao vento», Susana Lopes Faustino, Visão/suplemento «Visão Sete», 2.04.2009, p. 3). A molinologia é uma área de estudo da etnotecnologia que se dedica ao conhecimento dos moinhos tradicionais nos seus aspectos técnicos, sociais e culturais. Há mesmo uma rede portuguesa de moinhos (ver aqui), que edita uma revista anual. Sempre senti um grande fascínio por moinhos. O único tipo de moinhos com que estou familiarizado é o moinho de armação, ou do tipo americano, como também é designado.

«Riviera Inglesa»


Já vimos isto

      A ilustrar uma fotografia de António Cluny, até agora presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, lê-se na revista Tabu: «Aos 16 anos, num Verão em que foi com um amigo trabalhar em Inglaterra, como empregado num hotel de luxo — o Imperial, em Torquay (na região sudeste, a chamada Riviera inglesa)» («“Sentimos que o PS ia vingar-se», Ana Paula Azevedo, Tabu, 10.04.2009, p. 27). Na verdade, a cidade de Torquay, onde Agatha Christie nasceu em 1890, no litoral sudeste de Inglaterra, é conhecida como Riviera Inglesa. Agatha Christie, a Rainha do Crime (Queen of Crime ou Queen of the Whodunnit, em inglês), não é assim? Dois prosónimos: Riviera Francesa e Rainha do Crime.

«Mestrar-se»?

Culpa de Bolonha


      A jornalista afiança que ela fala «num português que domina perfeitamente, com travo algarvio», e nós acreditamos: «Não se queixa, sabe exactamente o que quer: uma licenciatura. “Tenciono mestrar-me, doutorar-me e ser pianista”, afirma [Alena Khmelinskaia, melhor aluna do País, com média de 19,7 valores, em 2007/2008]» («Uma aluna com nota máxima», Ana Cristina Câmara, Tabu, 10.04.2009, p. 17). Se temos os verbos pronominais licenciar-se e doutorar-se, não vejo porque não criar um mestrar-se.

Compostos

Isto é cor de terra-de-siena queimado (diz-se)

Tons compostos

«A cera de abelhas e a goma-laca (uma substância segregada por uma árvore que cresce no Extremo Oriente) são os produtos mais usados, mas por vezes também se recorre às terras de Siena ou da Úmbria (Itália), consoante o tom pretendido» («Artesãos à moda antiga», João Cabrita Saraiva, Tabu, 10.04.2009, p. 51). Consigna o Acordo Ortográfico de 1945, na Base XXVIII: «Emprega-se o hífen nos compostos em que entram, foneticamente distintos (e, portanto, com acentos gráficos, se os têm à parte), dois ou mais substantivos, ligados ou não por preposição ou outro elemento, um substantivo e um adjectivo, um adjectivo e um substantivo, dois adjectivos ou um adjectivo e um substantivo com valor adjectivo, uma forma verbal e um substantivo, duas formas verbais, ou ainda outras combinações de palavras, e em que o conjunto dos elementos, mantida a noção da composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos.» E seguem-se dezenas de exemplos. Terra-de-siena, pelo menos, está registado em alguns dicionários, e decerto que, por analogia, será legítimo e até conveniente grafar também terra-de-úmbria. Como também se grafa terra-de-siena, terra-inglesa, terra-de-sevilha e terra-japónica.

25.5.09

«Colete-de-forças» e «camisa-de-forças»

Imagem: http://madmaxine.files.wordpress.com/


Vais para o Telhal…


      Uma camisa é o mesmo que um colete? É uma pergunta doida, é isso que estão a pensar? Há dias, uma leitora, M. A., perguntou-me como se diz (mas está nos dicionários…) «camisa-de-forças» em inglês. Comecei a pensar na questão e ocorreu-me que em português tanto se diz colete-de-forças como camisa-de-forças. Quanto à língua inglesa, vi que também há dois termos: strait-waistcoat e straitjacket. E agora a quem é que eu pergunto se «camisa-de-forças» e «colete-de-forças» designam o mesmo? Será que o guia do Museu S. João de Deus — Psiquiatria e História, a funcionar na Casa de Saúde do Telhal, em Sintra, me pode ajudar? Ah, a propósito, gostava de ter conhecido o poeta António Gancho (que morreu três dias depois de o Assim Mesmo ter nascido, e só espero que não tenha havido nenhuma relação de causa-efeito). Mas conheço um enfermeiro que conheceu o poeta (como conheço uma pessoa que conhece Nelson Mandela), o que quase me faz acreditar naquela teoria, inventada por algum ocioso, que afirma que entre quaisquer pessoas se interpõem, no máximo, sete (ou serão quatro?) pessoas.

«Pastorear» e «pastar» (II)

Até o cão fica perplexo...


      «Além dos estudos, Nuno dedicou-se ao futsal, como guarda-redes, e começou a trabalhar. Esteve no armazém e na brigada geral, onde fez “de tudo um pouco”, de jardinagem a trabalhos de limpeza, passou pelo bar dos presos — “com mais responsabilidade porque mexe com dinheiro” —, e até pastou cabras» («Do lado de fora», Alexandra Simões de Abreu, Única, 25.04.2009, p. 30). Um dia, a propósito do mesmo erro noutro texto, pedi uma ilustração a José Bandeira. Lá estão os pastores a pastar, uma ovelha a pastorear e o cão, perplexo mas, valha-nos isso, a fazer de cão. Deixo o mesmo comentário: Até à 4.ª classe era compreensível — mas depois disso?...

De «bowling» a «bólingue»

É que se são…

      «É o Colombo que procuram em tempo de férias, porque querem ir ao cinema, jogar bowling no Funcenter e almoçar por pouco dinheiro nos vários espaços de fast food da Praça da Alimentação, piso 2» («A minha rua é o Colombo», Maria Barbosa, Única, 25.04.2009, p. 35). Muito me estranha que na Única não se escreva bólingue: «Agora que os dias começam a ficar mais pequenos estou a pensar em recomeçar a jogar bólingue» (Tudo É Fatal, Stephen King. Tradução de Luís Santos e revisão de Manuela Ramos. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 99). «“Bólingue”, que horror!», exclamarão alguns — mas não serão os mesmo que ignoram que já no tempo dos pais (!) se passou a escrever, por exemplo, Sara em vez (ou com mais frequência) de Sahara ou Saara? «Hélder Ferreira e Fernando Silva querem sobreviver à aventura do Sara» («Dois portugueses no Sara para a maratona mais dura do mundo», António Pedro Pereira, Diário de Notícias, 30.3.2008, p. 47). Por outro lado… Bem, por outro lado, nas traduções publicadas pelo Círculo de Leitores, nunca se lê uísque, aportuguesamento proibido.

Léxico: «libra-peso»

Adivinhamos, é?

