30.4.10

Como se escreve nos jornais

O preconceito de corrigir


      No Público de hoje, a jornalista Clara Barata continua a afirmar que Gordon Brown chamou preconceituosa — ui, que insulto! — a Gillian Duffy: «O primeiro-ministro trabalhista, apesar de no dia anterior ter sido arrasado pela gaffe de ter sido ouvido a chamar “preconceituosa” a uma eleitora idosa, até se aguentou — embora sem brilho» («Cameron arrasa Brown no último debate a uma semana das eleições», Clara Barata, Público, 30.4.2010, p. 18). Na edição de anteontem do El País, traduzia-se por «fanática»: «Y la conversación reflejó la otra cara de Brown. “Ha sido un desastre. No me teníais que haber puesto en esa situación. ¿De quién ha sido idea?”, dice, con aire más deprimido que airado. “Qué mujer tan fanática”, concluye Brown en un tono muy despectivo.»

[Post 3403]

Como se escreve nos jornais

O desnorte ortográfico


      «Nick Clegg, o líder dos liberais-democratas, o terceiro homem que foi o factor surpresa da campanha, foi sempre furando entre Cameron e Brown, olhando as câmaras de frente, colocando-se como o verdadeiro representante do povo, entre “estes dois”. Resultado, segundo a sondagem YouGov para a SkyNews: ficou em segundo, com 32 por cento das preferências dos eleitores» («Cameron arrasa Brown no último debate a uma semana das eleições», Clara Barata, Público, 30.4.2010, p. 18).
      No Público tem sido assim: ora Liberais Democratas, ora liberais-democratas, ora lib-dem, ora libdem. O desnorte completo. Cá estamos nós, leitores, para pagar.

[Post 3402]

«Sua Alteza»?

Vossa Esperteza


      «Saiba vossa majestade/quem é Genebra Pereira/que sempre quis ser solteira/por mais estado de graça.» É um excerto do monólogo da feiticeira — cuidado!, agora tem de se antepor sempre a precauciosa palavrinha «alegada», pois apenas dizem que era feiticeira — Genebra Pereira, do auto vicentino Fadas. Ao que parece, esta forma de tratamento, vossa majestade, era pouco comum na primeira metade do século XVI, época em que ainda continuava, depois de séculos a usar-se, Vossa Mercê, que depois se estendeu a qualquer membro da pequena burguesia urbana — e, por fim, foi parar, através do você, à estrebaria. Isto é mero intróito para falar de uma questão relacionada com formas de tratamento no último romance histórico de Isabel Stilwell, D. Amélia — A Rainha Exilada Que Deixou o Coração em Portugal (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2.ª ed., 2010. Revisão de Lídia Freitas e Sofia Graça Moura). Numa cena (p. 327) que decorre no dia 13 de Janeiro de 1891, por exemplo, D. Amélia está acompanhada de uma das suas damas, a duquesa de Palmela, Helena Maria Domingas de Sousa Holstein. E D. Carlos aparece:
      «— Boa tarde, Helena.
      A duquesa de Palmela levantou-se e cumprimentou-o.
      — Estava já a sair, Sua Alteza.»
      E é assim na obra toda: Sua Alteza para aqui, Sua Alteza para acolá. Primeira questão: a forma de tratamento por alteza não se aplica somente a príncipes, arquiduques e duques? Ora, D. Carlos, que tinha sido príncipe real e duque de Bragança, com a morte do pai, o rei D. Luís, fora aclamado rei de Portugal a 28 de Dezembro de 1889. Como soberano, tinha direito a ser tratado, e sê-lo-ia decerto, por majestade. Segunda questão: porque é que a autora não respeitou a distinção entre tratamento directo e tratamento indirecto? Estando a dirigir-se directamente ao rei, a duquesa de Palmela deveria ter dito Vossa Majestade. Se se estivesse a referir, numa conversa com terceiros, ao rei, deveria usar a forma de tratamento indirecto, dizendo então Sua Majestade.

[Post 3401]

29.4.10

Formação


Curso de Técnicas de Revisão


      Nos dias 14, 16, 21, 23, 28 e 30 de Junho, voltarei a estar na Booktailors, ao Chiado, como docente de Técnicas de Revisão (terceiro curso de formação intermédia). Se quiser aparecer (há lanchinho no intervalo), inscreva-se. Mais informações aqui.

[Post 3400]

Léxico: «eneacampeonato»

Não pensem nisso


      «“Para mim, é complicado. Prefiro dizer nove seguidos.” O espanhol Pedro Gil, melhor marcador do campeonato de hóquei em patins, ainda tem problemas com a palavra eneacampeão» («O eneacampeonato entrou no vocabulário corrente do FC Porto», Manuel Assunção, Público, 29.4.2010, p. 36).
      Se o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora já regista pentacampeão e pentacampeonato, não vejo como possa deixar de acolher eneacampeão e eneacampeonato — embora desnecessariamente, pois trata-se tão-somente de juntar os antepositivos penta- e enea- a outros elementos. Com este último, os dicionários registam um pouco mais de uma dúzia de vocábulos. Imaginem agora o que seria despejar nos dicionários, por exemplo, todos os termos criados ultimamente com recurso ao antepositivo mega-, como mega-acontecimento, mega-aliança, megabanco, megabarragem, megabuzinão, megacampanha, megacentral, megacentro, megachurrasco, megaconcerto, megaempreendimento, megaerupção, megaescultura, megaevento, megaêxito, megaexposição, megafesta, megafestival, megafundo, megaigreja, megajantar, megajunta, megaleilão, megamissa, meganavio, meganegócio, megaobras, megaofensiva, megaoperação, megarrastreio, megarrebelião, megarrusga, megassucesso, todos eles usados na imprensa.

[Post 3399]

«Educação» ‘vs.’ «instrução»

Rochdale


      «Uma viúva ofendida por ter sido insultada pelo primeiro-ministro. Pior: uma senhor idosa, obviamente de pouca educação, que nem sequer sabe o significado da palavra que o político, “um homem educado”, usou para a ofender. Foi isto o principal acontecimento do dia do primeiro-ministro britânico Gordon Brown, ao chamar “mulher preconceituosa” a uma viúva de 66 anos que tinha acabado de o interpelar, quando já ia dentro do carro — e levava o microfone de uma televisão na lapela ainda ligado» («Gordon Brown insulta viúva em gaffe de campanha», Clara Barata, Público, 29.4.2010, p. 17).
      Será que Gillian Duffy, a viúva insultada por Gordon Brown, tem pouca educação ou pouca instrução? (A propósito: a tradução de Clara Barata é incompreensível e paradoxalmente disfemística, pois bigoted woman, que foi o comentário do primeiro-ministro da Grã-Bretanha, é muito mais depreciativo.) Há múltiplas relações entre os termos, incluindo de sinonímia parcial, mas é claro que é de instrução que se trata. A Clara Barata sabia que o primeiro ministério, criado em 1870, durante um governo presidido pelo duque de Saldanha, inteiramente vocacionado para as questões da instrução se denominava Ministério dos Negócios da Instrução Pública? Claro que à actual pedagogia do sucesso interessa muito mais o conceito mais holístico de «educação»...

[Post 3398]

28.4.10

«Essencialmente»

Doce engano


      Tinha de desbastar nas centenas de advérbios em –mente, e que descobri eu? Não querem saber? Então adeus! Já que pedem: a definição do advérbio essencialmente no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora deixa muito a desejar. Apenas isto: «por natureza» e «por condição». O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa acha (às 17.24) que não precisamos de saber. Imaginem agora, para não ser muito rebuscado, que alguém estava a referir os novos saberes apontados pelo relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, da Unesco, presidida por Jacques Delors, e queria resumi-los, escrevendo: «Esses novos saberes devem, essencialmente, valer para a pessoa, etc.» Qual das acepções foi aqui usada? Nenhuma! Compulsem então o Dicionário Houaiss e consultem o respectivo verbete: «naquilo que é mais importante, essencial; na essência; basicamente, fundamentalmente». Todos os dicionários são iguais?

