31.7.10

Pronúncia: «ícone»

Emblema e âncora e ícone


      Na inauguração do faraónico Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa, disse ontem José Sócrates: «O Museu do Côa vai ser uma âncora, naturalmente, e um emblema e um ícone para Foz Côa e para o Douro.» E como pronunciou o vocábulo «ícone»? Mal, como Paula Moura Pinheiro aqui. «I-cone»? Mas porquê?
      Mesmo quando se fala para o País, é às elites que os políticos se dirigem. Quem, da população de Foz Côa, saberá exactamente o que é aquela «âncora»? Talvez alguém faça, e bem, a analogia com o conceito, vindo directamente do inglês anchor store, de «loja-âncora», que, todavia, ainda não chegou aos dicionários.

[Post 3748]

Actualização no mesmo dia

      O sempre atento Paulo Araujo lembra-me, e bem, que esta lacuna é apenas dos dicionários publicados em Portugal, pois pelo menos três dicionários editados no Brasil registam o vocábulo loja-âncora:

No Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa:

Loja-âncora Substantivo feminino. 1. Prom. Vend. Estabelecimento de grande porte e bem conhecido, ger. uma loja de departamento, que serve como base comercial de um shopping center. [Tb. se diz apenas âncora. Pl.: lojas-âncoras e lojas-âncora.]

No Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa:

Loja-âncora s.f. (a) Loja importante e de grande porte de um shopping center, para o qual serve de base comercial, por atrair consumidores; carro-chefe de um centro comercial: a Livraria Cultura, loja-âncora do Shopping Villa-Lobos, transformou-se em ponto de encontro privilegiado de adultos e crianças da zona oeste da capital paulista. Pl.: lojas-âncoras ou lojas-âncora.

No Dicionário Aulete Digital:

Loja-âncora sf. 1. Loja de grande porte e bem conhecida que funciona como suporte comercial de um shopping center [Tb. se diz apenas âncora.] [Pl.: lojas-âncoras e lojas-âncora].

Acordo ortográfico

Infidelíssimas citações


      Lembram-se de aqui ter referido uma citação da obra de Nabokov O Original de Laura, traduzida recentemente para português? Lembrar-se-ão então que o que estava em causa eram as novas regras ortográficas relativas aos pontos cardeais. A frase, recordo, era esta: «Os toldos laranja dos verões do sul.» Põe-se, contudo, outra questão. Nesta fase transitória, será legítimo fazer-se uma citação «actualizando» (mas incorrectamente, como demonstrei) a ortografia? Na página 76 do referido livro (O Original de Laura, Vladimir Nabokov. Tradução de Telma Costa e revisão de Miguel Martins Rodrigues. Lisboa: Editorial Teorema, 2010), o que se lê é isto: «Os toldos laranja dos Verões do Sul.» Não nos dão as aspas a segurança de que se cita fielmente? Veio o Acordo Ortográfico de 1990, ou a sua aplicação, o que não é o mesmo, acabar também com esta certeza? Nas publicações periódicas não há ninguém a pensar nestas questões?

[Post 3747]

Solecismos dos políticos

Falam os políticos


      Pedro Passos Coelho na Antena 1, ontem, sobre o desfecho do caso Freeport: «Apenas digo, nesta altura, que é deplorável que em Portugal se demorem tantos anos a conduzir investigações sobre matérias desta natureza.»
      Manuela Cunha, primeira subscritora de um requerimento a pedir a classificação da linha e dirigente do Partido Ecologista «Os Verdes», sobre a construção da barragem do Foz Tua: «Se a lei neste país for cumprida, não poderão haver obras na área da linha do Tua até ser tomada uma decisão relativa à classificação ou não da linha. […] E, a partir desse momento, não podem haver obras.»

[Post 3746]

Acordo ortográfico

Trapalhadas


      Num texto de Leonel Moura na edição de fim-de-semana do diário Negócios, aconteceu o que eu já temia: uma trapalhada sobre a interpretação das novas regras ortográficas. Em rodapé, lê-se: «Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.» O texto fala da «megacidade» de São Paulo e de «arquitetos», «projetar», «projeto», de «atividade», de uma «atriz», etc. Agora leiam dois breves excertos: «Daí a separação social. Que não é só de carácter econômico, mas também e muito evidentemente física» («Paulista acidental — 2», p. 19). E mais: «Mas a influência da megacidade nos indivíduos vai muito para lá da condição econômica. Afeta sobremaneira os comportamentos.» Resultado da interpretação das famigeradas duplas grafias? Não seria melhor, neste período de transição, proceder-se ao estudo das novas regras ortográficas, em vez de aplicá-las tão impensadamente?


[Post 3745]

30.7.10

«Tigre-de-bengala»

Despedido



      Por causa atendível. «Tem 17 meses, pesa cerca de 120 quilos e foi notícia um pouco por toda a África do Sul. Panjo, o tigre-de-benguela que desapareceu na segunda-feira enquanto era levado pelo dono a uma consulta veterinária, reapareceu ontem a 50 quilómetros de Pretória, segundo a rádio 702» («‘Panjo’ reaparece após dois dias», Diário de Notícias, 29.07.2010, p. 29).
      Como tudo aconteceu na África do Sul, o jornalista, na sua suprema inconsciência geográfica, achou que o tigre não podia ser da asiática Bengala, mas da província angolana de Benguela. No Ciberdúvidas dizem que Bengala e Benguela são parónimos. Eu acho que não.

[Post 3744]

Nome de entidades

Pensem


      «“Sabemos que uma grande quantidade de petróleo se dispersou e biodegradou”, revelou a directora da agência de investigação oceânica e atmosférica (NOAA)» («Maré negra dispersa-se rapidamente no golfo do México», Ana Fonseca Pereira, Público, 29.07.2010, p. 17).
      Este é um erro para o qual já aqui chamei a atenção: o nome, traduzido ou na língua original, de qualquer entidade é grafado com maiúsculas iniciais. Creio que são trapalhadas que vêm da Lusa e que alguns jornais aceitam acriticamente. No Público, também se deviam recordar que já lhe chamaram Administração Nacional Oceânica e Atmosférica.

[Post 3743]

Castelhanismos

Imagem daqui.

Tapas e gringos


      «A cidade mais violenta do mundo, actualmente, é Ciudad Juárez (191 homicídios por 100 mil habitantes em 2009). De Juárez aos Estados Unidos são cinco minutos a pé, pela ponte sobre o rio Bravo (ou rio Grande, como lhe chamam os “gringos”)» («A violência no México não passa para os Estados Unidos», Alexandra Lucas Coelho, Público, 29.07.2010, p. 6). «No programa do concurso é também definido que produtos deverão ser “preferencialmente” comercializados em cada um dos espaços: no primeiro chocolates, gelados, crepes, chás e cafés, no segundo saladas, frutas e sumos naturais, no terceiro vinhos, queijos e enchidos, no quarto cervejas e petiscos, no quinto tapas e o sexto tem “tema livre”» («Crepes, frutas, queijos e enchidos chegam à Av. da Liberdade em 2011», Inês Boaventura, Público, 29.07.2010, p. 25).
      Daria que pensar este critério de grafar «gringo» entre aspas e «tapas» sem aspas. Daria, se não se soubesse que nos jornais não há muito tempo para pensar — nem sequer sobre o que se fez de mal na edição da véspera. O primeiro uso do vocábulo gringo na língua portuguesa regista-se ainda no século XIX. Tapa tem entre nós um currículo de uma década. Ambos castelhanismos, ambos registados nos mais vulgares dicionários da língua portuguesa. Levado aos limites, seria precisamente ao contrário: «tapas» com aspas e «gringo» sem aspas.

[Post 3742]

29.7.10

Sobre «mina»

Uma acepção quase perdida


      Os dicionários vão ficando cada vez mais pobres. Onde pára a acepção do vocábulo mina relativo à galeria subterrânea que se abre nos sítios das praças, pondo no fim dela uma recâmara cheia de pólvora ou outro explosivo para que, dando-lhe fogo, arruíne as fortificações? Só no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, mas muito mal explicado e redigido: «Fortif. Cavidade que (cheia de pólvora) faz ir pelos ares o que há por cima.» Bem, também, admito, o Dicionário Houaiss, e, aliás, com uma redacção suspeitamente semelhante, e por isso igualmente mal explicado.