E a propósito de os jornalistas nem sempre explicarem vocábulos que utilizam, estava aqui a ler que «o lançamento do peso foi integrado nos Jogos Olímpicos (JO) da era moderna na primeira edição, em Atenas 1896, seguindo as regras britânicas, incluindo o peso, correspondente a 16 libras inglesas [7,26 quilos], precisamente o que pesavam os projécteis dos famosos canhões britânicos do início do século XIX» (texto da autoria do jornalista Luís Óscar que irá sair na próxima edição da revista Além-Mar), e lembrei-me do termo «libra-peso», utilizado na semana passada no Diário de Notícias — não tendo o jornalista explicado a quanto equivale: «Desta vez, o aumento não foi tão acentuado, fechando o mês de Abril acima de 1,11 dólares por libra-peso» («Café aumenta, preço da bica não», António Rodrigues, Diário de Notícias, 18.05.2009, p. 32). Cada libra-peso tem 453,597 g, e o jornalista devia tê-lo indicado. (Vejam as definições relativas ao comércio de café neste diploma legal.)

Função fática

Pois, sim, sim, ai é?

A propósito (às vezes escrevo a propósito) de Os Dias do Futuro. É quase intuitivo, mas mais apurado e intencional num profissional da rádio, usar-se a função fática da linguagem, isto é, assegurar ao interlocutor que se está a manter o contacto, que se está atento. Contudo, se isso é imprescindível numa conversa telefónica, não tenho assim tanta certeza se é útil na rádio. Edgar Canelas, vi-o agora mais uma vez, atira «exactos» a esmo para cima dos entrevistados. Não no fim de afirmações — mas no início ou a meio. É até perigoso. Imaginem que um entrevistado lunático começava por dizer: «Todas as crianças com quociente de inteligência…» E aqui Edgar Canelas interrompia, jovial e solícito: «Exacto.» E o lunático eugenista concluía, estimulado pelo encorajamento do precipitado jornalista: «… inferior a 120 deviam ser internadas num campo de concentração.» Maria Flor Pedroso não pontua as intervenções dos entrevistados com «exactos», mas com deselegantes «huns». Se fosse eu a emiti-los, diria que se assemelhariam aos simpáticos grunhidos de um tatu. Assim, não me atrevo.

Léxico: «zoótipo»

Homem-Aranha

Na emissão de ontem do programa da Antena 1 Os Dias do Futuro, Edgar Canelas entrevistou Luís Crespo, o biólogo que descobriu no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra duas novas espécies de aranhas, a Tegenaria barrientosi e a Parapelecopsis conimbricensis. (O nome da primeira é uma homenagem ao entomólogo espanhol José Antonio Barrientos.) A determinada altura da entrevista, usou um termo técnico, zoótipo, mas, ao contrário de muitos jornalistas, que deviam estar sensibilizados para o fazerem, explicou o que significa: «Nós, aqui em Portugal, estamos um bocado limitados a nível tanto de bibliografia como de acesso a colecções de museu, a colecções referenciadas que tenham os zoótipos da espécie. Os zoótipos são os espécimes nos quais se baseou a descrição da espécie.» Quando não explicou, a culpa foi do jornalista: «Já agora: o tamanho da aranha mede-se sem contar com as patas. Mede-se do início do cefalotórax [parte anterior do corpo de alguns animais, que corresponde à fusão, entre si, da cabeça e do tórax] ou do prossoma [parte anterior do corpo de diversos invertebrados] [...] até ao final do abdómen.»

Pontos invertidos (II) e curva tonal

Devolvam-no-los




      Já aqui lembrei que só com o Acordo Ortográfico de 1945, e mais precisamente com a sua Base XLIX, é que foram expressamente abolidas as formas invertidas do ponto de interrogação e do ponto de exclamação, que passaram a ser apenas usados nas suas formas normais (? e !) para assinalar o fim de interrogações ou exclamações. Vejam agora este exemplo: «Pois bem: ¿há quem possa formar qualquer ideia clara do que seja um meio termo entre uma coisa e a outra?» (Odes Modernas, Antero de Quental. Edição fac-símile da edição organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio [1943], Sá da Costa Editora, 2009, p. 206). Não é — por, sendo embora uma interrogativa parcial, ter os dois-pontos a indicar o fim da prótase, ou primeira parte do período gramatical — o melhor exemplo, mas serve para aferir da utilidade quando a frase for parcialmente interrogativa, pois na leitura em voz alta, se não conhece o texto, quem lê não sabe onde começa a curva ascendente na entoação.
      Nem todas as mudanças são boas, é o que se pode concluir. Afinal, os Espanhóis passaram por uma evolução diferente, já que somente no século XVIII passaram a usar os pontos invertidos.


24.5.09

Plural de palavras estrangeiras (II)

Imagem: http://www.ci.santa-ana.ca.us/

Nem pensar



      Já aqui alertei para a formação do plural de palavras estrangeiras. Até escrevi: «Também acontece muitas vezes, para formar o plural, juntar-se-lhe um s, o que pode não se adequar ao original (pensemos no italianismo graffiti).» Eis que leio no Público: «Damos a volta ao quarteirão. Nas traseiras, a onda que o Bonjour Tristesse [nome dado ao edifício, em Berlim, que constituiu o primeiro projecto arquitectónico de Siza Viera fora de Portugal] desenha na sua fachada principal, enrola-se ao contrário, para dentro, e os grafittis ainda não invadiram muito a pintura» («“Obrigada, arquitecto Siza, por ter feito uma casa tão bonita”», Alexandra Prado Coelho, 8.03.2009, Público/P2, p. 8). Para agravar, a palavra não tem dois tês, mas sim dois efes. Erro que também se lê num texto, «Ortografia, a nossa impressão digital», de Lídia Jorge: «Procuraria evitar a todo o custo que a única assinatura de um jovem, num futuro próximo, fosse apenas um grafitti na parede.»

Espécies botânicas e zoológicas (II)

Qual o critério?



      Ainda a propósito da grafia dos nomes das espécies botânicas e zoológicas, vejam a completa incoerência neste texto publicado no jornal Público: «Entramos no Jardim Botânico do Porto como quem embarca numa volta ao mundo. Ali, (quase) tudo tem nomes que evocam terras longínquas: madressilva dos Himalaias, cedro do Líbano, freixo dos Himalaias, tamareira-das-Canárias, feto-arbóreo-da-Tasmânia, medronheiro-do-Texas, hibisco rosa da Síria (que, por acaso, é da China e Taiwan» («Jardim Botânico do Porto», Andreia Marques Pereira, Público/suplemento «Biodiversidade», 22.05.2009, p. 16).