[Post 3397]

«Submetível»?

Nada obsta


      Aborrecível, abrangível, absorvível, aferível... existem? Sim, e estão regularmente formados, pois o sufixo –ível foi aplicado a verbos da 2.ª e da 3.ª conjugações. O «exemplário», como refere o Dicionário Houaiss, é muito rico, passa das quatro centenas. Esta é uma tarefa do dia-a-dia do revisor e do tradutor: averiguar se determinada palavra está bem formada e pode ser usada. Na revisão de uma dissertação que me está a ocupar há muitos dias, a autora usou «submetível», que nenhum dicionário regista e pouca gente usa. Por enquanto, é caso para dizer, pois nada o impede.
      Escrevi «dissertação», mas a autora (e a orientadora, vejo aqui nas anotações manuscritas) chama-lhe «tese». Ora, trata-se de um mestrado, e a legislação aplicável distingue entre «tese de doutoramento» e «dissertação de mestrado». Que nos pode dizer Fernando Ferreira sobre a distinção?

[Post 3396]

Arrendar e alugar, outra vez

Não me impressiona


      «Ainda hoje», comentou aqui o leitor Fernando Ferreira, «na rubrica Bom Português da RTP, a frase “Tenho uma casa para alugar” era considerada errada. No entanto, a verdade é que já muitos dicionários (Porto Editora, Priberam, etc.) consideram “alugar” como sinónimo de “arrendar”, e definem “aluguer” como um “contrato de locação de uma coisa móvel ou imóvel”. Tendo em conta os milhares de anúncios “Aluga-se” que particulares e agências imobiliárias têm espalhado pelo país em lojas, apartamentos e vivendas, penso que é esta a opção correcta, porque já não há maneira de voltar atrás. O que pensa o Helder?»
      Penso que devemos lutar responsavelmente por manter a distinção, como também o deveremos fazer em relação a mandato/mandado, réu/arguido, entre outras. É verdade, como eu próprio referi há quase três anos, que a distinção, consagrada no Art.º 1023.º do Código Civil, não serve as mudanças entretanto ocorridas na sociedade, mas a norma legal ainda não foi alterada. Deverão ser os dicionários, que acolhem e propagam tantos erros, a fazê-lo? Até porque os dicionários não viriam, neste caso, antecipar-se ou forçar uma alteração legislativa, nada de veleidades, mas antes consagrar, como o fazem, erradamente, em relação a outros conceitos, erros muitos comuns.

[Post 3395]

«Quando muito»

Muito comum


      «Cerca de 50 pessoas ali permaneciam com esperanças que algo mudasse, e logo se percebeu que não tinham soluções para chegar a Lisboa. Uns quantos fizeram-se a pé pelos passeios da Marginal. Não iriam longe, talvez para o Estoril, quanto muito até São João, outros quedavam-se junto aos semáforos, e acercando-se da janela do pendura, perdiam a vergonha: “O senhor desculpe, vai para Lisboa?”» («“O senhor desculpe, vai para Lisboa?”», Carlos Filipe, Público, 28.4.2010, p. 21).
      É uma expressão quantitativa e escreve-se quando muito, ou seja, «no máximo».

[Post 3394]

27.4.10

Ortografia: «criptoprovedor»

Nada críptico


      «Bem sei que a Lusa se restringe aos factos (e que o texto da notícia contém tudo o que precisamos de saber) mas, sem querer armar-me em cripto-provedor, o “ex-cabo nazi” dá a ideia dele ter deixado de ser nazi e o “fundou culto no Chile” tem um toque triunfalista que, para quem não lê os corpos das notícias, atira para segundo ou terceiro plano o facto de ter abusado sexualmente de 25 crianças, graças ao “culto” que fundou» («Uma vergonha», Miguel Esteves Cardoso, Público, 27.4.2009, p. 39).
      Miguel Esteves Cardoso deveria ter escrito criptoprovedor, pois o elemento de formação de palavras cripto- só se liga por hífen ao segundo elemento quando este começa por h. Então o Miguel já não se lembra dos criptopórticos? E o criptopórtico das Galerias Romanas da Rua da Prata?

[Post 3393]

26.4.10

Português-padrão

Ai, credo!


      Nos Dias do Avesso de hoje, Isabel Stilwell descobriu algo de crucial: ela pronuncia /consâilho/ e Eduardo Sá pronuncia /consêlho/. Esta é que é a verdadeira fractura social entre nós. Os lisboetocêntricos decretaram que só a primeira pertence ao português-padrão, e um dia, se puderem, levam (ou já levaram?) isto para a escrita, e então é que os outros ficarão, mesmo sem abrirem a boca, expostos no seu falar dialectal. Não vejo melhor motivo para uma guerra civil.

[Post 3392]

Ordinal de 5000 milhões

Ordem!


      A pergunta de um leitor é muito sucinta: «Como se escreve o ordinal de 5000 milhões?» Há-de ser por extenso que o leitor pretende saber, pois abreviado é demasiado simples: 5000 000 000.º Por extenso, e quase todas as gramáticas ignoram esta questão, é quinto milésimo milionésimo. Não perguntei ao leitor para que queria saber, mas podia muito bem tratar-se de uma aposta.

[Post 3391]

Conceitos

Não me arrependo


      Podemos arrepender-nos por faltas cometidas por terceiros? Podem os Alemães, por exemplo, estar arrependidos por Hitler ter mandado matar milhões de judeus? Há jornalistas do Público que pensam que sim: «O ministro dos Negócios Estrangeiros, David Miliband, declarou-se, segundo o seu gabinete, “horrorizado” e o embaixador britânico no Vaticano, Francis Campbell, encontrou-se com responsáveis da Santa Sé para apresentar as desculpas de Londres. Face ao incidente, segundo a edição on-line do Times, conselheiros do Papa estarão já arrependidos de o líder católico ter aceite o convite para visitar o país» («Gaffe obriga Londres a pedir desculpas ao Vaticano», João Manuel Rocha, Público, 26.4.2010, p. 14).
      Como as cerejas... Na Sic Notícias, Ana Lourenço, quando se despede dos entrevistados, agradece sempre com um «obrigada por ter aceitado», e se se engana corrige. Mário Crespo diz sempre «ter aceite».

[Post 3390]

Como se escreve nos jornais

Beneficência, beneficência...


      «O Foreign Office, Ministério britânico dos Negócios Estrangeiros, apresentou desculpas ao Vaticano, na sequência da divulgação de um documento oficial em que se aconselhava o Papa a lançar a sua própria marca de preservativos, “Benedict”, abençoar um casamento homossexual e inaugurar uma clínica de aborto, por ocasião da visita ao Reino Unido, agendada para Setembro» («Gaffe obriga Londres a pedir desculpas ao Vaticano», João Manuel Rocha, Público, 26.4.2010, p. 14).
      Salvo melhor opinião, isto é tontice: se se supõe, e talvez se suponha erradamente, que é do conhecimento do leitor o que significa Foreign Office, para que se traduz logo de seguida? Ah, sim, e é Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. Leiam o que o Correio da Manhã publicou: «Depois de ter sido desvendado o conteúdo do documento enviado a funcionários públicos e ao gabinete do primeiro-ministro, Gordon Brown, o Ministério dos Negócios Estrangeiros emitiu um comunicado onde pede desculpa ao Papa e ao Vaticano pelo sucedido. No mesmo documento, o ministro do gabinete em causa demonstra-se “horrorizado” e garante que o funcionário em questão já foi transferido para outra secção» («Londres pede desculpa ao Vaticano», P. M. C., Correio da Manhã, 25.4.2010).
      Infelizmente, o jornalista do Correio da Manhã embaçou completamente a imagem ao escrever «beneficiência» em vez de «beneficência»: «O semanário ‘The Sunday Telegraph’ teve acesso ao documento que sugeria ainda que fosse criada uma linha telefónica de apoio às vítimas da pedofilia e que o Papa cantasse com a rainha Isabel II com o objectivo de recolher fundos para organizações de beneficiência.»