[Post 3741]

Verbos pronominais

Decidir-se por


      O revisor antibrasileiro voltou ontem a afirmar pernóstica e categoricamente que a forma como os Brasileiros escrevem e falam tem contribuído decisivamente para a degradação da língua portuguesa. Há ali, nada me desconvence, qualquer trauma, e menos latente que efervescente. Pouco falta, se algo falta, para negar a existência de verbos pronominais na língua portuguesa. «Veja aqui: “O presidente decidiu-se pela dissolução do clube.” “Decidiu-se”! Já não é “decidiu pela”.» Não me mostrei bisonho e disse-lhe que eu me decidia pela pronominalização. Amochou. («Retraiu-se», diria, se ele não se melindrasse com o se inerente.)

[Post 3740]

Sobre «esguízaro»

Vejam lá


      Levado por semelhanças e fiado nas aparências, o tradutor do espanhol até pode traduzir esguízaro por janízaro. Já vi... O contexto e a raridade do vocábulo podem levar a isso. Ora, se os modernos dicionários de espanhol só lhe fazem corresponder o sinónimo «suíço», é preciso lembrar que é algo mais do que isso. O DRAE di-lo provindo do alto alemão médio Swîzzer. A verdade é que provém de sguizzero, «da Suíça». Sguizzero é vocábulo dialectal romanesco por svizzero, «suíço». O termo, contudo, e isto é, a meu ver, o mais importante, utilizou-se sobretudo em referência aos elementos da Guarda Suíça Pontifícia, o corpo de guarda encarregado, desde 1506, de escoltar e proteger o papa.

[Post 3739]

Sobre «bisonho»

Quase, quase


      Abram aí o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2009) na página 240. Bisonho. «inexperiente; inábil; (soldado) não exercitado); principiante; acanhado; tímido». Vem do castelhano bisoño, «inexperiente», do italiano bisogno, necessidade».
      Actualmente, em termos de uso, prevalece a última acepção, «acanhado; tímido». Interessa-me agora, porém, a etimologia. Na época de Cervantes (1547—1616), era um dos muitos italianismos em castelhano. Era o termo, que designava de facto o soldado novo e inexperiente, com que os italianos se referiam, ironicamente, aos soldados espanhóis recém-chegados a Itália — o que mais tarde se chamou Itália, pois só no século XIX Massimo D’Azeglio (1798—1866), destacadíssimo dirigente do Reino unificado de Itália, pôde afirmar: «L’Italia è fatta, ora van fatti gli italiani.» Ora em 1502, os Reis Católicos enviaram o exército espanhol (o mais numeroso e heteróclito da Cristandade, com espanhóis, italianos, alemães, valões, etc.), comandado pelo grão-capitão Gonzalo de Córdoba, a Itália. Quando precisavam de qualquer coisa, os soldados do exército espanhol dirigiam-se aos italianos com um escasso «io bisogno», «preciso»...

[Post 3738]

Tese e dissertação

Imagem do Correio da Manhã

Muito prazer


      «Ana Marques faz parte das Maxgirls, tem 24 anos, é natural do Porto e vive em Cascais. Licenciada em Design de Ambientes, é quase mestre nessa área. Falta-lhe apenas concluir a tese mas, segundo Ana, pode esperar, e a música não» («“Trago os amores comigo...”», Dina Gusmão, Correio da Manhã, 28.07.2010, p. 44).
      Ela é que disse isso, ou foi a senhora jornalista que o concluiu? Bem, até os dicionários, pelo menos alguns, lhes dão razão. Contudo, já aqui o vimos, tese é de doutoramento, ficando reservado para o mestrado a dissertação.

[Post 3737]

28.7.10

Adjectivos truncados

Trunca


      «Em contrapartida, a aliança britânica-francesa-norueguesa-polaca conseguiu a 28 de Maio, no norte [sic], reconquistar Narvik» (A Segunda Guerra Mundial, Gerhard Schreiber. Tradução de Luís Covas e revisão de Eda Lyra e Texto Editores. Alfragide: Texto Editores, 2010, p. 37).
      Não é questão nova aqui. Eu truncaria os três primeiros adjectivos e escreveria: anglo-franco-noruego-polaca.

[Post 3736]

«Statu quo»

Bastardias linguísticas


      «Aquele tinha em mira o status quo, definido pelas potências vitoriosas para a Europa em 1919-1920, e fixado em vários acordos pelos Estados participantes na conferência de Washington (entre 12 de Novembro de 1921 e 6 de Fevereiro de 1922) para o Extremo Oriente» (A Segunda Guerra Mundial, Gerhard Schreiber. Tradução de Luís Covas e revisão de Eda Lyra e Texto Editores. Alfragide: Texto Editores, 2010, p. 13).
      Vimos aqui recentemente como o latim anda abastardado por cá. Os Ingleses que escrevam como lhes aprouver, nós devemos escrever statu quo, no ablativo do singular. É abreviação da expressão latina statu quo ante bellum, o estado em que as coisas estavam antes da guerra. Na Texto Editores, já agora, podiam dar uso aos dicionários que editam: o Dicionário Integral da Língua Portuguesa (Texto Editores, 2009) regista na página 1526 statu quo. Ou agora andam a estragar todas as línguas e mais alguma?

[Post 3735]

Khmers/khmers

Afinal, talvez me leiam


      No Público, tudo continua na mesma: «Duch, o homem que geriu “com precisão matemática” a mais temida das prisões dos khmer vermelhos, foi ontem condenado a 35 anos de prisão por um tribunal especial do Camboja» («Sentença de Duch: “11 horas por cada morto” na prisão S-21», Público, 27.07.2010, p. 10). No Diário de Notícias, lá concederam que aquele ezinho era indefensável, e passaram a escrever de outra forma: «O tribunal internacional encarregue de julgar os crimes do regime comunista dos Khmers Vermelhos no Camboja condenou ontem a 30 anos de prisão, por crimes de guerra e contra a humanidade, o responsável da principal prisão de Phnom Penh, onde foram mortas ou torturadas mais de 15 mil pessoas entre 1975 e 1979» («Torcionário khmer recebe pena de 30 anos de prisão», Abel Coelho de Morais, Diário de Notícias, 27.07.2010, p. 22).

[Post 3734]

«Passar a pente fino»

Andam trocados


      «Restauração passada a pente-fino» (Correio da Manhã, 27.07.2010, p. 22). Se os jornalistas escrevem assim e se os revisores deixam passar, imagine-se o resto. Então não é passar a pente fino que se escreve? Não é o que fazem, e este erro é recorrente. Hífenes. Agora também lhes deu para não grafarem com hífen o vocábulo nadador-salvador: «Marco saía com familiares de dentro de água, quando os nadadores salvadores já não estavam ao serviço, e, a poucos metros da areia, numa zona de fundão, desapareceu quando uma onda rebentou. O pânico instalou-se junto da família e dos banhistas que ainda estavam no local. Alguns nadadores salvadores que ainda estavam por perto lançaram-se ao mar, mas não conseguiram encontrar o jovem» («Mar esconde corpo de jovem banhista», João Tavares, Correio da Manhã, 27.07.2010, p. 11).