«Chef» e «chefe»

Estamos na cozinha




      «O conceituado chefe de cozinha Vítor sobral deixa por agora o restaurante Terreiro do Paço, encerrado desde Fevereiro por causa das obras na Praça do Comércio, para se dedicar a um novo projecto, desta vez em Campo de Ourique» («Vítor Sobral troca Terreiro do Paço por um espaço de petiscos em Campo de Ourique», Ana Henriques, Público, 22.05.2009, p. 24). A locução chefe de cozinha ocorre com frequência. Já apenas chefe para designar o «grande cozinheiro encarregado da direcção da cozinha de um restaurante, um hotel, uma residência, notáveis pela qualidade da alimentação» (na definição do Dicionário Houaiss) é muito raro, preferindo-se-lhe o galicismo chef. (Em espanhol também se usa o galicismo chef ou, como única alternativa, maestro de cocina.) Durante muito tempo, na língua francesa apenas se usava a locução chef de cuisine, e só no século XIX se passou a usar em termos absolutos chef na mesma acepção. Talvez esteja na hora de fazermos o mesmo.


Pronome relativo sem antecedente

Inédito

«Quem quiser fazer cortes de árvores nas suas terras, em áreas superiores a cinco hectares e que não tenham plano de gestão florestal — ainda a maioria dos casos —, terão de pedir autorização à Autoridade Florestal Nacional» («Produtores receiam que novo Código Florestal paralise mercado de madeira», Ana Fernandes, Público, 22.05.2009, p. 37). A língua é inesgotável, e os erros também. Quem é, na frase, um pronome relativo sem antecedente, e, quando ocorre este emprego absoluto, é considerado como sendo do género masculino e de número singular, pelo que se terá de fazer a concordância verbal: tenha e terá.

23.5.09

Léxico: «serra de Gigli»

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Não queiram senti-la


«É uma serra Gigli. Usam-na para serrar a parte de cima do crânio, depois de puxarem a nossa cara como se fosse uma máscara da Noite das Bruxas, claro, com cabelo e tudo» (Tudo É Fatal, Stephen King. Tradução de Luís Santos e revisão de Manuela Ramos. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 28). Em todo o lado leio «serra de Gigli». A imagem e a explicação de Stephen King são sugestivas. A serra ou fio-serra de Gigli deve o nome ao ginecologista italiano Leonardo Gigli (1863–1908).

Advérbio interrogativo de causa

Ora aqui têm

      «Porque, pois, trás da sombra ides correndo,/Homens, que a luz no berço baptizara?» («Pater», Odes Modernas, Antero de Quental, edição fac-símile, Sá da Costa Editora, 2009, p. 71). Muito bom serviço à cultura e à língua portuguesas esta edição fac-símile, que reproduz outra que foi organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio. Ora vejam, caros teimosos, como o advérbio interrogativo está grafado porque. Já tinha prometido a mim próprio não abordar esta questão, mas nem sempre conseguimos cumprir. Sim, é verdade, esta edição da Sá da Costa reproduz a de 1943. Querem ir mais para trás? Vamos! Na 1.ª edição: «Porque, pois, trás da sombra ides correndo,/Homens, que a luz no berço baptizára?» (Odes Modernas, Anthero do Quental. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1865, p. 48). Lapso? Deixem-me rir! Outro exemplo da edição da Sá da Costa: «Porque morreu sem o eco de teus passos,/E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?» («A um crucifixo», p. 141). Querem mais? Leiam a obra. Estudem. Vão dar uma volta.

22.5.09

«Portinhol»? «Portunhol»!

Contracção, disse ele


      «É natural: somos pequenos; temos os espanhóis aqui encostados a barrar-nos a passagem e, sempre que queremos dar uma voltinha sem o vexame de falar portinhol, puxa-nos para o mar» («Isto é tudo nosso», Miguel Esteves Cardoso, Público, 11.05.2009, p. 31). Claro que já antes tinha lido «portinhol», mas, sendo uma suposta amálgama de português + espanhol, pergunto a Miguel Esteves Cardoso, parafraseando-lhe uma frase: E aquele i — foi sacado de que pica? Ca ganda lata.
      As amálgamas são casos especiais de composição em que a nova unidade resulta da combinação da parte de cada um dos dois termos que entram na formação. No caso, de português + espanhol só pode resultar portunhol.aqui falei de outra amálgama, spanglish. Recentemente, tomei conhecimento de outra, também no domínio da linguagem: «Dedica-se [a edição de Abril da revista La Recherche] sobretudo ao spanglish (espanhol-inglês) e ao globish (contracção de global english), para já não falar do francês e das suas derivações» («Línguas passadas e futuras», Miguel Calado Lopes, Única, 1.05.2009, p. 78).

Espécies botânicas e zoológicas (I)

Dois mundos

      Como hoje é Dia Mundial da Biodiversidade, vale a pena apreciar esta diversidade a propósito da grafia dos nomes da flora: «O relatório final da primeira fase deste plano (Março de 2007) indica que sete destas espécies só existem em Portugal: corriola do Espichel (Convolvulus fernandesii), Linaria ricardoi, narciso do Mondego (Narcisus scarberulus), miosótis-das-praias (Omphalodes kuzinskyanae), diabelha do Algarve (Plantago algarbiensis), diabelha do Almograve (Plantago almogravensis) e álcar do Algarve (Tuberaria major). A oitava planta, conhecida como trevo-de-quatro-folhas (Marsilea quadrifolia), existe em vários países, mas tem vindo a regredir em Portugal» («Oito espécies da flora portuguesa em perigo de extinção», Público, 18.05.2009, p. 13). E no Diário de Notícias: «São elas a corriola-do-espichel, Linaria ricardoi, narciso-do-mondego, miosótis-das-praias, diabelha-do-algarve, diabelha-do-almograve e o álcar-do-algarve» («Há oito plantas em perigo crítico de extinção no país», 18.05.2009, p. 30). E não estamos em nenhum período de transição de ortografia nem nada que se pareça.


«Braços-direitos»

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A dobrar



      «Em Portugal, Sergiu tinha carta branca para formar o grupo (os seus braços-direitos eram Edik e Bronik) e decidir a força a usar» («Os Sopranos da Moldávia», Nuno Tiago Pinto, Sábado, 16.04.2009, p. 84). Vê-se muitas vezes, como já aqui lembrei, sem hífen, mas hoje o que interessa é realçar o facto de raramente se ver no plural, o que é natural: em princípio, ninguém tem mais do que um braço-direito… Com os mafiosos, porém, as coisas funcionam de outra maneira.