[Post 3389]

Como se escreve nos jornais

Ninguém vê?


      Quando se trata da língua inglesa, prefiro, por exemplo, o The Times, e este jornal escreve Lib Dems. «The Lib Dems are ten points up at 31 per cent since last week, while the Tories are down four points at 32 per cent and Labour is on 28 per cent, down five points.» O Público, que só deveria escrever liberais-democratas, porque afinal Portugal não é uma colónia britânica, mete os pés pelas mãos. Vejam: «Em contrapartida, o crescimento dos lib-dem “conduzirá a maior indecisão” e pode até deixar o país “atolado no mesmo sítio”, afirmou, numa alusão a um eventual entendimento entre Clegg e o primeiro-ministro, Gordon Brown» («Cameron revê táctica para combater subida dos Liberais Democratas nas sondagens», Ana Fonseca Pereira, Público, 21.4.2010, p. 16). «“É ridículo”, criticou ontem no talk show político televisivo Andre Marr Show, da BBC, avisando já o primeiro-ministro, Gordon Brown, de que não conte com o apoio dos libdem num cenário em que os trabalhistas consigam o maior número de assentos no Parlamento, apesar de não serem o partido mais votado» («Líder dos libdem britânicos avisa que não apoiará os “irrelevantes” trabalhistas», Público, 26.4.2010, p. 14).

[Post 3388]

25.4.10

Aportuguesamentos

Vai um capuchino?

Qual o critério?


      «O chão parece estar forrado de parquet escuro envernizado, mas mal se consegue vê-lo devido a toda a serradura» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 213).
      Compreende-se mal esta opção pelo galicismo parquet. O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa regista três variantes no aportuguesamento: parqué, parquê e parquete. E compreende-se mal porque a tradutora optou por motar (motard), flache (flash), balé (ballet), capuchino (cappuccino), holígane (hooligan)...

[Post 3387]

Léxico: «plásmico»

Poucas escapam


      «Na fornalha do Big Bang, o hidrogénio foi o primeiro elemento a formar-se a partir do caldo plásmico quente de electrões e protões» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 137).
      Nem o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa nem o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora registam o vocábulo plásmico, mas somente plasmático. O Dicionário Houaiss, contudo, regista ambos os adjectivos.

[Post 3386]

«Sujeira» e «puxa»

Deixá-lo!


      Há um surto de brasileirismo por aí. Há dias, foi o cair na real. Agora isto: «Estão poeirentos por estarem nas prateleiras há tanto tempo e em breve as minhas mãos estão quase pretas da sujeira que sai deles» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 105). «— Puxa. A homeopatia já existia na altura?» (idem, ibidem, p. 120). Tanto o substantivo sujeira, em vez de sujidade, como a interjeição puxa, em vez de, por exemplo, caramba, são marcas, escusadas na tradução de uma obra publicada em Portugal, da variante brasileira do português. Fico perplexo é com a negligência dos revisores.

[Post 3385]

«Sem-abrigo» pluraliza?

Não varies


      Foi só um lapso, prontamente corrigido, mas alguém disse logo: «Estás a ver? É como se deve, ou devia, dizer.» Agora, lapso ou não (esta tradutora é suficientemente descuidada — e todos os revisores colaboram — para se pensar que é mero lapso), encontro-o de novo: «Depois do castelo existe uma passagem subterrânea por baixo da estrada da circunvalação e se a atravessarmos podemos andar ao longo do rio em direcção à auto-estrada, passando pela torre do gás e o acampamento para sem-abrigos que vivem em tendas» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 62). Mas sem-abrigo é invariável, como sem-papéis, sem-tecto, sem-terra, sem-vergonha...

[Post 3384]

Género de «jeans» II

Tudo como dantes


      «Não acordo senão às dez, a tremer nos meus jeans e camisola no sofá, com uma luz forte de Inverno a derramar-se sobre mim através da janela da cozinha» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 169). «Apanha-o e guardo-o no bolso das minhas jeans» (ibidem, idem, p. 185).
      Passado um ano, volto a esta questão do género de jeans. Contudo, agora não é para assinalar a desconformidade entre o que registam os dicionários e o uso na escrita, mas a incoerência de uso na mesma obra, uma tradução, mais uma vez. E, ao contrário do que prometia um leitor, os dicionários da Porto Editora não passaram a classificar jeans (nem pop) como substantivo de dois géneros.

[Post 3383]

Frase interrogativa

Interrogo-me


      «— Não faças isso. Que se lixe a física teórica. Vem fazer um doutoramento comigo. Presumo que ainda não o tenhas?» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 34).
      Só me pergunto, como já o fiz em relação a outra tradução, porque é que aquela frase é interrogativa. Se a tradutora e o revisor também se interrogaram, então não chegaram à conclusão a que eu cheguei. Chegaram, sim, à conclusão a que chegou Jorge Candeias. Mesmo que admitisse que, neste caso concreto, a frase deveria ser pronunciada como se tratasse de uma interrogativa, o facto de só poder utilizar, para o mostrar, o ponto de interrogação torná-la-ia incorrecta. Há uma terceira via?

[Post 3382]

24.4.10

Verbo «sociabilizar»

Incompleto


      «Nenhum de nós tentou sair do nosso canto e juntarmo-nos aos outros: não sou muito boa a sociabilizar e muitas vezes ofendo as pessoas por acidente; não sei qual era a razão de Burlem — talvez simplesmente ainda não tivesse sido ofendido por mim» (O Fim do Senhor Y, Scarlett Thomas. Tradução de Inês Castro e revisão de Duarte Camacho. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008, p. 27).
      É mais um problema lexicográfico: somente o Dicionário Houaiss apresenta o verbo sociabilizar como transitivo e pronominal — tornar(-se) social, reunir(-se) em sociedade, em grupos —, o que de facto é, ao contrário de outros, como o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa ou o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora. Imagino que possa ser um obstáculo de monta para o falante menos habituado a consultar dicionários.

[Post 3381]

23.4.10

Tradução

De férias no Rio


      «“Precisas de cair na real, Nick”, disse-lhe Brown referindo-se à proposta dos lib-dem de não renovar o sistema de armas nucleares Trident.» Quem escreveu esta frase foi a jornalista do Público Ana Fonseca Pereira, num artigo («Debate renhido mantém corrida eleitoral a três», p. 18) sobre o segundo debate da campanha eleitoral britânica. A pergunta é óbvia: a jornalista não tinha uma forma portuguesa de traduzir a frase? Nem é preciso supor que em inglês é ou deixa de ser to face the truth, pois percebe-se a ideia. Não teria sido melhor optar por «desça à Terra» ou «enfrente as coisas»?

[Post 3380]

Abreviatura de «superintendente»

Tem lá em casa


      Uma bancária brasileira, Luciane Bassoli de Assunção, queria saber qual a abreviatura de «superintendente». E, como estava em maré de pedir, ainda acrescentou: «Vocês têm um dicionário geral de abreviaturas para me enviar?» Ora, no Brasil há muito melhores dicionários de abreviaturas do que em Portugal, que eu já aqui divulguei. O especialista em abreviaturas do Ciberdúvidas, D´Silvas Filho, não conhecia, mas recomendou: «Sugiro Superint. para superintendente; sempre se evitam algumas letras. Para colectânea de abreviaturas, recomendamos o Anexo muito completo do VOLP da sua Academia, com o título “Reduções mais correntes”.»
      No Dicionário de Abreviaturas publicado pela Prefeitura da cidade de São Paulo, que se pode descarregar aqui, indica-se Suprint, sem ponto de abreviação. Sugiro, corrigindo esta forma, Suprint., com ponto. (Aqui encontra uma lista de abreviaturas para a língua espanhola.)

[Post 3379]

«Não» como elemento de formação

Ontem e hoje


      Só nas edições de ontem e de hoje, e apenas no caderno principal e sem considerar flexões e repetições, veja-se quantas vezes e com que vocábulos se usou o advérbio não como elemento de formação no jornal Público. Sem critério, a eito, é o que se pode concluir.