[Post 3733]

Sobre «vectorial»

Assim se vê a diferença


      «José Robalo, subdirector-geral da DGS, revelou ao CM que foram reforçadas as medidas de combate ao vírus do Nilo Ocidental: “Foi reforçada a rede de vigilância vectorial, coordenada pelo Instituto Nacional de Saúde [Dr.] Ricardo Jorge, que recebe mosquitos de todo o País. Nesta medida, decidimos aumentar o número de insectos recolhidos em Lisboa e Vale do Tejo para análises laboratoriais”, explicou o responsável» («Reforçadas medidas contra vírus do Nilo», André Pereira, Correio da Manhã, 27.07.2010, p. 17).
      Uma sondagem dir-nos-ia quantos leitores do Correio da Manhã perceberiam aquele vectorial. Assim sem qualquer explicação, é um mau trabalho. No Público, creio que ainda é pior: «“Foram encontradas 11 espécies diferentes de mosquitos na zona de residência do doente, mas, até agora, nenhum caso positivo da presença de vectores do vírus do Nilo Ocidental”, refere José Malheiros, especialista dedicado a esta rede de vigilância do INSA que já funciona há alguns anos» («Caso de infecção por vírus do Nilo Ocidental em Portugal está “praticamente confirmado”», Andrea Cunha Freitas, Público, 27.07.2010, p. 6).
      No Diário de Notícias, a palavra começa por nem sequer estar na peça principal (de resto, o artigo é muito mais informativo do que os dos outros jornais), mas num texto de apoio: «Desde 2008 que o INSA tem uma rede de vigilância de vectores (veículos de transmissão como os mosquitos) no Continente e na Madeira» («Mosquitos e mamíferos estão a ser investigados para detectar vírus do Nilo», Diana Mendes, 27.07.2010, p. 12).
      Agora quanto a vectorial. Se tivéssemos dicionários realmente bons, talvez não fosse tão grave que os jornalistas escrevessem assim. Não é o caso. Qualquer dicionário remete sempre para vector. Este vem do latim vector, -ōris, «que conduz». Em termos genéricos, é o agente que transporta algo de um lugar para outro. Especificamente em termos médicos, é o ser vivo que pode transmitir ou propagar uma doença. Nenhum dicionário da língua portuguesa, porém, apresenta esta simplicidade.

[Post 3732]

27.7.10

Fases da Lua

Vamos lá alunar


      «Com a maré a subir e depois de uma noite de Lua cheia, os aliados [sic] desembarcaram nas várias praias que bordejam as costas da Normandia. Foi no dia 6 de Junho de 1944, entre as 06.30 e as 07.30, que 135 mil soldados e vinte mil veículos entraram na França ocupada pelos nazis para libertar a Europa de um dos mais terríveis episódios da sua história» («Em Arromanches, na Normandia», Maria de Lurdesvale, Diário de Notícias, 25.07.2010, p. 9).
      É um erro que tenho visto também em livros revistos. A Lua, como poucas vezes se pensará, tem muitas mais fases, mas apenas se atribui nome — pelo menos na língua portuguesa, que em algumas outras não é assim — a quatro: lua cheia (ou plenilúnio), lua nova (ou novilúnio), quarto minguante (ou decrescente) e quarto crescente. E é assim como eu acabei de escrever que se devem grafar, porque então já não estamos a referir-nos ao astro, esse sim com maiúscula inicial, mas a fases do astro. Ou Maria de Lurdesvale também escreve «Plenilúnio»?

[Post 3731]

26.7.10

Sobre «promitente-comprador»

Não me convence


      Abunda a grafia promitente-comprador e promitente-vendedor — tal como abunda a grafia promitente comprador e promitente vendedor. Nos acórdãos que tenho lido, ia jurar que se usa mais esta última. Quando, há uns anos, alguém perguntou ao Ciberdúvidas qual a grafia correcta, o consultor Miguel Faria de Bastos não teve dúvidas: «A primeira fórmula, promitente-comprador, é a mais correcta. O promitente-comprador é promitente de uma compra; ainda não é um comprador. O termo promitente-comprador constitui uma unidade conceitual com um sentido técnico-jurídico próprio e, daí, a obrigatoriedade do hífen.»
      Não vejo em que é que o facto de se tratar de uma «unidade conceitual» obriga ao uso do hífen. Não faltam «unidades conceituais» no Direito e noutras ciências veiculadas por locuções e não por vocábulos compostos. Direi, ao melhor estilo jurídico, que se me afigura, pois, duvidoso o bem fundado da explicação.

[Post 3730]

Actualização em 27.07.2010

      Então agora vejam noutro jornal: «No tribunal de Loulé, contudo, já foram registadas sete acções de promitentes compradores, a reclamar a anulação dos contratos e pedindo o dobro do sinal, alegando incumprimento contratual» («Apartamentos vendidos por milhões de euros no Algarve chegam a tribunal», Idálio Revez, Público, 27.07.2010, p. 20).


Léxico: «crono»

Coisas dos tempos


      E a propósito de contra-relógio, lembro-me agora que a imprensa começou a usar, com ou sem aspas, a redução crono. A origem há-de estar na redução francesa (e os Franceses, já aqui o vimos, têm uma louvável inclinação para as reduções vocabulares), chrono. «O espanhol, que venceu já em 2007 e 2009, partiu com oito segundos de vantagem para o luxemburguês Andy Schleck (Saxo Bank), segundo classificado, conseguiu defender-se dos ataques e até ganhou mais alguns segundos ao seu principal rival, acabando o crono com 39 segundos de vantagem na geral. Precisamente o tempo conquistado na polémica e decisiva 15.ª etapa, que lhe deu a liderança, após a qual foi vaiado e acusado de falta de fair play por não esperar pelo luxemburguês quando este viu a corrente da sua bicicleta saltar» («Contador resiste no crono e assegura terceiro triunfo», Cipriano Lucas, Diário de Notícias, 25.07.2010, p. 44).

[Post 3729]

Léxico: «bicavalista»

Falemos de cavalos


      Nem é preciso ler a palavra «contra-relogista» (e na semana passada li-a em dois jornais) para me lembrar da copidesque do Público. Basta algo semelhante, e ontem foi a palavra «bicavalista». Perguntou o jornalista do Diário de Notícias: «O que é um bicavalista?» O entrevistado não era de poucas palavras: «É um adepto dos automóveis 2 cavalos; o termo deriva de bicavalaria. É um apaixonado por este carro simples, mas que é uma grande máquina. Somos amantes e fãs destes veículos — que procuramos manter, conduzir, conservar, divulgar —: o 2 cavalos original, como é o meu caso, mas também da Dyane, do AMI8 e do Mehari. Todos estes carros fazem parte da bicavalaria» («Trabalhei na fábrica da ‘Citroën e apaixonei-me pelo 2 cavalos”», Amadeu Araújo, Diário de Notícias, 25.07.2010, p. 68).
      O processo de formação é um tudo-nada mais engenhoso, mas o que está em causa é justamente o mesmo. Será que a copidesque cortava a palavra? E substituía-a por quê? Só pode ser para rir.

[Post 3728]

25.7.10

Léxico: «modelito»

Sabrina Sato num modelito ousadíssimo ©

Diminutivo pleno


      Aqui leio que Sandra Bullock surgiu com um modelito criativo na estreia de um filme; ali tomo conhecimento de que Roberto Cavalli foi o responsável pelo modelito que Shakira usou na final do Campeonato do Mundo de Futebol; acolá fico a saber que Paris Hilton mostrou um modelito ousado numa festa regada a champanhe... E a palavra já está bem presente em alguma da nossa imprensa. Tanto quanto sei, só o Dicionário Aulete Digital regista o termo: «Pop. Vest. Roupa, traje: “Longos na cor preta dominaram a festa, mas um ou outro modelito exibiu plumas cor-de-rosa...” (Folha de S. Paulo, 14.09.1999).»

[Post 3727]

Léxico: «supraordinado»

Os nossos hierarcas


      É um sentido figurado, sim senhor, mas quando pretendemos usar um antónimo de subordinado, por que palavra optamos? «Superior», pois claro. Mas no mundo académico usa-se há muito supraordinado. Então agora imaginem que um autor topava com um orientador como aquele de que falei aqui. Este perguntava logo, numa grande nota a vermelho, se «supraordinado» existe. É que, se sim, não tinha nada a opor... Claro que, temos de o dizer, não são apenas os índices de frequência a ditar a inclusão de um vocábulo nos dicionários. Quantas lacunas clamorosas, indefensáveis, absurdas, aqui tenho denunciado ao longo dos anos.
      Agora podia dizer alguma coisa sobre a relação hierárquica supraordinado/subordinado, começando por convidar o leitor a recuarmos ao sentido etimológico de «hierarquia», que remete para uma comunidade governada por uma autoridade sagrada cuja origem é divina. Mas não digo mais.