«Ataque-surpresa»

Com hífen

«O Presidente norte-americano, Barack Obama, avisou o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, para não lançar um ataque-surpresa contra o Irão, numa mensagem enviada antes do encontro entre os dois líderes, agendado para segunda-feira» («Obama avisa Netanyahu para não atacar Irão», Público, 15.05.2009, p. 15). Temos dois substantivos: ataque e surpresa. O que acontece é que estamos a adjectivar o primeiro com um substantivo, pelo que, dado o sentido único que o conjunto assim adquire, se impõe o hífen. Segundo a gramática tradicional, o elemento da direita, «surpresa», é um determinante, pois confere ao vocábulo «ataque» um conceito especial. (Mas não é sempre assim, pelo menos na minha opinião, como já aqui vimos recentemente a propósito de «empresas-fantasmas».) No plural, estes compostos morfossintácticos de adjunção, como a gramática moderna os designa, apenas vêem o constituinte da esquerda flexionar-se, ficando invariável o da direita: ataques-surpresa. Como bombas-relógio, carruagens-bar, carruagens-cama, carruagens-restaurante, contas-poupança, escolas-piloto, filhos-família, guerras-relâmpago, homens-bomba, navios-escola, navios-tanque, pombos-correio…

21.5.09

Léxico: «acuponto»

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Veterinária holística




      «Segundo a MTC [medicina tradicional chinesa], os pontos de acupunctura são afloramentos à superfície de nervos vitais. “Cada um desses pontos (acupontos) organiza-se em meridianos, as vias por onde circula a energia vital”, explica a veterinária Someia Umarji» («O meu labrador faz acupunctura», André Rito, i, 18.05.2009, p. 32). Com excepção do Aulete Digital, não vejo o termo registado em nenhum dicionário.
      Por outro lado, e a propósito, vejam como no título está grafado «labrador», matéria que abordei recentemente aqui. Nos livros, pelo contrário, está quase sempre mal grafado: «— Dantes não era prático. Mas se ficarmos no Reino Unido podemos arranjar um [cão]. Um Westie, talvez» (Adultério para Principiantes, Sarah Duncan. Tradução de Ana Mendes Lopes, com revisão da tradução de Ana Maria Chaves. Porto: Asa Editores, 2006, p. 94).

Ortografia: «xariá»

Lei islâmica mutante


      «Aproveitando o momento e o local, o mufti considerou que a actual crise financeira é uma consequência do “não respeito pela charia [lei islâmica]”» («Mufti saudita apela à luta contra o terror», Lumena Raposo, Diário de Notícias, 8.12.2008, p. 28). «Esta ofensiva foi iniciada dois dias depois de os EUA terem criticado fortemente um acordo de cessar-fogo negociado em Fevereiro entre Islamabad e os rebeldes, ao abrigo do qual o Governo concedeu que os taliban aplicassem a lei islâmica (sharia) na região de Swat» («Exército paquistanês diz ter morto 160 rebeldes na ofensiva contra os taliban em Swat», Público, 9.05.2009, p. 14). E ainda há mais variantes, ah, sim. Até no sítio da Al Furqán, uma organização islâmica, que poderíamos supor mais permeável a formas menos portuguesas de dizer, se lê sempre Xaria. Como propus em relação a Shoah, mais valia grafar-se xariá, para reproduzir fielmente a forma como é pronunciada em árabe.

Actualização em 21.07.2009


      Vejam como no Diário de Notícias ainda andam a ensaiar a melhor forma de grafar o vocábulo: «Um eventual regresso ao país teria como resultado ser acusada de adultério, logo, ser condenada à flagelação e à morte por lapidação, de acordo com a Charia (lei islâmica)» («Londres dá asilo a princesa saudita», L. R., Diário de Notícias, 21.07.2009, p. 25).

Qualquer-coisa-chave (ii)

Chaves cruciais

«A União Europeia falhou o objectivo de obter um “sinal político forte” de apoio ao gasoduto Nabucco — projecto de alternativa aos fornecimentos oriundos da Rússia para a Europa — tendo recebido um rotundo “não” de três países cruciais para garantir o abastecimento da projectada rede energética» («Três países-chave da Ásia Central dizem “não” ao projecto do gasoduto europeu Nabucco», Dulce Furtado, Público, 9.05.2009, p. 15). Já tinha abordado aqui a questão, agora é apenas um lembrete: vejam como no corpo da notícia a jornalista escreveu «países cruciais» e, no título (que provavelmente não é da jornalista), se optou por «países-chave».

Índice onomástico

Sim, mas…


      «Uma revisão mais cuidada teria evitado gralhas irritantes (a edição portuguesa não se decide entre escrever Mitterrand com um ou dois tês — são dois, já agora; Nicolas Sarkozy aparece como “Nicholas”). E, tendo em conta a vocação assumidamente pedagógica do livro, a versão portuguesa só teria a ganhar se incluísse um breve glossário onomástico, identificando algumas das figuras referidas ao longo do livro» («Maio de 68 para menores de 60 anos», recensão crítica de Kathleen Gomes à obra Maio de 68 Explicado Àqueles Que o Não Viveram, de Patrick Rotman (Guimarães Editores, 2009), Ípsilon, 17.05.2009, p. 38). Melhor se diria índice onomástico, pois, tanto quanto sei, nenhuma das acepções do vocábulo «glossário» contempla o sentido de lista de nomes ordenados alfabeticamente. E sim, não são só os críticos literários que lamentam que certas obras não tenham índice onomástico.

«Ab anteriori»


Disse o jurisconsulto


      Já tinha lido, mas nunca tinha ouvido a locução latina a anteriori. Tinha de a ouvir da boca de um jurista. Paulo Rangel, candidato do PSD às eleições para o Parlamento Europeu, foi ontem entrevistado na Antena 1 por Maria Flor Pedroso e, às tantas, aos 30 minutos e 48 segundos, para ser mais preciso, disse: «Eu acho que há aqui uma autonomia do próprio acto europeu relativamente às legislativas, haverá influências recíprocas, não tenho dúvidas sobre isso, e elas existirão sempre, embora sejam sempre mais a posteriori do que a anteriori, quer dizer, o grau influência que uma eleição tem noutra depende muito dos seus resultados concretos.» Ainda assim, para evitar o hiato, a anteriori, é preferível usar, como se faz habitualmente antes de palavra começada por vogal (cfr. ab initio, a priori), a variante ab da preposição: ab anteriori. Contudo, a escolha é nossa, como nas eleições.

20.5.09

«Hachemita» ou «haxemita»?

Sem dilemas


      «“Nascido” nos finais da década de 40, o reino hachemita da Jordânia — cujo monarca descende da linhagem directa do Profeta — é um país desértico e pobre em recursos naturais» («Um povo afável do deserto», Lumena Raposo, Diário de Notícias/DN Gente, 16.05.2009, p. 18). A forma hachemita é, de longe, a mais usada, mas também se vê haxemita, que prefiro. Num aviso (n.º 47/2001) do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, lê-se: «Por ordem superior se torna público que o Governo do Reino Haxemita da Jordânia depositou, em 30 de Outubro de 2000, o seu instrumento de adesão à Convenção sobre Conservação de Espécies Migratórias Selvagens, assinada em Bona em 23 de Junho de 1979.» Assim, hachemita ou haxemita são variantes igualmente admissíveis. Tudo menos — e leio tantas vezes! — hashemita.