  1. «“Limitei-me a analisar o que me pediam para analisar”, adiantou o advogado, acrescentando que nunca perguntou a Rui Pedro Soares “com que vestes” lhe pedia aquele parecer, se como administrador executivo da PT, se como administrador não-executivo da Taguspark» («Paulo Penedos garante ter agido sempre a pedido de Rui Pedro Soares», Ana Brito, Público, 22.4.2010, p. 6).

  2. «“O chefe de Estado deve receber tanto o líder tibetano como qualquer outro líder religioso católico ou não-católico, visto até do campo da cidadania. No entanto, não tem de haver um distanciamento devido ao princípio da laicidade. Por isso, defendemos que o Presidente da República deve acompanhá-lo somente na posição de chefe de Estado”, esclareceu [Joffre Justino, presidente da Academia de Estudos Laicos e Republicanos]» («Laicos pedem a Cavaco que veja Papa só como estadista», Tânia Marques, Público, 22.4.2010, p. 9).

  3. «Devem, no entanto, respeitar algumas regras, como a não-discriminação na atribuição dessas ajudas» («Comissão Europeia pondera auxílio financeiro», Raquel Almeida Correia, Público, 22.4.2010, p. 14).

  4. «As características construtivas e de equipamento que vão ser utilizadas na sua recuperação colocam as novas unidades de alojamento na gama média-alta da oferta de hotelaria não-convencional, inseridas na área do turismo de natureza» («Onze escolas abandonadas de Odemira serão transformadas em alojamento turístico», Carlos Dias, Público, 22.4.2010, p. 26).

  5. «Mas aquele incêndio, um sério revés, foi também um sinal da urgência do trabalho que estava e continua a ser realizado por esta organização não-governamental ligada geneticamente aos holandeses da Fundação Transumância e Natureza que, em 2000, começou a comprar terrenos nas freguesias de Algodres e Vale Afonsinho para criar uma área para a conservação das aves rupícolas» («Aqui está a nascer a primeira reserva natural privada em Portugal», Abel Coentrão, Público, 22.4.2010, p. 44).

  6. «O diploma aprovado ontem em Conselho de Ministros agrava a tributação das mais-valias mobiliárias, mas mantém as actuais isenções aos contribuintes não-residentes em Portugal e das cúpulas dos grupos económicos, por onde passa parte significativa desses rendimentos» («Grandes grupos económicos vão ficar isentos das mais-valias», João Ramos de Almeida, Público, 23.4.2010, p. 2).

  7. «“Não vigora nenhum regulamento discriminatório deste tipo”, esclarecia ontem o BE, frisando que a câmara aprovou, em 17 de Fevereiro, “um novo regulamento para habitação social, utilizando critérios de igualdade, sem qualquer artigo discriminatório de cidadãos não-nacionais, em conformidade com os princípios constitucionais”» («Governo promete acabar com discriminação de imigrantes no acesso à habitação social», Filomena Fontes, Público, 23.4.2010, p. 12).

  8. «E alertava para uma situação paradoxal: enquanto perto de 39 mil pessoas com patologias não-prioritárias conseguiram ser operadas em menos de sete dias, cerca de dez mil doentes com cancro (que deve ser prioritário) tinham sido tratados após os prazos definidos para as cirurgias» («Em 2008, 233 doentes morreram antes da operação», A. C., Público, 23.4.2010, p. 14).

  9. «“É urgente confrontá-lo com a posição dos diversos grupos parlamentares, assim permitindo que o seu isolamento se evidencie”, sublinham os comunistas, que lamentam que o PS tenha inviabilizado a votação de um diploma que determinava a não-consideração dos efeitos da avaliação de desempenho como critério na elaboração da lista de graduação nacional dos professores» («Peso da avaliação para os professores contratados discutido hoje no Parlamento», Graça Barbosa Ribeiro, Público, 23.4.2010, p. 15).
[Post 3378]

«À contracorrente»

Ainda ontem


      «Na verdade, os vinhos de Colares não foram “relançados”: uma expressão de marketing que tanto insulta a teimosia e a lealdade artesanal da Adega Regional de Colares como a ousadia contra-corrente da Fundação Oriente. Isto sem falar nas Adegas Beira ou no espólio vinícola da Viúva Gomes» («Colares a dançar», Miguel Esteves Cardoso, Público, 22.4.2010, p. 39).
      Escreve-se contracorrente, o revisor do Público tinha obrigação de estar ao corrente. E mesmo assim, «ousadia contracorrente»? Apesar da imprevisibilidade do mundo actual, na gramática ainda se espera que a qualificar um substantivo surja um adjectivo ou uma locução. Ei-la: à contracorrente. Outra vez: «Na verdade, os vinhos de Colares não foram “relançados”: uma expressão de marketing que tanto insulta a teimosia e a lealdade artesanal da Adega Regional de Colares como a ousadia à contracorrente da Fundação Oriente. Isto sem falar nas Adegas Beira ou no espólio vinícola da Viúva Gomes.»

[Post 3377]

22.4.10

Siglas e acrónimos

Reciclem-se


      «Porém, as análises revelaram a concentração desta toxina em níveis superiores ao que está legalmente estabelecido pela agência de segurança alimentar europeia (EFSA). Os únicos e raros casos (terão sido apenas duas das amostras analisadas) encontravam-se na receita da broa, com milho, segundo nota Cristina Matos, do Instituto Superior de Engenharia do Porto» («Estudo confirma presença de toxina no pão e revela amostras de broa que ultrapassaram limites legais», Andrea Cunha Freitas, Público, 22.4.2010, p. 10).
      O leitor fica com a ideia de que EFSA se desdobra no nome da instituição que se lê antes: agência de segurança alimentar europeia. Sendo assim, porém, este tinha de ser grafado com maiúsculas iniciais. Ora, a verdade é que esta instituição se chama Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (AESA). Quem ganha com esta distorção? Ninguém. E há o oposto disto, de que já aqui dei conta: «Tratamento de águas residuais: processo que torna as águas residuais aptas, de acordo com as normas de qualidade em vigor ou outras aplicáveis para fins de reciclagem ou reutilização. Considera-se apenas o tratamento efectuado nas Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR).» No desdobramento de uma sigla ou acrónimo, só se tem de usar maiúsculas se estiverem envolvidos nomes próprios ou topónimos. Este é um erro que vejo todos os dias.

[Post 3376]

Acordo Ortográfico

Ciberduvidoso


      Uma consulente do Ciberdúvidas, professora, tem dúvidas sobre a grafia do vocábulo «espectador» segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990, afirmando que articula o c. Os consultores, que ultimamente respondem aos pares, respondem que esta palavra passará a ter duas grafias: espetador e espectador. E acrescentam: «Em Portugal, contudo, a questão só quando o AO estiver em vigor poderá levantar-se; por enquanto, escreve-se apenas espectador.» Mas não está já em vigor, depois da ratificação por três Estados do Acordo Ortográfico e do Segundo Protocolo Modificativo? Ou vamos passar a destrinçar «em vigor» de «mesmo em vigor»?
      Para se redimirem, os consultores ainda advertem: «Assinale-se que a pronúncia-padrão desta palavra em português europeu é “espètador”, sem articulação de [k]».

[Post 3375]

«Bispo-auxiliar»?

Trabalhar para o bispo


      «‘There are a lot of divisions in society along racial and ethnic lines, even among our Catholics’, says Bishop Barry Wood, auxiliary bishop of the Archdiocese of Durban.» Estava aqui sossegadinho a traduzir um texto de que faz parte a frase acima e lembrei-me logo disto: «D. Carlos Azevedo, bispo-auxiliar de Lisboa, garante que não haverá problemas de segurança na celebração da missa no Terreiro do Paço, em Lisboa, a 11 de Maio, durante a visita do Papa a Portugal» («Afastados problemas de segurança», Correio da Manhã, 8.4.2010, p. 21). O que é que este auxiliar tem de diferente de adjunto? Nada. Por isso, também não tem de se usar hífen a unir as palavras. E eles sabem.