[Post 3726]

Sobre «ambidestro»

A torto e a direito


      Hitler, cruzes!, era canhoto. Mas isso não tem, excepto na etimologia, nada de sinistro. António Lobo Antunes também é esquerdino, e não há-de ser por isso que não foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Destro, dextro, ambidestro, ambidextro, esquerdino, canhoto, canhestro são todos termos que qualquer dicionário — excepto, pelo menos de forma inequívoca (digo isto para objectar ao que me possam dizer sobre o Dicionário Aulete Digital), o Dicionário Houaiss — refere apenas às mãos, mas os jornalistas desportivos usam-nos igualmente para referir o pé que os futebolistas usam. «Apesar da chegada de Sereno, que é um central ambidestro, Villas-Boas tem apostado em Maicon para jogar na posição mais à esquerda do centro da defesa, ou seja, aquela que nos últimos anos tem vindo a ser ocupada por Bruno Alves.»

[Post 3725]

Da oralidade à escrita

Passatempo sem prémio


      Há expressões que ficam uma vida (a nossa) inteira na oralidade. Ora digam-me lá os meus estimados leitores que hipótese escolheriam e porquê.

a) «Traduzo o que os portugueses entenderam: eu vou é já tirar o meu dinheirinho do BCP, chupistas, e vai-se a ver a Caixa também está falida, isto só vai com um Salazar, o BES vai pró maneta, ó lá se vai, e o BPI só se aguentou com um stress da tanga, quando vier aí um mesmo a sério...»

b) «Traduzo o que os portugueses entenderam: eu vou é já tirar o meu dinheirinho do BCP, chupistas, e vai-se a ver a Caixa também está falida, isto só vai com um Salazar, o BES vai pró maneta, oh lá se vai, e o BPI só se aguentou com um stress da tanga, quando vier aí um mesmo a sério...»

c) «Traduzo o que os portugueses entenderam: eu vou é já tirar o meu dinheirinho do BCP, chupistas, e vai-se a ver a Caixa também está falida, isto só vai com um Salazar, o BES vai pró maneta, olá se vai, e o BPI só se aguentou com um stress da tanga, quando vier aí um mesmo a sério...»

[Post 3724]

Como se escreve nos jornais

Crimes sem castigo


      Prince esteve em Vale de Lobos. Não na casa do eminente historiador Alexandre Herculano, pois chegou atrasado um século e meio, mas no estúdio de Rui Veloso, em Sintra. Foi lá pela mão da sua amiga Ana Moura. Parece que a fadista fez qualquer coisa ao serão. Não ao serão no sentido de durante o serão, mas ao próprio serão. Complemento directo. Ora vejam: «Contactada pelo CM, fonte da Música no Coração confirmou o encontro e precisou que Prince já não se encontra em Portugal, tendo sido Ana Moura a mediar o serão» («Rui Veloso passa tarde com Prince», Cláudia M. Rodrigues, Correio da Manhã, 23.07.2010, p. 39). Já consideraram quão cruento terá sido? Dividiu, partiu o serão ao meio. E, de facto, nunca mais ninguém viu aquele serão. Não tanto por causa do fim da História, mas pela irrepetibilidade da mesma. A polícia (e a revisão do jornal) não desconfia de nada. De contrário, já Ana Moura teria sido «presente» a tribunal para primeiro interrogatório judicial.

[Post 3723]

24.7.10

«Idioma», uma acepção

Menos conhecida


      «No pensamento político é fácil encontrar o idioma negador por excelência da autoridade: o anarquismo.» É muito raro deparar com esta acepção do vocábulo «idioma». O pior, contudo, é que só em dois dicionários, no Dicionário Houaiss e no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a encontro. Lê-se neste último: «forma de expressão que caracteriza uma pessoa, um período ou um movimento». Convenho: também está no Dicionário Aulete Digital, mas a definição é incomparavelmente menos clara. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa ignora totalmente a acepção.

[Post 3722]

Infinitivo flexionado

Também movediças


      Mais uma vez a questão do infinitivo e da sua flexão. Leiam esta frase: «Mas também ouvimos pessoas rejubilar com essa mesma erosão […].» Com verbos sensitivos, defendem alguns estudiosos da língua, não se flexiona o infinitivo. Mas há excepções, alertam outros: se o sujeito vier antes do verbo no infinitivo, a flexão do infinitivo já é obrigatória. É o que eu também defendo. Ora, é justamente o caso da frase que cito acima. Logo, eu escreveria (e corrijo, porque sou revisor e tenho de tomar decisões, que, por vezes, sou chamado a justificar): «Mas também ouvimos pessoas rejubilarem com essa mesma erosão […].»
      É este caso idêntico ao dos dragões? Não é: a de hoje tem uma estrutura diferente, estão em causa dois verbos e dois sujeitos. Mas vale a pena compará-las. Gostava de conhecer a opinião dos meus estimados leitores.

[Post 3721]

Diâmetro da areia

Areias movediças


      «Leva tempo — muito tempo, milhares de anos —, mas a acção da água e do vento é muito eficaz a destruir as rochas para criar os minúsculos grãos que, por definição, têm mais de 0,062 milímetros e menos de dois» («Fazer castelos com fragmentos de quartzo e conchas», Patrícia Jesus, Diário de Notícias, 23.07.2010, p. 56).
      As dimensões devem ter sido indicadas à jornalista pelo geólogo Pedro Pimentel, que foi entrevistado. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora regista que cada partícula, cada grão de areia, tem um diâmetro que varia entre 0,07 mm e 2 mm. Além disso, no artigo o limite superior fica abaixo de 2 mm, e na definição do dicionário esse limite é inclusivo. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa não se mete nestas areias, contas miúdas, nem o Dicionário Houaiss. Em coisas pequenas, porém, as mínimas discrepâncias importam, e 0,062 mm não são 0,07 mm. Algum geólogo que nos leia nos ajude.

[Post 3720]

Sobre «cotar»

Não em português


      «“Para traçar um perfil psicológico, eram necessárias várias baterias de testes para apurar se há patologia mental. Mas algumas características cotam imediatamente uma série de items da avaliação de psicopatia”, refere a especialista [psicóloga forense Maria Francisca Rebocho]» («Egocentrismo e excentricidade podem revelar traços de psicopatia», Sónia Simões, Diário de Notícias, 23.07.2010, p. 2).
      Podia ser uma acepção rara do verbo cotar, «apreciar; avaliar», mas suspeito que há aqui anglicismo. To quote é «referir, indicar», e creio que é o que está por detrás daquele verbo. De resto, temos um indício logo a seguir: estão a ver como está grafado aquele «items»? Então, não é difícil imaginar como foi pronunciado. Em português, o plural é «itens». Quanto ao «cotam» talvez não houvesse nada a fazer, mas já o «items» a jornalista tinha obrigação de corrigir.

[Post 3719]

Léxico: «tubo arterial»

Embalsamamento


      «A Leslie Hindman Auctioneers vai leiloar no próximo dia 12 de Agosto os instrumentos usados na autópsia e na embalsamação do cantor Elvis Presley, além de outros artigos, como a etiqueta colocada no corpo para sua identificação, luvas de borracha, fórceps e tubos arteriais. Os artigos foram guardados durante todos estes anos por um técnico de embalsamamentos da funerária Memphis Funeral Home que prefere manter o anonimato» («Instrumentos da autópsia a leilão», Correio da Manhã, 22.07.2010, p. 33).
      Os dicionários não registam a locução tubo arterial, e bem o podiam fazer. Ora vejam quantas locuções regista o Dicionário Houaiss no verbete «tubo». Pois é. No Embalming Online Glossary, em linha, vemos que antigamente em inglês se dizia canula, e nós também temos o vocábulo, cânula.

[Post 3718]

Léxico: «palhaça»

Outra lacuna


      «Ver as palhaças é um bom motivo para uma visita a esta terra [Santana, Madeira]. Palhaças são as casas cobertas de colmo, de duas águas, sobre estruturas de madeira» («A ilha renascida», Francisco Mangas, «Verão»/Diário de Notícias, 23.07.2010, p. 7).
      O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, nem uma palavra. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, por sua vez, não omite o verbete: «Palhaça, s. f. Ant. Dizia-se das habitações feitas de palha.» Dizia-se e diz-se, pelo que se vê.