Iliteracia

Senhora doutora

Afinal, o uso de telemóvel nas aulas talvez seja benéfico… Só assim pudemos ficar a saber como se exprime aquela professora de História da Escola Básica 2,3 Sá Couto, de Espinho. «Quem corrige os testes sou eu, tu nem sabes no que te metestes», disse a professora, que se ufana de ter andado doze anos na escola, quatro na faculdade, dois nos estágios, dois numa pós-graduação e um numa especialização… Tudo para quê? Ó mediocridade, ó tristeza!
A 2.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo dos verbos não tem s final: amaste, baixaste, caíste, deste, erraste, fugiste, gaguejaste, houveste, içaste, jornadeaste, leste, meteste, naufragaste, oleaste, partiste, quiseste, roubaste, suaste, troçaste, usaste, vieste, xadrezaste, zuniste…

«Dinheiro vivo»

In Jornal de Negócios, 15.05.2009, p. 2


Não percebo



      «Quase todos os portugueses utilizam o dinheiro vivo para pagar compras de baixo valor, transacções até aos dez euros, 71,6% utilizam-no em compras até 30 euros e metade da população (de acordo com a análise de uma amostra de todas as classes sociais) recorre ao dinheiro para compras até aos 50 euros» («Contas pequenas pagas em ‘cash’», DN Bolsa, 15.05.2009, p. 7). Na última semana, li vários artigos relacionados com esta questão. Pelo menos em dois usava-se a expressão dinheiro vivo entre aspas, como no desenho de Luís Afonso. Ora eu não sei que falta ali fazem as aspas. Dinheiro vivo significa dinheiro em moedas de metal ou em papel-moeda. É o mesmo que dinheiro à vista, dinheiro em espécie. Vejam como no título do artigo (por imposição do espaço?) se optou pelo estrangeirismo, muito usado, cash.

«Sri Lanca»

Acabou

Acabou tudo em bem: os rebeldes admitiram a derrota e o jornal Público acabou a escrever Tigres Tâmiles: «O brigadeiro Nanayakkara disse também que os seus soldados ainda lutavam contra bolsas de resistência para conquistar “cada centímetro quadrado” do último território em poder dos Tigres Tâmiles, que no auge do seu poderio, na década de 1999, chegaram a controlar quase dois terços do país» («Tigres admitem “fim amargo” dos combates», Ana Fonseca Pereira, Público, 19.05.2009). O pior foram os milhares de mortos. E a propósito, sabiam que o diário i escreve Sri Lanca? «Quando estes refugiados, fugindo à guerra no Sri Lanca, chegaram a terras indianas, dez dos 21 passageiros iniciais haviam morrido ou saltado para o mar» («Em vez da segurança, a morte no alto mar», Somini Sengupta, The New York Times/ i, 15.05.2009, p. 3).

Ortografia: «baixo-ventre»

Monorquidismo

«Franco, então capitão, fez [na Batalha de Biutz, perto de Ceuta, Marrocos] um assalto durante o qual ficou seriamente ferido no baixo ventre» («General Franco tinha apenas um testículo», Público, 18.05.2009, p. 27). Franco, soube-se agora, só tinha um testículo. Quando li o artigo do Público, ocorreu-me logo a palavra «monórquido», que é como se designa o homem ou animal que só tem um testículo. Vi depois que Ferreira Fernandes, num texto intitulado «O testículo perdido do ditador», escrevera no Diário de Notícias uma crónica à conta do facto, usando aquela palavra e brincando com a semelhança que tem com a palavra «monárquico». Como seria de prever, não escrevo este texto só para exibir os meus conhecimentos do léxico, mas para assinalar um erro no texto do Público. Na verdade, escreve-se baixo-ventre e não baixo ventre. Há livros de estilo, como o Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo, de Eduardo Martins (São Paulo: Editora Moderna, 3.ª ed., 1997), que registam o termo, prova de que é habitualmente mal ortografado: «Baixo-ventre. Plural: baixos-ventres» (p. 51).

Interjeição «duh»

Imagem: http://wakeupitstuesday.org/wp-content/uploads/2009/04/duh.jpg


Acorda!


      «À parte o sujeito inefável e creepy daquele “devemos”, há outro problema: que fazem os estrangeiros, portugueses e lisboetas que já sabem das coisas fantásticas que Lisboa tem? Ou que sabem como hão-de saber? Por exemplo, indo à Net, duh» («Oh do shut up!», Miguel Esteves Cardoso, Público, 14.05.2009, p. 31). Esta interjeição inglesa, que eu nunca antes tinha visto num texto português, é muito usada por certos adolescentes e serve para expressar sarcasticamente que algo é óbvio.

Actualização em 27.09.2009

      Já vai aparecendo adaptado: «— Da-aa — diz ela. — As actrizes têm de usar maquilhagem, não têm, por causa das luzes todas do palco? Além do mais, quero chamar a atenção da professora Dulce» (Azul Mar, Cathy Cassidy. Tradução de Cristina Queiroz. Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2009, p. 103). Mas com hesitações: «— Tu sabes, a tatuagem do gato que mandaste ao Lucas — digo eu. — Daa! E o KitKat também» (Amigos à Deriva, Cathy Cassidy. Tradução de Cristina Queiroz. Lisboa: Livraria Civilização Editora, 2009, p. 81).

Actualização em 31.12.2009

      «É difícil descobrir-lhe a origem ou a forma como chegou até nós (ao contrário dos anglófonos dizemos “dahhh”), a eficácia que a tornou omnipresente, contudo, é de fazer arrepiar qualquer purista da língua. Está tudo no tempo que se dá ao “h”. Com um (duh) exclama “Óbvio!”, com dois (duhh) já inclui uma nota de desdém irónico, com três (duhhh) o desprezo pela estupidez alheia já estala à laia de vergastada de chicote. Mas com uma irrisão de humor de tal forma solar que não deixa margem para ofensas. Mas já sabia tudo isto, claro... Não?! Como não?! Duhhh...» («Duhhh», Vanessa Rato, Público/P2, 31.12.2009, p. 4).



Léxico: «dobradiço»

Erros nada achadiços

«Portanto, ali estavam eles, os Grace: Carlo Grace e a mulher, Constance, o filho Myles, a rapariga ou a jovem que eu tinha a certeza que não era a rapariga que ouvira rir dentro de casa naquele primeiro dia, rodeados pela tralha toda, as cadeiras dobradiças, as chávenas de chá, copos de vinho branco, a saia indiscreta de Connie Grace, o cómico chapéu, o jornal e o cigarro do marido, o pau de Myles, o fato de banho da rapariga atirado para o lado, numa bola suja de areia como se tivesse sido arrastada pelo mar» (O Mar, John Banville. Tradução de Teresa Curvelo. 3.ª ed. Porto: Asa Editores, 2006, pp. 22-23). É verdade que existe o adjectivo «dobradiço», mas significa «que se dobra com facilidade; flexível». Dobradiço apresenta o sufixo -iço, formador de adjectivos provindos do particípio passado, com certa conotação frequentativa, «algo pejorativa, algo depreciativa, mas certamente propensiva», como se lê no Dicionário Houaiss, que regista, a título exemplificativo, umas dezenas de exemplos: abafadiço, abespinhadiço, acabadiço, achacadiço, achadiço, acomodadiço, afogadiço, agarradiço… As cadeiras são dobráveis ou desdobráveis.