[Post 3374]

Tradução: «facilities»

Facilitismos


      «Os pisos superiores são dedicados aos quartos. Cada um deles, incluindo os standard, disponibilizam diversas facilidades, mas o que realmente os distingue é o facto de todos eles serem diferentes — não há um único igual, apesar de haver coisas em comum: são bastante espaçosos, uma das paredes é forrada com papel com motivos de época, outra pintada com uma cor diferente mas harmoniosa e o resto respeita a traça original, com a pedra granítica à vista» («Caminho de Santiágua», Paulo Rolão, Evasões/Global Notícias, 21.4.2010, p. 9).
      Mais um falso cognato com lugar garantido nos dicionários de língua portuguesa. No caso, foi Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que regista o plural facilidades com a acepção «comodidades». Sendo assim, porque não traduzir facilities por comodidades? Se não há uma só palavra para traduzir as várias acepções do termo inglês, dependendo do contexto, neste caso parece estar encontrada.

[Post 3373]

21.4.10

Pronúncia

Psst, garçon


      «O nome correcto do vulcão é Eyjafjallajokull e não Eyjafjalla, como por vezes tem aparecido escrito. A explicação foi-nos dada por Ása Kolka, do gabinete de informação da Universidade da Islândia. O vulcão está por baixo de um glaciar, como muitos outros vulcões da Islândia. Alguns desses vulcões têm um nome próprio, diferente do do glaciar, mas este não. O nome do glaciar e do vulcão são o mesmo: Eyjafjallajokull. Eyja significa ilha, fjalla significa montanhas e jokull é glaciar. Logo, para quem não conseguir pronunciar Eyjafjallajokull, o melhor é dizer que é o vulcão que fica no glaciar das montanhas que ficam perto das ilhas. Obrigada, senhora Kolka» («Cinzas do Eyjafjallajokull mantêm-se sobre a Europa, Atlântico e Canadá», Nicolau Ferreira, Público, 20.4.2010, p. 14).
      Felizmente, na rádio e na televisão os jornalistas não são obrigados a pronunciar o nome do vulcão. Afinal, com palavras bem mais simples eles se atrapalham ou erram. Ainda na semana passada, Mário Crespo entrevistou no Jornal das 9 Fernando Fragoso Marques, candidato a bastonário da Ordem dos Advogados. Às tantas, falou-se do juiz espanhol Baltasar Garzón, de quem Fragoso Marques é amigo. Nunca Mário Crespo pronunciou o nome de outra forma que não /Garçon/.

[Post 3372]

Léxico: «cardiogénico»

Isso pensam eles


      «O médico frisou a gravidade da situação em que se encontra o ex-presidente do COI, revelando que a equipa teme pela vida de Samaranch desde que este foi internado. “Vinte minutos depois de ter dado entrada, sofreu um choque cardiogénico”, revelou o médico» («Médicos temem pela vida de Juan Antonio Samaranch, presidente honorário do Comité Olímpico Internacional», Tiago Pimentel, Público, 20.4.2010, p. 35).
      Só o Dicionário Houaiss nos salva da ignorância (se formos ignorantes em relação ao latim). Cardiogénico significa que tem origem no coração ou que resulta de uma doença ou distúrbio do coração. Tanto o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa como o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora acham que não precisamos de saber.

[Post 3371]

Média/“media”

Mera distracção


      Viva!, o Público aderiu ao plural anómalo: «O jornal lançado em Maio do ano passado vive um momento conturbado. Depois dos donos do título terem assumido, em Março, que poderiam deixar a área dos média, e de buscas até aqui infrutíferas por um investidor que comprasse o i, na semana passada o fundador e director Avillez Figueiredo deixou o cargo, após ter-lhe sido exigido que aplicasse uma redução de custos que “irremediavelmente desfiguram o projecto”» («Director do Grande Porto assume interinamente a direcção do jornal i», Abel Coentrão, Público, 20.4.2010, p. 12).
      Esperem... Foi distracção: «Essa informação é transmitida para centros em todo o mundo, que aplicam um modelo informático para traçar os mapas que nos últimos dias têm sido divulgados nos media» («Cientistas realçam incerteza dos riscos, transportadoras querem voltar a voar», Clara Barata, Público, 20.4.2010, p. 3).

[Post 3370]

Léxico: «sintónico»

Em sintonia


      Há palavras, exemplarmente bem-comportadinhas, que nunca saíram do dicionário. Alguém já tinha visto por aí a palavra «sintónico»? Encontrei-a hoje, por aí perdida: «Mas mais uma vez — e isso é recorrente há dois séculos — se viu como fazer da América Latina um todo sintónico e fecundo é como arar o mar.» (Era, era mesmo Simão Bolívar [1783–1830] que costumava dizer que fazer a revolução na América era como arar o mar.)


[Post 3369]

Redundância

Escreva, releia e mande


      «Mas é verdade que, de quando em quando, há formas de anticlericalismo que regressam. Aconteceu agora mais uma vez e por causa de um pretexto totalmente artificial: a “tolerância de ponto” concedida aos funcionários públicos no dia da visita do Papa» («Laico dos laicos», Pedro Lomba, Público, 20.4.2010, p. 38).
      «Por causa de um pretexto»? Causa é razão, como razão é pretexto, senhor colunista. Não é redundância sem desculpa, senhor jurista? Vamos lá apurar a escrita. «Aconteceu agora mais uma vez e sob um pretexto totalmente artificial».

[Post 3368]

Iliteracia

Incómodos


      Um condómino, subdirector de um banco (e é o menos importante aqui no prédio), afixou um papel no átrio a pedir desculpa pelo «incómado» das obras que vai fazer no andar. Mas este, apesar da licenciatura no ISCTE e das pós-graduações, é um pobre diabo, que pouco incomodará o mundo com os seus escritos. Pior são os jornalistas, alguns jornalistas. Há um, esqueci-me agora do jornal para que trabalha, a quem se corrige sistematicamente «prelogamento», «prelongado», «prelongar». Há-de ser como os pasteleiros, que, fartos dos cheiros e da visão diária dos bolos, não provam o que fazem.

[Post 3367]

20.4.10

Léxico: «violista»

Vê-se e lê-se pouco


      Daqui a meia hora não sei, mas neste preciso momento o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa não regista o vocábulo violista. Como pode isto ser?
      «Foi a tia [do fadista Ricardo Ribeiro] que o levou até à Académica da Ajuda, “a colectividade lá no bairro”. E foi aí que cantou pela primeira vez, sob o olhar crítico do violista, o Ti’ Zé Bola, que, quando o viu, disse: “Ai, ai, ai... lá estão a meter as criancinhas a cantar.” Surpresa, Ti’ Zé! “Ele acabou por ser das pessoas que mais me ensinou.”» («Tudo isto é fado», Bruno Martins, Metro, 20.4.2010, p. 6).

[Post 3366]

«À séria», outra vez

Vai ser difícil


      «A empresa neozelandesa Marlborough’s NZ King Salmon, exportadora de salmão, está a aproveitar o facto das rivais europeias não poderem usar o meio aéreo para fazer negócio à séria na Ásia» («A sorte no azar do céu de cinzas», Tiago C. Esteves, Metro, 20.4.2010, p. 2).
      E um jornalista a sério não escreveria assim, uma revisora a sério não deixava sem corrigir... Um leitor a sério só tem de denunciar e repudiar. Pergunto a mim mesmo se esta gente lê alguma coisa.

[Post 3365]

Operário/trabalhador

Pensando bem...


      «Aos 69, Eugene Terre’Blanche foi assassinado por dois operários negros que trabalhavam nas suas terras, no noroeste do país. O crime foi em Ventersdorp, cidade-mãe do Afrikaner Weerstandsbeweging (AWB)» («Um jogo decisivo», Jornal de Negócios, 9.4.2010, p. 1).
      Para mim, operário é a pessoa que tem ofício manual ou mecânico, sobretudo no sector industrial (e dou a definição do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). De uma maneira geral, a imprensa portuguesa referia que se tratava de dois trabalhadores agrícolas ao serviço de Eugene Terre’Blanche. E é logo no Jornal de Negócios que lemos isto...
      Posso estar enganado, mas nunca tinha lido o vocábulo composto cidade-mãe. Não se costuma usar cidade natal?