[Post 3717]

23.7.10

Léxico: «de levante»

Erros levantinos


      «A PSP de Leiria e a ASAE apreenderam roupa, CD, DVD, óculos e perfumes contrafeitos no mercado do Levante. Três feirantes foram detidos» («Leiria. Material contrafeito», Correio da Manhã, 22.07.2010, p. 12).
      O revisor antibrasileiro estava ao meu lado, pelo que lhe perguntei, como quem não quer a coisa, o que entendia da notícia e, especialmente, quanto ao local. Que tudo tinha acontecido, afirmou, no mercado de Levante, provavelmente alguma localidade, uma aldeia, de Leiria. Vê, senhor jornalista? Vê, senhora revisora? Dois erros em duas palavrinhas. Não é do, mas de; não é Levante, mas levante. A locução é de levante. Alguns dicionários registam-na, mas sem a referirem de forma explícita aos mercados. Habitualmente, nos regulamentos municipais, os mercados são classificados em permanentes ou de levante conforme disponham ou não de instalações próprias e fixas e se destinem essencial e predominantemente à venda a retalho de produtos alimentares. Dezenas de localidades têm, ainda hoje, mercados de levante. De levante porque são provisórios, se levantam. Com maiúscula inicial, Levante, é coisa bem diversa: é o conjunto dos países do Mediterrâneo Oriental (Turquia, Síria e Egipto) e Ásia Menor, como o define o Dicionário Houaiss.
      O revisor antibrasileiro não deixou de afirmar, e eu acredito, que, se tivesse sido ele a rever a notícia, não deixaria de pesquisar, pois desconhecia a locução. É a atitude certa.

[Post 3716]

«Aparentamento de listas»?

Parentes desavindos


      Que o desculpassem se era um termo jurídico, disse anteontem à noite, na Sic Notícias, Henrique Monteiro, director do semanário Expresso, mas que ele não entendia o que é «aparentamento dos partidos». E estava flanqueado por dois constitucionalistas, Bacelar Gouveia e Reis Novais. Mas estes fingiram não ter ouvido, apesar de Henrique Monteiro ter repetido a dúvida e ter assegurado que estava a falar a sério. Confesso que também não sei, mas se se citar fielmente o que parece ser a proposta do PSD, alguma luz se faz. O que se lê e ouve em todos os lados é que, no que respeita à eleição dos deputados, o PSD quer admitir «o aparentamento de listas para efeito de combinação de votos nos círculos locais». Ainda assim, não me atrevo a formular qualquer explicação. É claro que não é termo jurídico. Há-de ter sido inspiração do momento de algum porta-voz daquele partido. Se não foi, como tantas vezes é, resultado de incompreensão dos jornalistas.

[Post 3715]

22.7.10

Léxico: «submersível»

Avance a Marinha


      «A Procuradoria Geral da República (PGR) anunciou ontem a abertura de um inquérito para apurar se a relação pessoal entre a procuradora-adjunta, Carla Dias, e José Felizardo, que foi perito no processo dos submarinos e é presidente da INTELI, prejudicou a investigação à compra dos submersíveis ao German Submarine Consortium (GSC)» («PGR investiga relações pessoais», António Sérgio Azenha, Correio da Manhã, 21.07.2010, p. 52).
      «Adjunto», já aqui o vimos, nunca se liga por hífen a outros elementos de locuções. (O hífen deve ter caído da primeira linha, de «Procuradoria-Geral».) Mas não é disso que quero agora falar. Nem daquela inconcebível pontuação depois de «procuradora adjunta». Antes sobre o vocábulo submersível. Talvez não passe de escusado galicismo, mas vejamos o que registam os dicionários.
       Se o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora o faz equivaler a «submarino» (tal como o Dicionário Houaiss, que acrescenta que é pouco usado), já o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define assim «submersível»: «Espécie de torpedeiro que, em caso de necessidade, pode navegar submerso.» Em francês, por exemplo, sous-marin e submergible remetem para conceitos diferentes — e, pelo que posso ver, também em português. Logo, optar por um ou por outro vocábulo não é nunca uma questão estilística.

[Post 3714]

Sobre «afectar»

São dúvidas, senhores


      «Os países que afectam uma despesa relativa mais reduzida e que obtêm um retorno educativo mais modesto, casos do Brasil, México e Chile, são os que revelam um maior atraso.»
      Duas observações: os Brasileiros, tanto quanto observo, não usam (e, consequentemente, os dicionários brasileiros não registam) esta acepção de afectar: «destinar a; atribuir a (recursos, verbas)». Mas já os meus qualificados leitores brasileiros me dirão, com outro grau de certeza, se é como suspeito. Na frase acima, temos outro problema: não será um salto muito grande passar de afectar verbas, dinheiro, meios, recursos para afectar despesas?

[Post 3713]

Exónimos e endónimos

Si eis placeret


      «Ao tratar dos nomes de cidades, línguas, grupos humanos, etc.», escreve o linguista e escritor espanhol José Antonio Millán (e eu traduzo), «convém distinguir entre a forma como se chamam a si mesmos e a forma como lhes chamam outros. Os habitantes da cidade de Londres chamam-na London, enquanto os que vivem na Alemanha se referem a ela como Deutschland. Chamamos ao primeiro termo destes exemplos exónimo, do grego ἔξω, éxō, “fora” e ὄνομα, ónoma, “nome”, e ao segundo, endónimo, de ἔνδον, éndon, “dentro”. As diferenças entre uns e outros são uma lição de História.»
      Para quem, em algumas editoras, há alguns anos decidiu que devemos optar pelos endónimos é que a lição será mais completa e exemplar. Em português, é raríssimo encontrar os termos referidos. Encontramo-los aqui, no glossário do portal do Sistema Nacional de Informação Geográfica (SNIG).

[Post 3712]

21.7.10

Redacção

Língua de cão


      «A questão da delimitação entre a limitação e determinação do conteúdo da propriedade pelo legislador e o conceito de expropriação será abordada adiante.» Esta consonância (e assonância) é muito desagradável, e mais ainda quando o texto não é poético, mas jurídico. Nem sempre, porém, conseguimos escapar a esta circunstância. Não é o caso da frase citada, que, além disso, também inclui o que será sempre de evitar: o uso de vocábulos contidos noutros, como em «delimitação» e «limitação». Proponho: «A limitação e determinação do conteúdo da propriedade pelo legislador e o conceito de expropriação será matéria abordada adiante.» Proponham.

[Post 3711]

Subordinada adverbial

Vírgula, em princípio


      Não é o único caso, mas vejam como uma oração subordinada adverbial, apesar de anteposta à principal, não se separa nunca, dada a estrutura que apresenta, por vírgula da subordinante: «Quando começa o jogo é que se vê quem é o favorito.»
      Bem teriam feito Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa: Edições João Sá da Costa, pág. 645) se tivessem apresentado uma frase com a mesma estrutura para demonstrar que só em princípio se separam com vírgula. Claro que a tendência, decerto que moldada pela ignorância, é nenhuma oração subordinada adverbial, anteposta ou posposta, ser separada por vírgula, e isto mesmo em livros revistos.

[Post 3710]

20.7.10

Selecção vocabular

Vai passar


      «O teste à integridade do poço de petróleo no golfo do México estava ontem a aproximar-se do fim, mas nem a BP nem as autoridades norte-americanas pareciam dispostas a cantar vitória. “Estamos a sentir-nos mais confortáveis, mas o teste ainda não acabou”, disse o vice-presidente da petrolífera, Kent Wells. A pressão no interior estava a aumentar, mas não a atingir os valores esperados, devendo os peritos esticar para lá das 48 horas a duração do teste» («Poço não apresenta fugas mas teste deve continuar», Susana Salvador, Diário de Notícias, 18.07.2010, p. 32).
      O grande modismo (e má tradução do inglês), já aqui o afirmei diversas vezes, do nosso tempo. Como quase todos, porém, irá passar. E por mim nunca passa.

[Post 3709]

Ortografia: «Kaiser»

Obedeça ao estilo


      «Conta Pedro Falcão que um dia o rei foi visitar oficialmente o kaiser Guilherme II, senhor do império alemão» («Rapsódia em C», Nuno Pacheco, P2/Público, 19.07.2010, p. 3). E assim três vezes: kaiser, kaiser, kaiser. (E nisto é parecido com o mostrengo, que voou três vezes a chiar.)
      Se era para escrever como se não escreve em alemão, então o jornalista poderia ter optado pelo aportuguesamento — cáiser. Em alemão, o título e designação do imperador do Sacro Império Germânico (962–1806), da Áustria (1804–1918) e especialmente da Alemanha (1871–1918), para usar a definição do Dicionário Houaiss, é Kaiser. Sobretudo, o jornalista deveria ter seguido o que recomenda o próprio Livro de Estilo do jornal em que escreve: «Em alemão, os substantivos escrevem-se com maiúscula inicial e não fazem o plural acrescentando s.» Até a consulta do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora resolvia, no que concerne à ortografia, a questão. (Já a definição é, neste dicionário, menos informativa: «imperador da Alemanha Guilherme II, desde a sua coroação, em 1888, até 1918 (fim da Primeira Grande Guerra)».)