19.5.09

Aportuguesamento de antropónimos

Realmente

Habituámo-nos a ver os nomes dos reis e príncipes estrangeiros, e nomeadamente os ingleses, traduzidos. É assim que actualmente temos a rainha Isabel II e o príncipe Carlos. (Quase nunca temos, porém, e aqui tão perto, um rei João Carlos de Espanha.) Contudo, e apesar de haver uma regra nesse sentido, como se pode ler no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, a sensibilidade dos nossos dias é um pouco avessa à tradução dos antropónimos e até mesmo dos topónimos. Ainda assim, há dias li, e agora não consigo localizar o recorte, «Ernesto de Hanôver», quando sempre tinha lido «Ernst de Hannover» ou, vá lá, numa concessão que havia de causar muitos engulhos ao jornalista, «Ernst de Hanôver». Mas agora li na edição de 16 do corrente da revista Única: «Rainha Rânia no Twitter». Mas não era só no título: «Rânia, rainha da Jordânia, habituou-nos há muito aos sinais de modernidade. Pioneira no You Tube e na Internet, Rânia voltou a provar estar na dianteira das novas tecnologias, ao ir comentando em directo a visita de Bento XVI à Jordânia» (p. 8).

Sobre «raid» e «musse»

Incursões



      Os desígnios dos tradutores e dos revisores também são, bastas vezes, suficientemente insondáveis. O que pode levar a optar-se, no mesmo texto, pelo anglicismo raid e pelo aportuguesamento ainda raro «musse»? «Joe Seed fez a tropa durante a guerra e tinha estado na maioria dos mais famosos raids aéreos dos bombardeiros sobre a Alemanha» (Filho de Ninguém, Michael Seed. Tradução de Mário Matos e revisão de Luís Milheiro. 3.ª ed. Lisboa: QuidNovi, 2008, p. 103). «Não comer sobremesa não era grande castigo para mim, porque só gostava da musse de morango com natas, mas… ficar sem presentes?» (p. 140) Até jornais pouco propensos a aportuguesamentos usam «raide»: «EUA admitem morte de civis nos raides no Afeganistão» (Público, 10.05.2009, p. 16). Quanto a «musse», que eu só tinha lido, até hoje, em publicações periódicas, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora remete, no respectivo verbete, para… «mousse».
      A propósito de «raide», vale a pena transcrever o que Vasco Botelho de Amaral escreveu na obra Subtilezas, Máculas e Dificuldades da Língua Portuguesa (edição da Revista de Portugal, Lisboa, 1946): «Raid, já na guerra de 14-18, era uma incursão de trincheira a trincheira, com o objectivo de desgaste, de sondagem das posições inimigas e de obtenção de prisioneiros — diz-me um trabalho de assuntos militares. Na guerra de 39-45, porém raid não manteve essa limitação de significação, e aí tivemos “raids” aéreos e outros.
     Até se escreveu escusadamente — raide e reide. Havia pessoas que liam raide e também outras que, à francesa, proferiam “réd”! Pois, em inglês, não é raide nem réde. É — “rêid”. Ora, para evitar estas esquisitices de pronúncia, os militares e os paisanos deviam, repito, empregar carga, incursão, assalto ou ataque, dando a estas palavras a distensão que os estrangeiros não hesitam em praticar, adaptando os velhos termos bélicos aos novos aspectos da Guerra.
      A gazua, gaziva ou gazia, a campeada, a galopada são ascendentes já bem remotos dos raids dos últimos tempos e tais termos pareceriam já anacrónicos. Todavia, termos como incursão, surtida, assalto, ataque e até carga, investida deviam evitar o anglicismo raid, que nos nossos tempos ganhou um sentido lato e, em português, abusivo» (pp. 162-3).

Raças de cães

De raça


      «Usava a desculpa de ir passear a cadela da Avó, uma velha Labrador chamada Sophie; tinha sido rejeitada como cão-guia pela escola local para cegos e viria a provar ser melhor amiga do que a maioria das pessoas que conheci em Bolton» (Filho de Ninguém, Michael Seed. Tradução de Mário Matos e revisão de Luís Milheiro. 3.ª ed. Lisboa: QuidNovi, 2008, p. 101). «Tinha um cão, um Yorkshire terrier preguiçoso e mal-humorado que frequentemente soltava gases numa explosão sonora de maus odores» (p. 124 da mesma obra). Erro muito vulgar, este. Estamos perante uma metonímia, pelo que a referência a um particular membro da espécie será grafada com minúscula inicial: «uma velha labrador chamada Sophie» e «um yorkshire terrier preguiçoso e mal-humorado».
      Aproveito para dizer que não é, ao contrário do que li recentemente, o mesmo processo que nos obriga a escrever «bebi um porto excelente» ou «tenho em casa um picasso». Na edição de sexta-feira passada do Jornal Económico, num texto assinado por Anabela Mota Ribeiro («“Je dessinais comme Raphaël”», pp. 10-12), lia-se o seguinte: «E voltamos ao princípio, ao artista [Picasso] que pinta como Rafael. Àquele que faz comentários deste calibre sobre os intocáveis da História da Pintura: “As pessoas estão sempre a falar do Renascimento — mas é patético! Vi recentemente alguns Tintorettos. E não são mais do que cinema, cinema barato!”» Devia estar escrito «tintorettos».


Léxico: «cutout boots»

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Botas cortadas

A moda é, juntamente com a tecnologia, nomeadamente a informática, a área que carreia mais estrangeirismos para a nossa língua. «Outra novidade são as cutout boots (mistura de bota e sandália que junta o design da primeira ao arejamento da segunda)» («Gastar sandálias», Maria Antónia Ascensão, Pública, 3.05.2009, p. 50).

Acepção de «cavalgar»

Façam uma sondagem

«Paulo Rangel não perdeu tempo a cavalgar as declarações da candidata do PS às europeias e à Câmara do Porto, Elisa Ferreira, que, na sexta-feira, disse: “Eu vou ao Parlamento Europeu assinar o nome. Quero é vir para cá, para o Porto”» («Elisa Ferreira criticada por Rangel depois de ter dito que ia ao PE só assinar o nome», Margarida Gomes, Público, 10.05.2009, p. 6). Tenho sérias dúvidas que o leitor comum compreenda exactamente este sentido figurado — «aproveitar de (oportunidade), ger. com astúcia e energia», na definição do Dicionário Houaiss — do verbo cavalgar.