[Post 3364]

Erratas

De evitar


      Alguém tem saudades das erratas que outrora os livros traziam? O leitor sabia que essas listas dos erros tipográficos num livro, num impresso, etc., com indicação das correcções, por vezes eram maiores do que a própria obra? Faz lembrar o Eugene Onegin de Púchkin anotado por Nabokov. Mas voltando à errata. Recentemente, a Associação de Professores de Português (APP) e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda (INCM) co-editaram um livrinho, da autoria de Paulo Feytor Pinto, com o novo acordo ortográfico, e de tal forma fizeram as coisas (e teve dois revisores: Ana Clara Jorge de Sousa e Edviges Antunes Ferreira), que tiveram de inserir a folhinha de errata que reproduzo. Em boa verdade, quase todas as obras precisavam de corrigendas, mas só algumas as merecem. Até poderia ocorrer a algum escritor excêntrico reescrever numa errata todo o enredo de um romance: «Onde se lê x, deve ler-se y

[Post 3363]

Concordância com numerais

Vamos concordar


      Escreve-me um leitor: «“Naquele fatídico ano, foram mortas centenas de civis hutus.” Ou será antes: “Naquele fatídico ano, foram mortos centenas de civis hutus”?» O particípio passivo concorda em género e numero com o sujeito. Se o núcleo do sujeito é um numeral colectivo, como é o caso, a concordância faz-se com o substantivo que o acompanha: «Naquele fatídico ano, foram mortos centenas de civis hutus.» «Centenas de obras de arte foram vistas naquela exposição.»
      A concordância traz sempre algumas dúvidas. Mas há quem tenha teorias muito próprias. A minha filha, com 3 anos acabados de fazer, já me explicou: «Se falarmos com uma senhora, dizemos “obrigada”; se falarmos com um senhor, dizemos “obrigado”.» Já interiorizou que há diferenças, agora só falta afinar as coisas.

[Post 3362]

19.4.10

«Bicha» e «fila»

Preconceitos


      «Obviamente que os Amigos do Facebook não são amigos-a-sério. Mas são-no em potência. São-no de certo modo, e no de certo modo é que está o ganho. Trata-se simplesmente de gente com quem trocar dois dedos de conversa na bicha para o pão» («As faces da fé», Rui Zink, Metro, 19.4.2010, p. 9).
      O revisor antibrasileiro, no último dia que estive com ele, também atribuiu a culpa de se usar fila em vez de bicha aos Brasileiros. João Carreira Bom discordaria.

[Post 3361]

Uso das aspas

Outra triste vez


      «Ainda assim, o correspondente [Peter Wise] acaba por levar um pouco de Portugal ao mundo de cada vez que escreve no Financial Times — conhecido por ser das melhores fontes de informação em assuntos relativos à União Europeia, por ser a leitura de referência dos grandes líderes empresariais e por vir cuidadosamente impresso em folhas cor de rosa [sic] salmão que fazem dele um “periódico superior do Reino Unido” — e na The Economist — revista semanal inglesa que no Verão de 2007 teve uma circulação média superior a 1,2 milhões de cópias semanais (metade da qual na América do Norte). Duas verdadeiras “bíblias” que não deixam ninguém indiferente à informação que veiculam» («As ‘bíblias’ da economia», Ana Pago, Global Notícias, 19.4.2010, p. 8).
      Por qualquer razão, este facto não entra na cabeça de muitos jornalistas: quando se usa uma acepção de um vocábulo que não seja a primeira, aquela em que logo se pensa, não é necessário usar aspas. Com minúscula, bíblia é uma obra que se consulta frequentemente, uma obra fundamental. Mas sem aspas.

[Post 3360]

Léxico: «primo-ministerial»

Sem gáudio


      «Mas apareceram mais uns detalhes, soube-se mais uns pormenores e, acima de tudo, recebeu o povo um comunicado primo-ministerial, tudo convidando a um retomar de atenção, principalmente a um fatigado cidadão pelos cabelos, como eu próprio» («O Gaudi das berças», Fernando Braga de Matos, Jornal de Negócios, 9.4.2010, p. 33).
      Primo-ministerial. Parece um termo burlesco, não é? Mas não: até num recurso contencioso de anulação apresentado ao Tribunal Central Administrativo Sul (TCA) o vejo usado: «Mantendo pois a exoneração efectuada, o despacho de 10.2.2003 indica de modo explícito e circunstanciado, os diversos motivos que se encontravam subjacentes à primitiva decisão primo-ministerial, assim sanando a ilegalidade desse acto.»
      Claro que é Gaudí que se escreve, mas o autor, entre detalhes e pormenores, ter-se-á distraído.

[Post 3359]

18.4.10

Tradução: «hall»

Olé!


      Não digam a ninguém: odeio o anglicismo hall. Desde sempre. Às vezes, até me pergunto como o escreveria quem o usa. «Ole»? Nesta tradução que tenho citado nos últimos posts, lê-se, como tradução de hall, vestíbulo: «Entrou em casa, atravessou rapidamente o vestíbulo revestido de mosaicos pretos e brancos — quão familiar e irritante era o eco dos seus passos! — e parou para tomar fôlego à porta da sala de estar» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 30). Mas esta obra deixa-nos desgostosos com outras opções, por vezes meramente gráficas. Por exemplo, porquê usar prima dona se os dicionários da língua portuguesa registam prima-dona, ainda por cima aportuguesamento nada forçado? «— Cala-te, por amor de Deus! És uma prima dona muito cansativa. Eles não tinham meias lavadas e eu fui buscar umas tuas» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 163).

[Post 3358]

Actualização em 21.06.2010

      «Voltou ao palco, agradecendo, sorridente e graciosa, uma ovação tal que teria satisfeito uma prima-dona» (Isabela, Ethel M. Dell. Tradução de Fernanda Rodrigues. Lisboa: Editorial Minerva, s/d, p. 259).



Plural de «Bíblia»

Vá-se lá perceber


      A palavra Bíblia é, etimologicamente, um plural, mas essa é uma noção que se perdeu. Em língua portuguesa, se queremos referir-nos no plural à colecção dos livros sagrados do Antigo e do Novo Testamentos, temos mesmo de pluralizar a palavra — e manter a maiúscula inicial. Mas vejam o que até em textos assinados por religiosos já tenho lido: «À entrada do mesmo campo, um capelão e o seu ajudante regavam com petróleo caixas cheias de livros de oração e de bíblias» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 277).

[Post 3357]

Léxico: «banco de neve»

Mais um depósito


      «Inquietar-se, concentrar-se, ler, olhar, desejar — tudo eram coisas a evitar em favor de um lento impulso de associação, enquanto os minutos se acumulavam como um banco de neve e o silêncio se adensava à sua volta» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 175).
      Bancos há muitos, como já aqui vimos. Esta obra até tem mais um: «Determinou-se que havia luz suficiente das estrelas e do banco de nuvens que reflectia as luzes da cidade mais próxima» (ibidem, idem, p. 197). À conta do banco de neve, descobri aqui um Glossário Internacional de Hidrologia multilingue. É mais um recurso para tradutores e revisores.