[Post 3708]

Léxico: «psi»

Em vez de linhas para encher


      «A BP fechou a última válvula da tampa de contenção na quinta-feira, interrompendo pela primeira vez em quase três meses a fuga de petróleo. A leitura de pressão, 41 horas depois, era de 6745 psi, abaixo dos 7500 psi que os cientistas diziam garantir que não havia qualquer fuga no poço. A pressão continuava a subir lentamente, ao ritmo de 2 psi por hora, quando o esperado seria entre 2 e 10 psi» («Poço não apresenta fugas mas teste deve continuar», Susana Salvador, Diário de Notícias, 18.07.2010, p. 32).
      Já não pedia mais, mas a jornalista tinha obrigação de explicar o significado daquela unidade — psi. Que é usada para medir a pressão, não há dúvida, percebe-se do próprio texto. Psi vem do inglês pounds per square inch, que em português é libra por polegada quadrada (lb/pol²). (Para outras grandezas físicas e suas unidades, ver aqui.)

[Post 3707]

Léxico: «lêntico»

Não vão encontrar aí


      «É que este mexilhão nunca foi encontrado em regimes lênticos (sistemas de água parados), sendo que uma das explicações passa pela alteração de habitats que as barragens e açudes provocam, afastando os salmonídeos, já que impedem a sua normal circulação nos rios. E sem hospedeiro para as larvas a espécie não tem futuro» («O mexilhão que travou uma barragem», Roberto Dores, Diário de Notícias, 18.07.2010, p. 56).
      Para não ir mais longe, nem o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa nem o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora o regista, ao contrário do Dicionário Houaiss: «diz-se de ambiente de águas paradas ou de pouca movimentação como lagos e charcos» e «que vive em tal ambiente (diz-se de organismo)».

[Post 3706]

«Acepção»/«acessão»

Parece mentira


      «Chega ao mundo com estatuto de parasita. As larvas permanecem fixas às guelras do salmão e da truta. Depois de várias metamorfoses acaba por se soltar do hospedeiro. Já é um mexilhão de rio do Norte na verdadeira acessão da palavra» («O mexilhão que travou uma barragem», Roberto Dores, Diário de Notícias, 18.07.2010, p. 56).
      Até há quem confunda (e gente que escreve), na oralidade e na escrita, «acepção» com «asserção», mas «acessão» nunca tinha visto. Qualquer dia, vamos ter mais uma variante a circular por aí, e com mais confusões: «aceção», que é a grafia segundo o Acordo Ortográfico de 1990.

[Post 3705]

19.7.10

Sobre «banhos»

Bons banhos


      Faz o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora muito bem em autonomizar o substantivo plural «banhos», ao contrário do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que o inclui no verbete «banho». Banhos, no plural, é o anúncio oficial de um casamento, também chamados proclamas, e não têm nada que ver com o étimo de «banho». Agora, vejo aqui em Cervantes que o conde mandou «echar bando por toda su armada que, so pena de la vida, volviese la niña cualquiera que la tuviese». Aquele echar bando é o mesmo que publicar um édito e o étimo de «bando» é justamente o mesmo dos nossos «banhos»: o francês ban, e este do frâncico ban.

[Post 3704]

18.7.10

Sobre «camarada»

Seu tongzhi duma figa!


      Em Pirescoxe, Jerónimo de Sousa (revelou-o o próprio ao jornal i) é tratado por camarada mesmo pelos não comunistas. (Condicionado pela topografia urbana da capital, o jornalista perguntou: «No seu bairro tratam-no por camarada?»)
      Vejamos agora como definem os dicionários o vocábulo camarada. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora diz, pondo tudo dentro do mesmo saco, que é o «tratamento entre militares e entre filiados de certos partidos políticos». Já o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa não funde na mesma acepção as duas definições (embora, quanto à que respeita aos militares, confunda tudo), e assegura que é a «denominação usada entre membros dos partidos de esquerda e dos sindicatos». Sim, mas que sindicatos?
      O vocábulo «camarada» (ou outro, em línguas diversas, para exprimir o mesmo, como tovarich em russo e tongzhi em chinês, por exemplo) no seu uso social como expressão de igualitarismo não se limitou à esquerda (pendente dessa dicotomia, esquerda/direita, nascida na França revolucionária), pois entre os fascistas alemães e os falangistas espanhóis era comum. Agora, até na China esta forma de tratamento está a cair em desuso. Naturalmente e à força: no fim de Maio, a autoridade municipal de transporte de Pequim divulgou uma circular em que proibia os motoristas dos autocarros de se dirigirem aos passageiros por camarada. Aos que parece, e isto é o mais importante, eram há muito os únicos a fazê-lo. Na última década, a palavra foi apropriada pela gíria dos jovens para designar, porque os dois caracteres são os mesmos, os homossexuais. Não é irónico?

[Post 3703]

Concordância

Só faltava esta


      No próximo ano, vai realizar-se um novo recenseamento da população. Vejam o que se lia no Correio da Manhã: «Censos pergunta orientação sexual». Aqui também me deve ter escapado alguma coisa. Mas é título, dei o desconto. Contudo, o jornalista, Bernardo Esteves, começa mal: «O Censos do próximo ano vai questionar pela primeira vez os portugueses sobre a sua orientação sexual, e a resposta é obrigatória.» E mais: «É obrigatório responder ao Censos, sendo a recusa punida com pagamento de coima entre 250 a 25 mil euros.» (E eu que pensava que a recusa seria punida com a coima, mas não...) Mas também Paulo Côrte-Real, da ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), afirmou que «esta inovação do Censos poderá ser útil». Suspeito, porém, que o jornalista até a mim me poria a dizer estes disparates.
      Senhor jornalista, senhora revisora, então «censos» não é um plural? Ou pensam que se trata de vocábulo semelhante a «cosmos»? Parece-me simples: quando, em 1970, se realizaram, pela primeira vez e simultaneamente, os recenseamentos da população e da habitação, o vocábulo «censo» passou a ser usado no plural — «censos». Ora, a alteração exige mudanças na concordância, ou achavam que não? Valha-nos Deus...

[Post 3702]

17.7.10

Tradução: «windfall gains»

O vento o dá, o vento o leva


      Caro Luís Caetano: na edição n.º 4 da Ops!, Pedro Bingre, num texto intitulado «A bolha imobiliária: duas faces da mesma (falsa) moeda», traduz a locução inglesa windfall gains por «fortunas trazidas pelo vento», e justifica numa nota final: «Tradução livre da expressão windfall gains — ganhos económicos não resultantes de actividades económicas produtivas da parte do beneficiário. Habitualmente resultam de manipulações políticas dos mercados económicos, de modo a introduzirem uma “renda de escassez”, um acréscimo artificial entre o custo de produção e o preço de venda de um dado produto. Às tentativas de obter windfall gains a literatura económica anglo-saxónica dá o nome formal de rentseeking activities, e o nome informal de bribery.»
      Parece original, se não apenas for muito literal, mas já as Ordenações lhes chamavam cousas trazidas pelo vento. Já tenho visto a designação, mais acomodada aos nossos tempos, «ganhos passageiros».

[Post 3701]

«Perspectiva»/«prospectiva»

Um olhar neutro


      Podia perguntar-se porque é que os dicionários não registam o verbo prospectivar, que se usa, se registam perspectivar, sinónimo. Serão mesmo sinónimos? Então leiam este título, semelhante a muitos outros no uso simultâneo dos substantivos «prospectiva» e «perspectiva»: «A Universidade portuguesa: Perspectiva, situação e prospectiva» (da autoria de José Ferreira Gomes). Nestoutro, leia-se: «A propósito ainda de uma definição de termos: perspectiva e prospectiva significam a mesma coisa. Prospectiva implica em uma ação de olhar para frente, mas é de um olhar à distância não sobre o que se tem na memória, mas a de um olhar à distância sobre o que ainda não existe, o futuro. Prospectar significa então olhar de longe e, se se exagerar, pode significar até adivinhar o futuro, sinonimicamente falando.» Se a perspectiva é um olhar para o passado e a prospectiva um olhar para o futuro, como podem ser apresentados como sinónimos?