Sobre «capô»

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Encobre o motor



      «O Ford Anglia azul-claro, com os seus horríveis assentos de plástico barato, capot estreito, grandes guarda-lamas dianteiros e faróis que pareciam olhos de sapo, vomitou nuvens de fumo pelo caminho todo» (Filho de Ninguém, Michael Seed. Tradução de Mário Matos e revisão de Luís Milheiro. 3.ª ed. Lisboa: QuidNovi, 2008, p. 93). Havia de ser o modelo «E494A» do Ford Anglia, que foi produzido entre 1949–1953. Ainda me lembro de um tio paterno ter comprado, nos anos 80, um Ford Anglia, modelo «105E», que tinha sido deixado de ser produzido em 1967. Para mim, era de longe o carro mais feio que alguma vez tinha visto. Como se vê, o tradutor optou por usar o termo francês capot. No entanto, no Dicionário de Português-Inglês da Porto Editora, não aparece o termo «capot» (nem «capô»), mas sim «capota», referindo o dicionário que em inglês é hood (of a motor-car). E depois regista duas expressões: capota de caleche: calash; e capota de motor: motor cowling». No Dicionário Inglês-Português, se consultarmos o verbete «hood», podemos ler: «Estados Unidos da América (automóvel) capô».

«Pôr em causa»

Sem tirar nem pôr

«A avó não ficava minimamente intimidada pelo colarinho do padre e dava-lhe uma surra verbal cada vez que ele punha em questão a fidelidade dela ao Exército de Salvação» (Filho de Ninguém, Michael Seed. Tradução de Mário Matos e revisão de Luís Milheiro. 3.ª ed. Lisboa: QuidNovi, 2008, p. 105). A expressão fixa é «pôr em causa», que significa «questionar». As questões, é verdade, também se põem, e o tradutor também usa a expressão: «Éramos apenas três e eles cerca de uma dúzia, por isso não se punha sequer a questão de ficarmos ali e de lutarmos» (p. 150).

18.5.09

Numeração dos séculos (II)

Não, não sou o único


      Para fazer companhia ao Record, apareceu o diário i a numerar os séculos com algarismos árabes: «A dupla que gere o bar encontrou o edifício do século 19 há quatro anos, ao cabo de “muitas tardes a passear pela Baixa e a perguntar em quiosques e cafés”, em busca do sítio certo para dar mais luz à noite. Estava bastante degradado”, mas, com o auxílio da arquitecta Joana Rafael, foi possível “recuperar a casa sem alterar a sua traça”» («Não se engane porque aqui o chá é só para enfeitar», Jorge Manuel Lopes, i, 15.05.2009, p. 44).

Actualização em 5.06.2010


      «— Relatórios intermináveis. — Sorriu. — Computadores. A bênção e a maldição do século vinte e um. — De seguida, olhou para mim e reparou finalmente no estado em que me encontrava. — Meu Deus, sente-se bem?» (Memória de Tubarão, Steven Hall. Tradução de José Remelhe e Luís Santos. Queluz de Baixo: Editorial Presença, 2009, p. 143).

Ortografia: «hétero»

LGBT


      «Dez filmes gay que todos os hetero deviam ver antes de morrer» (Luís Leal Miranda, i, 15.05.2009, p. 48). Ao optar-se por escrever assim, substantivando um elemento de formação de palavras, neste caso hetero- (do grego héteros, «outro; diferente»), temos de ter consciência de que é perante uma palavra plena que ficamos, logo, flexionável. Ou o jornalista escreve ou diz «dois olho» ou «dois palerma»? Então, já vê. Não é a primeira vez que aqui falo deste processo linguístico denominado redução. Lembro-me, em particular, do termo híper, redução de «supermercado». A acentuação destas reduções segue a regra oficial, pelo que será hétero(s), esdrúxulo.
      Também nas traduções, infelizmente, se vê o mesmo erro: «Em geral ficam um rapaz hetero, talvez um homo e umas nove raparigas» (O Animal Moribundo, Philip Roth. 3.ª edição. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues e revisão de Manuela V. C. Gomes da Silva. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008, p. 15).

A terminologia da economia

«Desinflação»?


      Luís Reis Ribeiro, num texto publicado no novo diário, i, cujo aparecimento saúdo, explica quatro conceitos da economia: deflação, desinflação, inflação e estagflação: «Deflação. Descida prolongada dos preços de todos os bens e serviços. É um risco grande para a economia: com os preços em queda, os consumidores adiam os gastos, o que cria mais dificuldades às empresas, mais desemprego e ainda menos consumo. Desinflação. É o que está a acontecer agora nas economias portuguesa e europeia — uma quebra nos preços de algumas classes de bens. Neste caso, dos combustíveis. Inflação. É o aumento contínuo do nível dos preços, que se reflecte directamente na diminuição do poder de compra dos cidadãos. Manter a inflação baixa é um dos principais objectivos económicos da maioria dos governos. Estagflação. Os economistas afastam o cenário de deflação e dizem que o risco maior é a estagflação, uma mistura de preços altos com crescimento económico baixo» («Petróleo só vai subir a sério no próximo ano», Luís Reis Ribeiro, i, 14.05.2009, p. 30).

Actualização em 22.08.2009

      E ainda temos a reflação, que é a estimulação da economia por intermédio da injecção de dinheiro e de créditos ou pela redução das taxas. É o oposto da desinflação.

Ortografia: «contracrítica»

Do contra

«Jogando, pelo contrário, a favor da hipótese de Alegre recusar recandidatar-se jogava o facto de Sócrates ter marcado, subitamente, uma deslocação à Madeira, hoje, deslocação que prevê de enorme mediatização, dado o historial de críticas e contra-críticas entre o primeiro-ministro e o líder madeirense Alberto João Jardim» («Alegre escondeu decisão de Sócrates», João Pedro Henriques, Diário de Notícias, 15.05.2009, p. 4). Já aqui vimos mais do que uma vez que nos vocábulos compostos em que entre o prefixo de origem latina contra-, o segundo elemento tem sempre hífen se for palavra começada por vogal, h, r ou s. Logo, contracrítica. Os jornalistas e os revisores é que se esquecem disso.

Léxico: «silpat»


Imprópria


      «Coloque no silpat (tabuleiro em silicone para pastelaria) bem untado e coza a 190 graus cerca de 10 a 15 m» («Papos de anjo em calda de poejo sobre carpaccio de ananás», Teresa Resende, Única, 1.05.2009, p. 84). É a evolução, a que se dá o nome de derivação imprópria, que sofreu a marca Tupperware. Actualmente, quase todos os dicionários registam o termo, tupperware, como substantivo comum para designar o recipiente de plástico com tampa que fecha de forma a não deixar entrar o ar, usado para conservar alimentos.

Gíria dos carteiristas

Fale com eles

A edição do dia 1 do corrente da revista Única publicou um artigo muito informado sobre os carteiristas em Lisboa, «Os carteiristas do 28», da autoria de Hugo Franco. De interesse para nós, o pequeno (mas eles nem precisam de falar…) léxico de termos da gíria dos carteiristas:
«Música ou cabedal: carteira
Montada: eléctrico
Guiros: turistas
Estrilhar: refilar
Cabra: turista atento aos carteiristas
Nixo: carteira sem dinheiro
Balúrdio: carteira carregada de dinheiro
Correo: companheiro de crime
Asa-direita ou encosta: aqueles que fazem ‘tampão na entrada dos transportes para confundir as vítimas
Mão leve: o artista que furta a carteira
Muleta: disfarce usado para se camuflarem entre os turistas.»