[Post 3356]

Sobre «escada»

A subir


      Como se sabe, usa-se indiferentemente escada ou escadas quando dizemos, por exemplo, «desci a escada»/«desci as escadas». Ontem de manhã, a minha filha, que tem 3 anos, contou-me um sonho (há seis meses que começou a contar-me os sonhos) que teve. Contou-mo três vezes seguidas. Como acontece muitas vezes, quis certificar-se de que a ouvira bem, pelo que tive de repetir, também eu, alguns trechos. «Sim, desceste as escadas, ias sozinha...» «“Escadas”, não; “escada”.» Com excepção do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, nenhum outro se refere ao uso do plural, que é corrente e está legitimado, ao que me parece, pela etimologia. Relacionada também com escada, há também uma expressão curiosamente elíptica, que algumas pessoas evitam. Ei-la: «Briony, por seu lado, subiu a escada a dois e dois, cheia de energia pelo seu sentimento do dever e de fazer bem, prestes a fazer uma surpresa que só lhe podia granjear elogios» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 204). E já que derivei outra vez para esta obra, outra palavra relacionada: «Mostrou o bilhete e mergulhou naquela luminosidade amarela e suja até chegar às escadas-rolantes que começaram a transportá-la para baixo e a fazê-la mergulhar naquela brisa artificial que vinha da penumbra, da respiração de um milhão de londrinos, e que lhe refrescava o rosto e lhe fazia abanar a capa» (ibidem, idem, p. 393). Nenhum dicionário regista esta grafia com hífen, mas nem tradutora nem revisora quiseram saber destes pormenores.

[Post 3355]

17.4.10

«Pôr em xeque»

Ainda pior


      «— E se te lembrares seja do que for em relação ao Danny Hardman, onde é que ele estava, o que estava a fazer e quando, se mais alguém o viu, tudo o que possa pôr o álibi dele em cheque, também quero saber isso» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 390).
      Digo outra vez: por vezes, é difícil perceber o que fez o revisor numa obra. Esta é um desses casos. Então a expressão não é pôr em xeque?

[Post 3354]

Ortografia: «pé-de-galinha»

Ruga no canto do olho


      «A dureza do seu olhar era nova, e os seus olhos estavam mais pequenos, mais estreitos e com pés de galinha bem vincados aos cantos» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 386).
      Por vezes, é difícil perceber o que fez o revisor numa obra. Este é um desses casos. Então não há pés de galinha e pés-de-galinha? Outra palavra que nunca é grafada com hífen é meia-volta, erro comum a dezenas e dezenas de obras.

[Post 3353]

Léxico: «ebonite»

Falta de definição


      «Mandaram-na a outra enfermaria com uma pinça e uma ebonite para tirar os estilhaços da perna de um aviador» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 338).
      Desde o século XIX que se usa o termo em Portugal. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, por exemplo, dá esta definição: «substância dura, negra, obtida por vulcanização da borracha, com 30 a 50% de enxofre, utilizada na indústria eléctrica e na confecção de vários objectos; ebanite, vulcanite». Todos os dicionários, mesmo os de língua inglesa, registam algo semelhante. Qual é o problema? É simples: a definição devia incluir os objectos, para diversos fins, feitos deste material. (Caro Paulo Araujo, dê uma palavrinha a Mauro Salles.)

[Post 3352]

Tradução: «impassivity»

Demasiado simples


      Não há sábado sem sol, domingo sem missa, segunda sem preguiça nem obras sem erros. Conheciam este provérbio? Inventei-o agora mesmo, inspirado pela leitura desta frase: «Só isto despertou Cecilia da sua impassividade» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 376).
      Então ao estado do que é ou está impassível não se dá o nome de impassibilidade? Impassividade é a adaptação do vocábulo inglês impassivity. Seria, neste caso, necessário lançar mão deste recurso? É claro que não.

[Post 3351]

16.4.10

«Não-intervenção»

Em 1938


      «“Os não-praticantes portaram-se mal”» (Correio da Manhã, 7.4.2010, p. 50). O revisor antibrasileiro resmungou ao ler o título e disse que dantes não se via o advérbio não ligado por hífen nem a adjectivos nem a substantivos. Tudo começou, acrescentou, ufano, com «não-alinhado». Lembrei-me agora deste solilóquio ao ler, no jornal que já hoje aqui citei, este título: «A não-intervenção». Na notícia lia-se que «o “Times” prevê que Barcelona rejeitará o plano britânico para a retirada dos voluntários, assim como a proposta para a neutralização de Almeria». Não-intervenção, em 1938.

[Post 3350]

«Volta da França»

Quero saber


      Há dias, a propósito da crase, referi aqui a expressão «Volta a França». Agora, com um exemplar do jornal A Capital, datado de 8 de Julho de 1938, à minha frente, leio na página 3 o seguinte: «A “Volta da França”, em bicicleta». Nela dava-se conta de que a quarta etapa tinha sido ganha pelo belga Félicien Vervaecke (no final, ficaria em 2.º da geral) e usa-se sempre a expressão «Volta da França». Como se evoluiu de Volta da França para Volta a França? E quando se deu esta mudança? Há muito a descobrir nas hemerotecas.

Actualização no mesmo dia

      Um leitor fez-me chegar o seguinte comentário, que constitui um importante contributo para esta reflexão: «1. Tour de France (Faire le Tour de France) terá sido vertido directamente, tintim por tintim, para português: Volta da França.
      2. Mas volta em português (em francês não) também significa regresso e podia prestar-se a confusões.
      3. Além disso, enquanto os franceses dizem “faire le tour de...” no sentido de percorrer, circundar, etc., nós dizemos “dar a volta a...” (à arena, ao quarteirão, ao país, ao texto...)
      4. Donc... os ciclistas dão a volta a França.
      Agora, se me perguntar quando é que se deu a transmutação, eu tenho de meter a viola no saco e deixar-me de dar palpites, porque não sei. Só posso conjecturar que quem primeiro utilizou a fórmula “Volta da França” não soubesse francês. Hélas!»


[Post 3349]

Léxico: «prato de conduto»

Ladeiro, sopeiro...


      «Os pratos de conduto há muito que tinham sido levantados e Betty voltava com o pudim de pão e manteiga» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 162).
      Ninguém ignora o que significa «conduto»; prato de conduto, pouca gente saberá o que é. Pretenderá traduzir o inglês dinner plate, pratos rasos.

[Post 3348]

Problemas de tradução

Pode espreitar o anacronismo


      «Era verdade: o toque senhoril do perfume de Lola não conseguia disfarçar o cheiro algo infantil a Germolene» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 137).
      Pela pesquisa que fiz, creio que o anti-séptico Germolene não está à venda em Portugal. Contudo, ainda que esteja ou estivesse, o exemplo serve para reflectir numa questão. Não raramente, bons tradutores, em circunstâncias semelhantes, substituem por medicamentos equivalentes conhecidos de todos nós. É uma boa solução? Pode não ser. Há dois aspectos a considerar: por um lado, dar y por x (qual boticário de quiproquó) é uma pequena traição, uma infidelidade ao original; por outro, dar y por x pode conduzir a um anacronismo. Apesar da incompreensível aversão dos editores por notas de rodapé, creio que, nestes casos, o melhor seria deixar na tradução a designação original do medicamento e fazer uma nota.

[Post 3347]

Tradução: «apologetically»

Não peço desculpa


      «Ao ouvir o pigarreio suave de uma garganta feminina levantou os olhos, admirada. Era Lola. Estava a espreitar apologeticamente para dentro do quarto e, assim que os seus olhos se cruzaram, bateu ao de leve na porta com os nós dos dedos» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 137).
       Já há dicionários que dão como tradução de apologeticallyapologeticamente. Os dicionários gerais da língua — e entre eles os três que aqui mais cito, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e Dicionário Houaiss —, porém, ainda se mantêm em terreno sólido. Trouxe para aqui esta questão também para mostrar como mesmo bons tradutores caem nestas armadilhas. Assim de repente, consigo imaginar meia dúzia de alternativas melhores para traduzir apologetically.

[Post 3346]

Actualização em 18.04.2010


      Mais um exemplo na mesma obra: «Leon encolheu os ombros e fez um sorriso apologético forçado — que objecção poderia ele levantar? — e o olhar suave de Emily concentrou-se nos dois inspectores» (ibidem, idem, p. 206).