[Post 3700]

«Adquirido» por «dado adquirido»

Dormideira antiacadémica


      Aqui lê-se que «a autonomia dos estabelecimentos de ensino superior é um adquirido institucional», ali que não sei quê é um «adquirido científico», acolá que a «solidariedade é um adquirido psicossocial», no outro sítio que determinado comportamento configura uma «nova mentalidade que está ainda longe de ser um adquirido generalizado a todos os autarcas»...
      Em que parte do filme é que eu adormeci e se passou de «dado adquirido» para «adquirido»? Ou será que não querem dizer o mesmo? Que a origem é académica, disso não tenho dúvidas. E a evolução ainda não chegou aos dicionários. Afinal, até há dicionários que ainda não autonomizaram «adquirido» como adjectivo...

[Post 3699]

«A fortiori ratione»

É latim, senhores


      O mesmo incompreensível erro em três meses justifica perfeitamente uma intervenção: não se escreva *a forteriori, mas a fortiori. É o início da expressão do latim eclesiástico a fortiori ratione, que significa «por causa de uma razão mais forte», ou seja, «com muito mais razão». Fortiori é um adjectivo (fortis, e) no grau comparativo. A quem escreve *forteriori, só pergunto uma coisa: qual é então o adjectivo no grau normal? Já percebi: escrevem assim porque foi assim que viram. Recomendo então que escolham as fontes com mais critério.

[Post 3698]

«Como nos prepararmos...»

Agora sem dragões


      «Como nos preparar para esses novos desafios?», perguntou o ensaísta. Poderia ter perguntado de outra maneira? Sim: «Como nos prepararmos para esses novos desafios?» Hoje, até prefiro, numa frase simples introduzida por como, usar o infinitivo pessoal. Andei a estudar a questão e o meu juízo de gramaticalidade de frases com esta estrutura alterou-se. Afinal, leio frases semelhantes em autores consagrados, e as gramáticas não o proíbem. Mais: é como me parece que as pessoas falam. Há três meses, um leitor escrevia-me: «A Páscoa está aí, e com ela as férias escolares e os filmes para crianças (M6). E um deles, em exibição em variadíssimas salas, tem por título Como Treinares o teu Dragão (How to train your dragon). Pobres crianças, nem em férias as dispensam de desaprender português!»
      Digam-me apenas se dizem e escrevem a frase a), «Como nos preparar para esses novos desafios?», ou b), «Como nos prepararmos para esses novos desafios?» Está aberto o fórum.

[Post 3697]

Ortografia: «macroorganização»

Assim é


      «É neste contexto», escreveu o ensaísta, «que surge a necessidade de uma administração educativa que tenha a capacidade de orientar, gerir e desenvolver centralmente esta macro-organização.» Pois é, mas com os antepositivos macro- e micro-, e ainda segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1945, nunca se utiliza hífen. Logo, macroorganização.

[Post 3696]

«Escola Primária»

Pobres e primários


      Talvez se recordem de aqui ter predito recentemente, a propósito da melhor tradução da locução inglesa junior school, que algum dia voltaríamos a ter a designação «escola primária»/«ensino primário». Não esperava era que fosse tão cedo. O Conselho das Escolas, um órgão consultivo do Ministério da Educação, apresentou agora, entre outras propostas, a de se voltar a usar a designação Ensino Primário.
      Semelhante também é o quase desuso, éramos ricos, decorria a veloz e próspera década de 1990, a que foi votado o vocábulo «pobre». Havia pobres, sempre houve, mas repugnava aos políticos e à classe dominante referir-se-lhes nestes termos crus. Havia, então, os «mais desfavorecidos» e, já no limite do eufemismo, os «excluídos socialmente». Desde o ano passado, porém, voltámos a ter, para bem da ordem natural, os nossos queridos pobrezinhos. O PSD até já chamou a ministra do Trabalho e Solidariedade à Assembleia da República por causa do fim do apoio às refeições nos Ateliês de Tempos Livres, e o deputado Adão e Silva denunciou que estão a tirar o pão às crianças pobres.

[Post 3695]

16.7.10

Sobre «brasileiro»

Peruleros, brasileiros e galegos


      Até o Dicionário Houaiss regista a acepção pejorativa de «brasileiro» que significa «emigrado, geralmente rico, que retorna do Brasil a Portugal». Como também o faz o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: «Português que residiu no Brasil e que regressou trazendo mais ou menos haveres.» Mas não, oh espanto!, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. Se isto não é andar pouco acordado, não sei que seja. Também a língua castelhana tem algo semelhante: o perulero, que é a pessoa que regressou do Peru a Espanha, e especialmente a endinheirada.
      É também preciso consultarmos o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa para comprovar que «galego», além do natural ou habitante da Galiza, é, depreciativa e informalmente, o «indivíduo que faz trabalho pesado e intenso» e também, e talvez por isso, o «homem grosseiro, malcriado ou rude», acepções que o politicamente correcto (mas linguisticamente incorrecto) Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora omite. Aqui, porém, os dicionários de galego já não acompanham tanta desfaçatez, e «galego», além da língua gémea da nossa, é somente a «persoa natural ou habitante de Galicia». Nada de masoquismos.

[Post 3694]

Léxico: «mutala»

Vem de África


      «Anabela cresceu em Caála, na actual província do Huambo, mas era na zona sul de Angola, em Cuanhama, que montavam o acampamento “com as mínimas condições”. Os mínimos, ainda assim, incluíam um frigorífico. Pernoitavam numa mutala, um estrado de madeira feito em cima de uma árvore, em cujo ramo deitavam um colchão de espuma, para não fazer barulho, e à alvorada estavam prontos para a caçada» («A menina dos torneios de tiro», Sara Alves, Notícias Magazine, 11.07.2010, pp. 78-79).
      Não é vocábulo encontradiço. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora di-lo provindo do quimbundo e dá a seguinte definição: «plataforma montada nos ramos de uma árvore, para espera de animais selvagens». O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que tantas falhas dos outros supre, não regista o vocábulo.
      O Novo Dicionário Banto do Brasil (Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2003, p. 144), de Nei Lopes, que diz conter «mais de 250 propostas etimológicas acolhidas pelo Dicionário Houaiss», não regista o termo em verbete autónomo, mas em «mataro» diz: «Soldado (VF [Vogt & Fry]) Possivelmente, do quimbundo mutala, vigia». Contudo, a definição de «mutala» no Dicionário Houaiss é semelhante à do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora.

[Post 3693]

15.7.10

Verbo «reaver»

O impensável


      Isto globalmente, porque depois sempre encontramos casos de arrepiar. Como este: «O autarca de Oeiras, que ainda não foi notificado da decisão do TRL [Tribunal da Relação de Lisboa], foi absolvido do crime de abuso de poder e reaveu a posse de um terreno em Cabo Verde, que lhe tinha sido confiscado, assim como foi ordenada a devolução de bens apreendidos à ordem do processo, descontados que sejam os 197 266 euros de indemnização ao Estado que a Relação fixou, bastante menos do decidido em primeira instância, 463 mil euros» («Isaltino Morais não perde mandato», Carlos Rodrigues Lima, Diário de Notícias, 14.07.2010).
      Defectivo, irregular, o verbo reaver está para além de tudo o que é de esperar — e por isso se tem de decorar. É imperdoável que um jornalista dê tal erro.
      A terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do verbo reaver é reouve (eu reouve, tu reouveste, ele reouve, nós reouvemos, vós reouvestes, eles reouveram).

[Post 3692]

«Extra», adjectivo variável

Aquém-fronteiras


      «Os horários normais continuam a representar mais de 90% da oferta, mas este ano o seu crescimento é modesto: cerca de 500 vagas extras» («Só 500 lugares extras nos diurnos», Pedro Sousa Tavares, Diário de Notícias, 13.07.2010, p. 2).
      Afinal, não é só em Espanha. O Diário de Notícias, inequivocamente o jornal português em que mais se reflecte (e mais, não tem «gabinete») sobre a matéria de que são feitos todos, a língua, prossegue esta prática.