17.5.09

Léxico: «blondin»

Cabina de pilotagem de um blondin, durante a construção da barragem de Vouglans ©

Quase


«Habituado a manobrar o ‘blodin’, máquina que transporta o betão, o ferro e todos os outros materiais necessários à construção de uma barragem, Franklin, de 57 anos, ficou impressionado com o desaparecimento da Aldeia da Luz, onde conheceu gentes e passeou nas ruas» («Franklin Quintas», Única, 1.05.2009, p. 27). O jornalista quase acertava, se se tivesse esforçado mais: a máquina, que é um transportador aéreo ou grua funicular, muito usada na construção de barragens, chama-se, na realidade, blondin. O termo deriva de um nome próprio: Blondin. Charles Blondin era o nome artístico de Jean François Graveland (1824-1897), um acrobata francês especialista em equilibrismo sobre cordas, uma espécie de funâmbulo ou aramista. Em 1859, atravessou as cataratas do Niagara, nos Estados Unidos da América, servindo-se de uma corda suspensa sobre as quedas-d’água.

«Pousar» e «posar»

Grande pose

      «O príncipe de Gales, primeiro herdeiro do trono de Inglaterra, e a sua mulher, Camila, duquesa da Cornualha, pousaram na quarta-feira com os estudantes da Royal Ballet School, antes da realização do espectáculo de gala na Royal Opera House, em Londres» («Príncipe Carlos. Pose com bailarinos e críticas aos arquitectos», Diário de Notícias, 15.05.2009, p. 19). É um erro muito mais comum do que se possa pensar. Ah, já agora: o príncipe Carlos não é herdeiro do trono de Inglaterra, mas sim herdeiro dos tronos do Reino Unido e de mais de uma dúzia de reinos da Comunidade das Nações.

16.5.09

«Cristo-Rei» ou «Cristo Rei»?


Liberdade

      Tinha de ser: os 50 anos do Cristo-Rei vão ser comemorados, segundo o Diário de Notícias, numa «megacerimónia» («No elevador do Cristo-Rei há 50 anos», 15.05.2009, primeira página). Mas isso agora não interessa, mas sim o termo Cristo-Rei. Também no Público se usa esta grafia: «50 anos do Cristo-Rei», lia-se na primeira página da edição de ontem. Oficialmente, o nome do monumento é Cristo Rei, sem hífen. A generalidade da imprensa grafa-o com hífen, por analogia com outros compostos onomásticos, como também prefiro: «Cristo-Rei, Ponte 25 de Abril, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Castelo de São Jorge, Padrão das Descobertas, Centro Cultural de Belém, Museu da Electricidade e os Paços do Concelho serão os pontos da capital que ficarão às escuras em prol daquela campanha global de alerta para a necessidade de adopção de medidas eficazes na luta contra as alterações climáticas» («Apagão global», Vera Mendão Costa, Visão, 12.03.2009, p. 96).

Sobre «improvado»

Ao lado

«A prova-chave fora posta em causa, mas a família de Muncey continua a acreditar que House esteve envolvido no crime. E mesmo entre os procuradores há quem admita que essa hipótese não ficou excluída, apenas improvada» («Declarado inocente após 22 anos no corredor da morte», Hugo Coelho, Diário de Notícias, 14.05.2009, p. 25). Parece, não nego, o antónimo de provada, mas o Dicionário Houaiss, por exemplo, dá como definição de improvado «que se improvou; não aprovado». E quanto a improvar, «não aprovar, julgar desfavoravelmente; desaprovar, censurar; improbar». Teria sido preferível que o jornalista tivesse escrito algo como: «E mesmo entre os procuradores há quem admita que essa hipótese não ficou excluída, apenas por provar.»

Erros jornalísticos

Língua retalhada

Há erros que se devem a lapsos e há erros que resultam inteiramente da ignorância. O que mostro a seguir parece-me ser desta última infeliz espécie: «Mais uma vez, o guia explicava: “Porque as pessoas quando rezam, põem a boca e o nariz no chão. “E” se não encontrar os seus sapatos, leva outros”, adiantava, antes do Presidente retalhar: “Leva os melhores que encontrar!”» («Cavaco Silva descobre regras dos muçulmanos», Bárbara Baldaia, Diário de Notícias, 14.05.2009, p. 12). Aqui, a única pessoa que retalha alguma coisa, a língua, concretamente, é a jornalista. Retalhar é «cortar em retalhos ou pedaços, dividir em várias partes; recortar; lavrar, sulcar; golpear, espatifar; vender a retalhar». Em sentido figurado, também é «magoar ou afligir muito». Atalhar, que é o que Cavaco Silva fez, é «impedir o progresso de; interromper uma pessoa que fala; replicar; embaraçar, estorvar, impedir, obviar; encurtar caminho por atalho; diminuir a intensidade de». Com a Internet, em todos os lados há um dicionário de português. De qualquer modo, em Lisboa, o editor e o revisor não deviam ter deixado passar semelhante parvoíce.

15.5.09

«Reunir-se»

Última hora

«Manuel Alegre reúne hoje com o seu grupo de apoiantes para decidir um eventual apoio ao PS nas eleições legislativas, encontro em que estão praticamente excluídos cenários de ruptura com Sócrates e de criação de um novo partido», assegura a edição de hoje do gratuito Destak (p. 23). Ora, o verbo reunir não é intransitivo neste tipo de construção, pelo que tem de se conjugar reflexamente: Manuel Alegre reúne-se hoje… Se os senhores jornalistas quiserem que o verbo seja transitivo, ponham lá Manuel alegre a mandar: «Manuel Alegre mandou reunir hoje o seu grupo de apoiantes.» Ou: «Manuel Alegre reúne hoje o seu grupo de apoiantes.»
No Público, no texto assinado por São José Almeida («Manuel Alegre não deverá abandonar o PS e anuncia hoje se entra nas listas de Sócrates para as eleições legislativas», p. 11), lê-se que Manuel Alegre «convocou» os apoiantes.

«Empresas-fantasmas»

Há escolha

Cara Teresa Seixas: para mim, trata-se de dois substantivos e não de um substantivo mais um determinante específico. Logo, devem ir ambos para o plural: empresas-fantasmas. É verdade que não é uma questão consensual, mas temos de seguir um critério. Nas revisões que faço, é sempre assim que considero formações semelhantes. Na imprensa, a convicção de como se deve grafar também varia: «As empresas-fantasmas de Oliveira e Costa» (Clara Teixeira, Visão n.º 836, 12.03.2009, p. 48). «Movimento Liberal Social considera que redução incentiva empresas-fantasma» (sítio da RTP, 9.10.2008). Claro que também se lê, mas é para esquecer, «empresas fantasma» e «empresas fantasmas».