15.4.10

Sobre «clítoris»

Olha quem fala


      A cineasta Raquel Freire aconselhou no programa Este Tempo, da Antena 1, as mulheres: «E masturbem-se.» Um ouvinte queixou-se ao provedor e este foi ouvir Cristina Ponte, professora na Universidade Nova de Lisboa, que disse: «Ouvindo a intervenção, penso que foi um texto, foi uma apresentação informativa. É um tema, realmente, é um conteúdo do qual não se fala — e até achei graça como nem se sabe como é que se escreve, onde é que é o acento.» Hã? Esqueci-me: Raquel Freire usara a palavra «clítoris», e a professora universitária afirma que «nem se sabe como é que se escreve, onde é que é o acento». Quem é que não sabe? Bem, não é vergonha não saber, mas não fica bem dizê-lo depois de ter tido oportunidade de esclarecer a dúvida.
      O provedor teve o discernimento de esclarecer: «Antes de prosseguirmos, um pequeno esclarecimento de quem não é especialista sobre a acentuação da palavra que está no centro deste problema. Pronunciamos /clitóris/, com acento no o, seguindo o que indica o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Mas devo acrescentar que o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Sociedade de Língua Portuguesa, põe o acento no [primeiro] i, /clítoris/, e que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa aceita que se diga de uma ou de outra forma, como aliás o Houaiss. Todos eles apontam ainda, de resto, uma terceira forma de dizer o mesmo, através da palavra “clitóride”, que dizem ser mais correcta, mas menos usada.» É uma novidade para mim, esta «especialidade» na acentuação da palavra «clítoris». Recomendo a Adelino Gomes um bom curso nesta área: sobre a pronúncia do nome Houaiss.

[Post 3345]

«Ultravioletas», de novo

Obrigado, vulcão islandês


      Em relação a certas matérias, não é suficiente fazer actualizações aos posts. É o caso de ultravioleta. O repórter Luís Ochoa, em Bruxelas, disse: «O Instituto Real de Meteorologia [RMI] anuncia que a nuvem de cinzas de erupção vulcânica na Islândia atingirá plenamente a Bélgica amanhã de manhã e que essa nuvem se encontra a 10 km do solo, não tendo influência sobre a camada de ozono, que nos protege dos raios ultravioletas» (noticiário das 15 horas na Antena 1).

[Post 3344]

Etimologia do sufixo «–istão»

Algo se aprende


      De manhã, no programa infanto-juvenil Zig Zag, na RTP2, lembrou-se que o sufixo –istão (de que falámos aqui recentemente), presente em topónimos como Adzaristão, Afeganistão, Cazaquistão, Nuristão, Quirguistão, Tajiquistão, Turcomenistão, Usbequistão, Waziristão, provém do sufixo de origem persa –stan e significa «terra».

[Post 3343]

«Dorsal», novamente

Ajudem o doentinho


      Imagine, caro leitor, que sofre dessa doença mental, que ainda não responde a nenhuma denominação, caracterizada pela recusa em usar palavras não dicionarizadas. Imagine também, se não lhe custa, que era desportista, profissional ou amador. Tinha de se identificar, durante as provas, com um... dorsal. Ora, ainda nenhum dicionário regista o termo, passados três anos sobre o meu reparo. (Caro Paulo Araujo, dê uma palavrinha a Mauro Salles.) O verbete do vocábulo no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa é paupérrimo; no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora é mais rico; o do Dicionário Houaiss é o melhor — mas nenhum deles regista o substantivo masculino dorsal. É lamentável esta ausência, esta desatenção das editoras. Traduzam e copiem a definição do Diccionario de la Real Academia Española: «Trozo de tela con un número, que llevan a la espalda los participantes en muchos deportes.»

[Post 3342]

14.4.10

Crase, de novo

Poucos, mas alguns


      A respeito da crase, escrevi que há algumas subtilezas no seu uso, mas que me parecia que, de uma maneira geral, não escapavam ao comum falante português. Ora cá está mais um caso que não é sempre resolvido da mesma maneira: «Estava a representar o filho da mulher-a-dias que vai à casa dos patrões fazer um recado» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 39). Estou convencido de que muito mais de metade dos falantes, e especialmente tradutores, optariam por não fazer crase.

[Post 3341]

Léxico: «tapada»

Não há mais?


      «Depois de passar o portão de ferro e os rododendros que ficavam por baixo da vedação do jardim, atravessou a tapada — que tinha sido vendida a um agricultor da região para pôr as vacas a pastar —, chegou à fonte, ao muro que a suportava e à reprodução à escala média do Tritão de Bernini, da Piazza Barberini, em Roma» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 28).
      A ideia que tinha, que foi confirmada pela consulta de corpora da língua, era a de que o substantivo tapada, nas suas várias acepções, é pouco usado entre nós. Quase só o usamos para nos referirmos à Tapada Real de Vila Viçosa e à Tapada da Ajuda, em Lisboa. A ligá-las, a mesma origem: a Sereníssima Casa de Bragança. Não há mais tapadas?

[Post 3340]

Sobre «vestibular»

Nada de novo, só errado


      Fernando Fragoso Marques, candidato a bastonário da Ordem dos Advogados, foi ontem entrevistado por Mário Crespo no Jornal das 9, na Sic Notícias. Ao comparar o presente com o passado, disse que, antigamente, a carreira no Ministério Público funcionava como «vestibular» para a magistratura judicial. Ora, não apenas a palavra não é familiar aos Portugueses (claro que o candidato não se dirigia a todos os concidadãos, mas a potenciais votantes), como a comparação pode não ser a melhor. Uma coisa, porém, é certa: o uso do vocábulo «vestibular» para exprimir esta ideia não é nada de novo.
      Durante décadas, que coincidiram quase completamente com o Estado Novo, os juízes de direito eram nomeados de entre delegados do procurador da República de primeira classe e doutores em direito com, pelo menos, cinco anos de exercício da profissão de advogado, mediante aprovação em provas de concurso público.
      Para alguns dicionários, como o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, vestibular é apenas adjectivo «relativo ao vestíbulo, especialmente do ouvido». Já quem consultar o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a aproximação à ideia é maior: «Brasil exame ou designativo do exame de ingresso na Universidade». Sendo assim, o termo propedêutico talvez se adequasse mais à ideia que se pretende transmitir.
      Em Portugal, vestibular só é conhecido da comunidade de imigrantes brasileiros, e, num contexto judicial, de alguns juízes, médicos-legistas e indivíduos julgados por violação: O coito vestibular ou vulvar verifica-se quando o acto sexual, consubstanciado no contacto exterior dos órgãos sexuais masculinos e femininos atinge a consumação pela emissio seminis...

[Post 3339]

13.4.10

Sobre «setor»

Não aceite pela norma?


      Uma leitora, A. M. T., pergunta-me se eu admitiria, sendo professor de Português, que os alunos escrevessem setor e setora (ou stora) nos testes. Bem, parece-me que nem eu nem ninguém o poderia impedir, ou não? A pergunta havia de ser outra, e é a esta que eu vou responder. Não penalizaria um aluno que escreve esses vocábulos, amálgamas (senhora+doutora) que talvez já devessem ter tido acolhimento nos dicionários.
      Quase a propósito: no Record, a secção de revisão tem a instrução de grafar a palavra «sector» assim mesmo, com c. Agora mesmo a propósito: há uns meses, um leitor perguntou-me porque se diz «c curvo», quando não há nenhum «c recto». E acrescentou: «LOL». Acho, e foi o que respondi, que a origem está num equívoco relacionado com a soletração. Imaginem que estou ao telefone e quero soletrar ao meu interlocutor a palavra «sector». Digo: «“Sector”. S de “sapato”, e de “estrela”, c de “curvo”, t de “tudo”, o de “ordem” e r de “rato”.»

[Post 3338]

Actualização em 18.4.2010

      Por vezes, a grafia é outra, com acento circunflexo: «Ora vamos ao volante feitos uns senhores, ora ficamos de orelha murcha com ar de santinhos como quando, na escola, éramos apanhados: “Eeuuu, stôra? Juro que...”» («Teoria do Calimero português», Rui Zink, Metro, 12.4.2010, p. 9).