[Post 3691]

14.7.10

Léxico: «amiguismo»

Ainda não viram


      «O também vice-presidente [d]a distrital do PSD/Porto afirmou ainda que “esta é uma imagem de marca da governação socialista que está em fim de ciclo e que dá origem a exemplos de amiguismo e compadrio político”» («Valter Lemos nega favorecimento», Diário de Notícias, 13.07.2010, p. 11).
      Se querem mesmo ler uma definição do vocábulo amiguismo — consultem um dicionário espanhol. O Diccionario de la Real Academia Española (DRAE) regista no respectivo verbete: «Tendencia y práctica de favorecer a los amigos en perjuicio del mejor derecho de terceras personas.» O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora regista o vocábulo, mas, sendo um vocabulário, não apresenta uma definição.

[Post 3690]

13.7.10

Léxico: «esportela»

Ora esta


      Agora imaginem que era preciso traduzir «muchachos de la esportilla». Estamos no porto de Sevilha, o grande empório comercial do Sul da Europa no dealbar do século XVII. O Dicionário Houaiss não regista esportela nem mesmo esporta. Que o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora regista. Esportela é uma pequena esporta, ou seja, uma espécie (e este está registado como regionalismo) de sacola ou seira de esparto ou junco. (Mas o Dicionário Houaiss já regista espórtula, outro diminutivo latino para o mesmíssimo cestinho. Na Roma antiga, era a cesta usada para distribuir entre o povo alimentos ou dinheiro por ordem do imperador ou de algum nobre. Começou por ser isso, que agora, por extensão de sentido, é esmola, gorjeta, gratificação, donativo em dinheiro ou género.) Os esportilleros eram uns rapazes maus, de ínfima categoria social, que nas praças e portos transportavam com os seus cestos, as suas esportelas, o que lhes mandassem. Uma espécie de recadeiros.

[Post 3689]

Sobre «enteado»

Curioso


      Para exprimirmos, só com um vocábulo, a ideia de alguém que é filho de união anterior de um dos cônjuges, em relação ao padrasto ou à madrasta, temos apenas uma palavra: enteado. A língua espanhola, em contrapartida, dispõe de três: entenado, alnado e hijastro. As duas primeiras têm o mesmo étimo de «enteado»: a expressão latina ante nātus, ou seja, «nascido antes». A mais curiosa é a última, hijastro. Deriva do vocábulo latino filiaster. Assim, bem podia fazer parte do léxico da língua portuguesa, pois «padrasto» provém de patrāster.

[Post 3688]

Léxico: «corma»

Palavras que nos faltam


      Na língua portuguesa não sei, mas em espanhol a lista dos vocábulos com origem árabe estende-se, provavelmente, a mais de quatro mil. Um deles é corma (do árabe qurmah, e este do grego κόρμος, «peça de madeira; tronco de árvore»). E que significa? Era uma espécie de prisão composta de dois pedaços de madeira, que se adaptavam ao pé do homem ou de um animal para impedir que andasse livremente. Cervantes usa-o nas suas obras.
      Temos, isso sim, vocábulos em que o termo grego entra como elemento de formação: camptocormia (deformidade que consiste na flexão do tronco para a frente) e nanocormia (anomalia de desenvolvimento caracterizada por pequenez anormal do tronco humano).

[Post 3687]

Estrangeirismos

Sem emenda


      Na Antena 1, acabo de ouvir o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, falar em «testes de resistência do sistema bancário». Nos jornais, escreve-se desta forma negligente: «Os “stress tests” que estão a ser feitos aos bancos portugueses indicam que o sistema bancário de Portugal é sólido, robusto e não tem problemas de capital, disse ontem o secretário de Estado do Tesouro em entrevista à agência Reuters. Carlos Costa Pina revelou que, até agora, as instituições mostram bons rácios de solvabilidade» («“Stress tests” indicam sistema sem problemas», Metro, 13.07.2010, p. 6).

[Post 3686]

12.7.10

Acordo Ortográfico

Desesperançado estou


      De novo os pontos cardeais, e de novo as regras do Acordo Ortográfico de 1990. Sempre houve, essa é que é essa, trapalhadas nesta matéria — mesmo em livros e publicações periódicas com revisão. Comecemos com um erro face ao Acordo Ortográfico de 1990 e de 1945: «É esse o desafio que colocamos: de Norte a Sul, incluindo ilhas, eis 10 pistas para deixar para trás as multidões, ir pelos caminhos que só encontra quem já conhece — e aproveitar a viagem!» («Portugal a descobrir», João Paulo Batalha, Única, 3.07.2010, p. 60). Não interessa agora, pois sempre foi incorrecto. Agora quanto ao que mudou. «“Nasci no dia 18 de outubro de 1925, em Chemnitz”, conta-nos, hoje, no seu apartamento nesta cidade do Leste da Alemanha» («A história do prisioneiro n.º 105.027», João Paulo Batalha, Única, 3.07.2010, p. 54). «A sul existia uma cintura de tundra e as únicas regiões permanentemente habitadas eram a Península Ibérica, a península italiana, os Balcãs, a bacia do rio Danúbio e o Sudoeste da França» («O superarqueólogo», Virgílio Azevedo, Única, 3.07.2010, p. 48).
      Como é que o Gabinete de Copydesk do Expresso deixa passar estes erros? Qual é a dificuldade de interpretação da Base XIX, 2.º, g), do Acordo Ortográfico? Ou será mais um triste caso de uso das regras à la carte, como já aqui vimos? Podem os leitores, ao menos, esperar que estes homens de gabinete (e o termo parece-me bem inadequado para uma secção ou departamento de jornal) voltem a analisar a questão?

[Post 3685]

«Quiçá», de novo

Admirável, sim


      Já foi há alguns anos, mas talvez se lembrem de aqui ter confessado que não gosto nem um pouco da palavra «quiçá». Nada mudou, mas, agora que estou a reler o D. Quixote de la Mancha na tradução de José Bento, vejo, com espanto e admiração, que este notável tradutor, em 80 ocorrências que há do vocábulo quizá no original, apenas verteu uma — uma! — por «quiçá». Outro fora, e mais de 80 encontraríamos.

[Post 3684]

«Extra» em espanhol

Além-fronteiras


      No final de Maio, a Fundéu (Fundación del Español Urgente) veio recomendar, contra um uso que se generalizou e o que alguns dicionários registam, que se «generalice el plural extras en construcciones como horas extras. Dada la tendencia a dejar invariable la palabra extra cuando funciona como adjetivo de un nombre en plural, la Fundéu BBVA, que trabaja asesorada por la Real Academia Española, recomienda que se haga el plural natural extras, tal como se hace con cualquier otro adjetivo, es decir, que se respete la concordancia de número entre el sustantivo y el adjetivo. Así, la Fundéu BBVA aclara que son aconsejables las formas horas extras, pagas extras, condiciones extras, recortes extras, etc.»

[Post 3683]

11.7.10

«Dar/tirar residência»

Assim me parece


      Afinal, também a tradução de José Bento, por muitos considerada a melhor do clássico espanhol, opta pela locução «prestar contas» em vez de «dar residência»: «— Senhor governador, de muito boa vontade deixaremos ir vossa mercê, embora nos custe perdê-lo, que o seu engenho e o seu procedimento cristão obrigam a desejá-lo; mas já sabe que todo o governador tem obrigação de, antes de ausentar-se do lugar onde governou, prestar contas do seu governo: dê-as vossa mercê dos dez dias que governou, e vá para a paz de Deus» (O Engenhoso D. Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes. Tradução e notas de José Bento e revisão de Helder Guégués. Lisboa: Relógio D’Água, 2005, p. 816). E isto apesar de, na nota inicial, o tradutor ter escrito: «Pretendi servir o livro traduzido, cingindo-me muito à sua letra, que cifra o seu espírito, o que não foi fácil nem isento de dúvidas e receios». De facto, parece-me um caminho muito perigoso, mas, se alcançado, como nesta tradução o foi, e de uma forma superiormente competente, com muito melhores resultados.

[Post 3682]